.Onde entanguidos bois pastam a poeira uma leitura de H. Dobral

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ADRIANO LOBÃO ARAGÃO Nasceu em Teresina, 1977. É mestre em Letras pela Universidade Estadual do Piauí. Professor do IFPI. Autor dos livros Uns Poemas (poesia, 1999), Entrega a Própria Lança na Rude Batalha em que Morra (poesia, 2005), Yone de Safo (poesia, 2007), as cinzas as palavras (poesia, 2009), Os Intrépidos Andarilhos e Outras Margens (romance, 2012). Editor da revista eletrônica dEsEnrEdoS (www.desenredos.com.br).

Fotografias de Luciano Klaus


RÉQUIEM


Nestes verões jaz o homem
sobre a terra. E a dura terra
sob os pés lhe pesa. E na pele
curtida in vivo arde-lhe o sol
destes outubros. Arde o ar
deste campo maior desta lonjura
onde entanguidos bois pastam a poeira.


E se tem alma não lhe arde o desespero
de ser dono de nada. Tão seco é o homem
nestes verões. E tão curtida é a vida,
tão revertida ao pó nesta paisagem
neste campo de cinza onde se plantam
em meio às obras-de-arte do DNOCS
o homem e outros bichos esquecidos.


O termo “réquiem”, oriundo do latim, “repouso”, refere-se à primeira palavra do intróito da missa dos mortos, ou à sua prece litúrgica. O poeta H. Dobal , entretanto, prepara um réquiem para os vivos; embora a própria terra (na qual deveriam cultivar sua condição de sobrevivência) já lhes pese “sob os pés”. Constante em seu livro de estreia, O tempo consequente, editado em 1966, o poema alude ao tema mais peculiar de sua obra: o rústico sertanejo abandonado à sua própria indigência em meio a outros bichos, talvez abaixo do nível de sobrevivência, como se, ainda vivos, já se apresentassem mortos. Em O tempo consequente, Dobal traduz em verso uma aura de terra desolada, de abandono e de rusticidade que dela emana. Um gado que sobrevive pastando poeira e um outro gado, o homem, que rumina sua solidão. Na referida obra, a imagem de degradação da condição humana em tão árido ambiente conferiu à poesia dobalina um substrato poético que nada tem de panfletário ou estritamente documental, mas provida de pleno vínculo com a expressividade artística que se espera de qualquer literato que se queira relevante. Conforme depoimento de Manuel Bandeira,

só mesmo um poeta ecumênico como Dobal podia fixar a sua província com expressão tão exata, a um tempo tão fresca e tão seca, despojada de quaisquer sentimentalidades, mas rica do sentimento profundo, visceral da terra.
( DOBAL, H. O tempo consequente. Teresina, 1986)

A poética de Dobal é desenvolvida a partir de um lirismo conciso que permeia seus versos, como se na árida e agreste paisagem física e humana destes campos se relevasse ou se escondesse o sublime. Rilke, na primeira de suas Cartas a um jovem poeta, menciona que “para o criador não há nenhuma pobreza e nenhum ambiente pobre, insignificante”. E é com o compromisso de extrair lirismo de um árido ambiente sertanejo que Dobal revela-se poeta na concepção proposta por Rilke, sem recorrer a uma estetização artificiosa, a algum preciosismo linguístico que pouco expressaria com autenticidade o rústico universo evocado. Nesse sentido, Dobal optou por uma linguagem igualmente calcada na carestia, conforme a vivência e a paisagem relacionadas a seu fazer poético. Entretanto, trata-se de uma hipotética rusticidade, obtida através da ausência de um transbordamento sentimental, conforme observou Bandeira, ao tempo em que Dobal mantém uma elaborada arquitetura baseada na economia de recursos para obter efeitos bastante precisos.

Vejamos o poema Pedras, constante em O tempo consequente:

PEDRAS
Estas pedras se gastam com o tempo.
Vão lentamente se desgastando
e o tempo lhes sobra para as lembranças
que não conservam. Acaso haverá
mais do que céu e sol mais do que pedra
desta seca paragem outra memória.
Aqui o céu é a lembrança mais bela.
O clarazul céu do Piauí e a destroçada
pedra simulação de ruínas
(onde os mocós se escondem)
onde somente as macambiras vingam.
Aqui os bois do agreste desgarrados
vêm pastar o silêncio e a calmaria
das tardes vêm ariscos ruminando
a lentidão dos dias o repouso
dos domingos espalhados na chapada.
Como outros bichos nos seus fósseis presos
também de pedra num momento quedam
quando a cabeça sobre as moitas param.

