.Inventário de Sonhos Possíveis: Itinerância Poética

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Guilherme Salgado (MG) 31 anos. É poeta andarilho e animador de processos educativos, viaja pelo Brasil de forma autônoma e solidária, a bordo da Komboteca Itinerância Poética. Publicou os livros “Itinerância Poética” (2013), “Estirpe” (2014) e o livro postal “Poesia é Desenho” (2015), em parceria com a artista visual Ludmila Britto.


Que a razão não embriague minha capacidade de voar

No início era o verbo, verso… …ação! Creio que uma das coisas que nos faz gente é nossa capacidade de decidir. Assim me tornei poeta, decidindo-me, metendo a palavra no oco do mundo, tirando da gaveta e expondo ao papel e aos ouvidos algumas “loucuras de juízo”. Escrevo poesias, pequenos contos, reflexões oníricas e outros textos, que eu me lembre, desde os 14 anos. A vida passa, a gente cresce e vai tomando decisões enquanto novos adultos.

Nas Minas Gerais em que nasci e me criei até os 24 anos a poesia ressoava das “peladas” jogadas na rua, das corridas de bicicleta atrás do “trenzinho da alegria”, das frutas frescas furtadas do pomar de Seu Odorico, das conversas com os antigos, dos provérbios das velhas avós, enfim, das presepadas comuns a infância nos interiores. Aos 18 anos sem saber pra quê entrei pra faculdade de fisioterapia e lá descobri a anatomia, disciplina que fui monitor por quatro anos e lembro que os termos latinizados despertou minha paixão pelas palavras e suas origens, suas histórias. Foi lá também que me encontrei com a educação popular e por si com a cultura popular. Me formei e segui para uma pós-graduação no interior de São Paulo, nova terra, novas pessoas, novas culturas, isso tudo me estimulou a voltar a escrever, com alguma consciência a mais. Foi nesse momento que percebi a escrita enquanto necessidade, como processo de auto cuidado mesmo, pois me tornando um ser cada vez mais pensante, rebelde com causas, esta me ajudava e me ajuda muito a esvaziar cabeça, transformar minhas idéias, pensamentos, ideologias.

“Andei por andar andei, mas todo caminho deu no mar”. Alguns trajetos me levaram a Bahia, e foi lá que quebrei “minha régua e meu compasso”, me tornando um ser cada vez mais sem medidas. Lá me encontrei com alguns sujeitos e coletivos que trabalham com as várias linguagens das artes. Esses encontros permitiram com que eu pudesse olhar pra mim mesmo com outros olhos, olhares que vem contribuindo para o desvelar de minhas potências criativas enquanto sujeito pensante e fazedor de coisas. Nesse momento é que começo a reunir e organizar esses diversos escritos, que por mais de uma década foram se amontoando de forma caótica em velhos papéis, cadernetas, canto de folhas avulsas e arquivos de computador. Numa primeira reunião de poesias, decidi junto ao incentivo e apoio direto de dois amigos, diagramar, desenhar e lançar o que eu chamei de Livro Primeiro: Itinerância Poética. Ao mesmo tempo forjamos um selo editorial independente chamado Edtóra, pois nosso processo nascia na tora mesmo, sem editais, sem editoras. Daí rolou uma produção intensa de sentidos, afetações, inquietações e materialidades. De forma inter-dependente e autônoma foram impressas e montadas manualmente 500 cópias desse material. O processo de idealização, organização dos escritos, diagramação e impressão foram incríveis, mas aí veio a parte cheque do processo, divulgação e distribuição: “- e agora José?”

No diálogo com um amigo professor de Belas Artes é que veio o sinal: “- se teu livro chama Itinerância Poética e pelo que vi, cada poesia foi escrita num lugar diferente, vá rodar cabra, dá um jeito, circula seu material na raça, invente lançamentos por onde quer que vá, enquanto durar o estoque de livros”. E assim comecei a fazer, forjar lançamentos aonde eu ia, juntando a necessidade de viagens do trabalho de sanitarista que desempenhava na época ao interesse/desejo e também necessidade de circular meu material. Além de Salvador e Cachoeira na Bahia, nessas primeiras viagens articulei lançamentos no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Sergipe, sempre em articulações com pessoas, coletivos, saraus e instituições de cada local. Depois dessas primeiras incursões, passei a levar essa história cada vez mais a sério, até que pedi demissão do trabalho formal, comprei um Fusca 1979 e comecei uma viagem de Minas a Bahia, passando por várias cidades, com o mesmo movimento de antes.

Nessas andanças comecei a ganhar muitos livros autorais de poetas e escritores independentes com as mesmas questões que a minha, problemas na distribuição / vendagem dos livros. Além disso formei um pequeno sebo de livros usados angariados na minha pequena biblioteca e assim foram 6.000 km: Timóteo, Vitória da Conquista, Salvador, Palmeiras, Formosa do Rio Preto, Brasília, Uberlândia, São Carlos, São Paulo, Belo Horizonte. Esse sonho real me levou até a Ilha de Cuba, nesse caso não de Fusca, que no momento passava por uma intensa reforma, após essa longa aventura. Isso tudo aconteceu ao longo dos anos de 2013 e 2014. Essa foi uma aventura primeira que iria de algum modo re-significar a vida desse sujeito que vos fala.

