Uma Poética Tijubinada

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Por Rafael de Oliveira, poeta.

Há escritores geniais que escrevem livros também geniais. Sem dúvida, uma afirmação tautológica, vez que um gênio só deve escrever coisas, obviamente, geniais. De modo geral, a maioria está reclusa em rígidas estantes da literatura à espera da graça de serem lidos com mais frequência e mais criticidade. Afinal, muitos deles influenciaram, de um modo ou de outro, a forma de encarar ou pensar a arte de escrever. Entre eles: Os sofrimentos do jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe; As flores do mal, de Charles Baudelaire; Um lance de dados não abolirá o acaso, de Stéphane Mallarmé; Ulisses, de James Joyce; Transblanco, de Octavio Paz; I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias; Juca Mulato, de Menotti Del Picchia; Macunaíma, de Mário de Andrade; Grande Sertão – veredas, de Guimarães Rosa… E, agora, este impressionante e saboroso livro O homem-tijubina, de Carvalho Junior, vem mitigar a ausência física de um Bandeira Tribuzzi, José Chagas ou Nauro Machado nas letras maranhenses. Para isso, Carvalho Junior embrenha-se pela vertente poética da criação de uma personagem lírica e, ao mesmo tempo, icônica dentro do imaginário de uma literatura bastante respeitada aqui e alhures.

O homem-tijubina, publicado pela Editora Patuá, 80 p., 2019, prefaciado por Celso Borges e referenciado por textos de Bioque Mesito e Antonio Aílton já justificariam por si só a grandeza do livro, pois fazem um mergulho na tessitura poética de Carvalho Junior com a mesma seriedade do ourives que manipula o cinzel para dar à pedra a forma de uma joia rara ou preciosa. Na verdade, são as invenções poéticas registradas entre as cipoadas e a folhagem da malícia da linguagem que tornam esse livro um invejável encantador de leitores, afinal, “o homem-tijubina renasce, reconstrói-se e abarca as suas raízes mais uma vez montado em um cavalo-de-palha” (p. 31).

Assim, Carvalho Junior descobre/desdobra a linguagem do homem que atravessa o lado mítico e também real desses diferentes mundos de “lugar nenhum” (p. 28). Por isso tudo pode entrar pelos olhos (do leitor) e bater direto no coração para ficar bombeando belas metáforas. Entre essas metáforas, o poeta passa a navegar/andar pelo universo da poesia em busca da essência lírica da tijubina que revelará a polivalência estético-simbólica da sua imagem poética. Não é por acaso que versos como “o poeta é um gato-do-mato/ perseguindo a cauda/ do vento selvagem” (p. 64) deflagram a capacidade de Carvalho Junior em garantir o máximo grau de sentido à (sua) poesia.

Por isso a beleza do livro está na criação de uma personagem que alcança em poeticidade o mesmo status literário de um Juca Mulato (saga do homem-caboclo), Riobaldo (homem-jagunço) ou Macunaíma (o homem-mítico ou a encarnação das três raças). Em si, o homem-tijubina se multiplica na “tijubina, tijutópica, tijussaura, tijuborgue, tijumenta, tijussapiens”. Esse é o destino [literário] dessa personagem que sabe que a vida é um delicado brincar “com os dados de mallarmé nos aclives/ declives do mundo novo da sua teia enrodilhada de pedras” (p. 33). Em sua genealogia, portanto, o homem-tijubina cresce “entre ladeiras de meninos chamejados de lendas” (p. 37). Por isso encanta logo à primeira re/vista, pois transparece uma quantidade de qualidades que transmutam o ser pela própria necessidade de adaptar-se à vida e ao mundo, sem perder, contudo, a essência daquilo que formará a sua mistura transfigurada em “um composto de unhas-de-gato e incoerências” (p. 23).

O homem-tijubina, sem dúvida, é a voz mais premente de quem rasteja ou contorce pelos campos minados de espinhos, tocos, entulhos e tantas outras coisas invisíveis que a modernidade salpica como lixo social, psicológico e/ou cultural. A partir daí o poeta se aventura entre as folhas-linguagem para trazer à tona dos versos os sentidos mais telúricos ou mais delicados da mãe-poesia. É nesse rastrear de vivências, esperanças e sortilégios que a poesia carvalhiana ressoa como uma re/composição sinfônica de vento, de pássaros, de água corrente, de largatos, de meninos ou de todos os farfalhares pelos caminhos pisados pelos pés de criaturas que transitam o tempo todo pelo chão da vida. O sentido da poética carvalhiana é, portanto, a própria razão de direcionar as antenas das palavras para as coisas aparentemente menos (ou será mais?) simbólicas, para, com isso, subtrair a matéria-prima que erigirá a enorme cadeia de metáforas. Aliás, por isso, Carvalho Junior consegue “supimpar” a língua e/ou a linguagem ao semear a(s) semente(s) da poesia em versos carregados de expressividade, como nestes por exemplo: “as borboletas sobreviventes marcham sobre os balaios de soluços que explodem no jardim” (p. 65).

Essa busca poética tem o DNA ancestral de quem sabe fabricar as “arapucas” da linguagem para que a poesia caia sem pressa ou medo nas armadilhas das palavras. E depois sem exageros ser presa nas lacunas dos versos. Essa é a missão do poeta, ou seja, entregar ao leitor o próprio eu-tijubina dentro de cada verso como uma metáfora que passe a significar um divisor de águas poéticas dentro da literatura maranhense da atualidade. Enfim, vida longa à poética-tijubinada de Carvalho Junior.

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