A paisagem de cinza devorada
e ruminada pelas cabras mansas,
e sobre as copas os despejados pássaros
por gaviões sonhados nas muralhas,
as copas onde os frutos se preparam
para a farinha e a fome desses dias.
E em nós a fome o perguntar calado:
desembestados cavalos cujo ímpeto
ou voo articulado nestas pedras
na seca solidão jamais veremos.
O tempo gasta estas pedras
com mil artifícios repetidos.
Contra a pedra e o tempo nos afiamos
e em nós porfiamos estas lembranças
que se vão desgastando para nunca:
estas formas de pedra simulacra
de bichos ou de sonhos são perguntas
ao claro azul às arenosas trilhas
que aceitamos aqui como os domingos
sem sucessão plantados na chapada.


“Estas pedras se gastam com o tempo.” O poema abre com uma afirmação que explora aliteração sibilante /s/ e a oclusiva /t/:

Estas pedras se gastam com o tempo.
Estas pedras se gastam com o tempo.

Lembrando que T.S. Eliot foi um dos referenciais adotados por Dobal para sua construção poética, observa-se que a utilização dessas aliterações pode ser interpretada como busca de uma melopeia que simbolize o próprio desgaste que o tempo opera nessas pedras, posto que, para Eliot, em A essência da poesia (Rio de Janeiro: Artenova, 1972, p. 53), “o som de um poema é uma abstração tão grande do poema como é o sentido”. Note-se que, além do /t/, diversas outras consoantes utilizadas também são oclusivas: /p/, /d/, /g/. As mesmas aliterações, /t/ e /s/, são repetidas nos versos seguintes.

Vão lentamente se desgastando
Vão lentamente se desgastando

A afirmação que abre o poema merece ainda mais uma reflexão. O tempo é um elemento primordial para a construção da poética de O tempo consequente, entretanto, em caráter imediato, não é o tempo que, necessariamente, desgasta as pedras. O tempo é apenas um instrumento, utilizado pelas próprias pedras para seu autodesgaste. Tal aspecto pode ser aferido ao observarmos os versos seguintes:

Vão lentamente se desgastando
e o tempo lhes sobra para as lembranças
que não conservam. […]

Encontramos então o verbo “desgastar” referido tão somente às pedras, e o tempo relaciona-se a “sobrar” e “lembranças”, que as pedras não conservam. Mas que lembranças seriam, que nem o tempo nem as pedras conseguem apreender? A afirmação seguinte poderia corresponder a um questionamento, mas há por parte do eu poético uma afirmação que a priori pode parecer enigmática.

[…] Acaso haverá
mais do que céu e sol mais do que pedra
desta seca paragem outra memória.

Transcrevendo a afirmação para uma possível ordem direta, propomos: “Mais do céu e sol, mais do que pedra, acaso haverá outra memória desta seca paragem”. Entretanto, a sensação de questionamento permanece. De qualquer forma, parece certo que, além do céu, do sol, representação do “tempo”, e das pedras, representação do “espaço”, não haveria nenhum outro repositório da memória acerca desta paragem seca, o sertão piauiense. Conforme a afirmação anterior, as pedras se desgastam, e o tempo não conserva a memória. Delimitadas pelo adjunto adverbial “aqui”, o restante da primeira estrofe estrutura-se na representação do “clarazul céu” e da “seca paragem”, bem como dos seres que ali buscam sobreviver.

Aqui o céu é a lembrança mais bela.

O “clarazul céu” também foi anteriormente associado ao tempo, representação já mencionada. Observa-se um forte contraste entre céu e terra: “a destroçada pedra simulação de ruínas”. No céu, encontra-se a lembrança mais bela; na terra, simulação de ruínas, esconderijo de mocós, ambiente onde “somente as macambiras vingam”. O mocó, Kerodon rupestris, é um roedor da família dos caviídeos, encontrado em áreas pedregosas do Leste do Brasil, do Piauí até Minas Gerais, do tamanho aproximado de um preá, geralmente um pouco maior, com cauda ausente ou vestigial, e pelagem cinzenta. Especialmente no Nordeste, é usado como alimento. Isso indica que, dentre seus predadores, encontra-se o homem, rústico sobrevivente de um mundo árido onde, reafirmamos, “somente as macambiras vingam”, e o homem, “… se tem alma não lhe arde o desespero / de ser dono de nada. Tão seco é o homem / nestes verões”, segundo os versos de Réquiem.