Mal cabendo no fusca, em meio a tanto livro e incentivado pelo lançamento do Livro Segundo Estirpe: pequenos contos e algumas poesias no final de 2014 em São Paulo, pelo selo independente Poesia Maloqueirista. Somado a recém notícia da paternidade, quando todos esperavam meu retorno a uma vida “normal”, a um emprego formal e a uma vida familiar comum… tive a idéia de ampliar o sonho e trocar o Fusca por uma Kombi 1999.

Aí então o projeto começa a se forjar enquanto movimento e tomar formas e sentidos mais palpáveis. Junto ao meu pai e um primo adaptamos toda a Kombi para receber um sebo, uma biblioteca, um cine-clube, cama e cozinha, então surge uma nova aventura… numa primeira investida subo pra Bahia, onde fico por um tempo, morando e circulando pelo estado por seis meses, pela Chapada Diamantina, Recôncavo e região metropolitana de Salvador. Em Salvador iniciamos uma intervenção na lataria da Kombi, num grafitti iniciado por Flos, e escritas por Laura Castro e intervenções de outras figuras encontradas pelo caminho.

Em meados de 2015, realizo a ousadia maior, da Bahia a Maranhão pelo Sertão e do Maranhão a Bahia pelo litoral. Subindo pelo sertão baiano o processo se deu de diversas maneiras, algumas cidades planejadas, articuladas previamente, com apoio de famílias, coletivos, instituições, saraus ou então eu simplesmente chegava, estacionava em uma praça mais central, armava o material, puxava o toldo e fazia um café, daí estava iniciada a disposição ao encontro pela curiosidade, pela poesia, pela palavra, pela literatura, pela simples necessidade de estarmos juntos a partir da palavra. Poetas populares, tradicionais, contemporâneos, músicos, artistas, professores, crianças, profetas, andarilhos e seres viventes das ruas era comumente o público que se achegava. Foram cerca de 70 cidades em todos os estados da região nordeste, mais de 12.000 km, sete meses, acolhimentos em incontáveis casas, centros de cultura, saraus, eventos de arte, coletivos, etc.

Aos poucos algumas intencionalidades do projeto foram se desenhando como: ocupar espaços públicos com coisas públicas, se associar a projetos e coletivos que ocupavam estes espaços nas cidades, participar de eventos de literatura e poesia, como saraus e recitais, forjar lançamentos do Estirpe, bem como expor todo material da Poesia Maloqueirista com os 26 livros de 21 poetas, ofertar outros livros da Edtóra e demais selos independentes, realizar sessões de cine clube como entretenimento e oportunidade para o debate de história, política, direitos, meio ambiente e outras coisas, angariar produções literárias loco-regionais para ampliar a diversidade da biblioteca, com ênfase na poesia, na literatura contemporânea independente, ser uma galeria itinerante de artes visuais, enfim, polinizar e ser polinizado pelas poesias e produções artísticas por onde passava.

Nesse meio tempo é impossível não lembrar dos poetas populares e da festa de São João Evangelista em Uáuá no sertão da Bahia, do Roteiro Poético Boêmio do Crato-CE, do reencontro dos poetas em EXU-PE, momento este que culminou na criação de um sarau permanente chamado Flor do Mandacaru, do cine-clube e da oficina de percussão popular brasileira com a juventude do Projeto Adimó em Picos-PI, do novo grafitti do parceiro Dband e o acolhimento dos poetas em Teresina-PI, das intervenções junto ao Circo Tá na Rua em São Luís-MA, a parceria com o Coletivo Artezona em Pipa-RN, do necessário encontro com Miró da Muribeca e Valmir Jordão no Recife, do Sarau de Baixo e seus guerrilheiros urbanos em Aracaju-SE, do reencontro com a Bahia através do Fica na Rua durante a Flica junto ao Pouso da Palavra em Cahoeira-BA, além de outras incontáveis e incríveis vivências.

O desfecho da viagem foi massa, por estar retornando a Bahia, re- encontrando amigos e ainda articulando o lançamento do terceiro livro, um livro de arte-postal-poema impresso com o selo Edtóra, feito com muito carinho em parceria com a artista visual Ludmila Britto. Só que, no meio das flores espinhos, a Kombosa manifestou sinais e sintomas de graves problemas no motor e suspensão, tentei arrumar, em vão, tive mais prejuízos e a komboteca teve que ser rebocada até Minas, foi-se a economia restante. Após avaliada por Edinho, mecânico de confiança, o diagnóstico: ”precisa de um novo motor e de uma nova suspensão”… aí danou-se, neste momento surge a proposta do financiamento coletivo.

Dois meses intensos de campanha e não é que deu certo, rolou a grana, mais de 100 pessoas de várias lugares do país e de fora con- tribuíram, conseguimos o montante para a recuperação da Komboteca e no início deste ano estreamos novo motor, nova suspensão, novas pinturas, novas rotas.

Logo então surgiu a oportunidade de vir morar em Fortaleza, assim tornei a subir o mapa: Guanhães, Serro, Diamantina, Montes Claros-MG, Guanambi, Itacaré, Salvador-BA e enfim, novamente no Ceará. Depois de quatro meses em Fortaleza e região estamos de volta as estradas. A idéia é seguir, enquanto houver poesia, rua, gente, arte, até quando o corpo, a lataria, o bolso e o motor agüentarem ou até algum “mecenas” der o ar da graça. Pois: “Ávida, a vida são os próximos dez segundos, o resto é fantasia”.

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