O abandono, a calmaria da tarde e do domingo são símbolos da condição desoladora do ser humano na poesia de H. Dobal. Como outros bichos, inclusive o homem, as reses deixam de representar o movimento que caracteriza a vida animal para se fixar em pedra, transformar-se em pedra, como naturalmente a matéria orgânica se fixa em fóssil com o passar das eras.

Como outros bichos nos seus fósseis presos
também de pedra num momento quedam
quando a cabeça sobre as moitas param.

Entretanto, aqui se caracteriza mais um símbolo, no qual o ser “torna-se pedra, fóssil”, se confunde com a paisagem, torna-se paisagem, imóvel, imutável, “quando a cabeça sobre as moitas param”. Representa uma terra desolada, um árido ambiente, onde repousar é morrer. Na paisagem de cinza onde ruminam cabras mansas – que pode ser o próprio homem –, a sobrevivência, “as copas onde os frutos se preparam”, está compreendida entre a farinha e a fome, a expressão exata do que lhe resta desses dias. A fome é caracterizada pelo silêncio, “o perguntar calado”, reforçado por referências que “jamais veremos”: cavalos desembestados – desenfreados; livres; que não mais se tornam bestas, animais de carga –, voo articulado, imagens que transmitem a ideia de movimento, de liberdade. Mas por não escapar da fome, restam as pedras, a imobilidade fóssil.

O tempo gasta estas pedras
com mil artifícios repetidos.

O tempo gasta estas pedras
com mil artifícios repetidos.

Os versos iniciais da última estrofe retomam elementos observados no início do poema. Contudo, a representação do tempo enquanto agente da ação verbal é inequívoca e associada à repetição. Ambos são agentes, então, pois é contra ambos que “nos afiamos”, nos chocamos, como pedra lascada e polida, e “em nós” se depositam as marcas, lembranças, desse desgaste que nos torna “fósseis”, “formas de pedra simulacra de bichos e sonhos”. Notadamente, há um neologismo, “clarazul”, presente na primeira estrofe, formado pela aglutinação dos determinantes claro + azul. Porém, no último parágrafo, retorna à forma analítica original. Simbolizaria o desgaste, a fragmentação do homem e outros bichos em fósseis, ou melhor, representações grosseiras de si mesmos? O adjetivo “simulacra” foi composto através do substantivo “simulacro”, que possui as seguintes acepções, segundo Houaiss: Representação de pessoa ou divindade pagã; ídolo, efígie. Representação, imitação. Falso aspecto, aparência enganosa. Cópia malfeita ou grosseira; arremedo. Suposto reaparecimento de pessoa morta; espectro, sombra, fantasma. Excetuando a primeira definição, mítica, todas as outras atribuem aos versos leituras interessantes e inusitadas. Entretanto, o que resta é tão somente a aceitação de domingos sem sucessão, portanto eternos, plantados na chapada, sem que em nenhum momento transpareça uma marca de individualidade, em que nos momentos de emprego da primeira pessoal do discurso encontramos a expressão coletiva do uso do plural: “Contra a pedra e o tempo nos afiamos / e em nós porfiamos estas lembranças / que se vão desgastando para nunca.”

Para Dobal, o tempo é o fazendeiro do homem. Esta a sua maior lembrança, consequentemente gravada em sua poesia, como uma recordação indelével gravada em pedra, resistindo às intempéries da vida, ainda que sem esperança e sem salvação, “neste imenso curral em que te amansas / triste e só campeador de lembranças”, conforme escreveu no poema Bestiário.

O poeta H. Dobal nasceu em Teresina, Piauí, em 1927. Faleceu, também em Teresina, em 2008. Sua obra poética é composta pelas seguintes obras: O tempo consequente (1966); O dia sem presságios (1970); A província deserta (1974); A serra das confusões (que foi desmembrada da obra anterior e ampliada, 1978); A cidade substituída (1978); Os signos e as siglas (1986); e Ephemera (1995). A esses, acrescentam-se os livros em prosa: A viagem imperfeita (que são notas de viagem, 1973); Um homem particular (um livro de contos, 1987); Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina (de crônicas, 1992); Grandeza e glória nos letreiros de Teresina (também de crônicas, 1997); além de antologias e edições comemorativas. Os poemas de H. Dobal aqui reproduzidos tiveram como texto-base a 3ª edição da Poesia reunida (Teresina: Plug, 2007).

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