MÁRCIO FARIAS | PE Graduado em Cinema Digital na Faculdade Maurício de Nassau. Realizador dos curtas; Ciclos, como Roteirista, Produtor e Diretor; Profissional da Noite, como Roteirista e Produtor; Inacabado, como Roteirista, Produtor, Montador e Diretor; Case, de Adalberto Oliveira, como Roteirista e Montador e Dique, de Adalberto Oliveira, como Produtor. Todos trabalhos universitários e com passagens em festivais Nacionais e Internacionais.
Convidamos o cineasta Márcio Farias para narrar sua experiência audiovisual em Itacuruba, uma cidade mergulhada na melancolia, em contato permanente com os abismos… Qual o limite entre o cinema e a tristeza?
Uma forma de definir a minha relação com o cinema no meu primeiro trabalho como diretor, seria através da utilização de uma palavra: Intuição. Ela é, no meu ponto de vista, uma característica que deve ser primordial para um artista em geral, por que será através dela que uma junção dos mais variados fatores determinará o começo e o fim da realização de uma obra.
Se não existir um casamento perfeito entre tudo que você for utilizar em sua criação para dar uma liga, consciência própria e uma significação que esteja além do que aparentemente seja visível nela, possibilitando nas mais variadas formas de leitura, a obra perde o seu valor e não se transforma em algo atemporal por conta disso que defino esse processo e a todos os outros subsequentes, como uma busca constante por uma boa intuição sobre tudo que devo fazer.
O projeto “TARJA PRETA” começou a tomar forma #de modo inconsciente dentro de mim logo após que descobri e aceitei ser uma pessoa que sofre de ansiedade, angústia e principalmente depressão passei muito tempo fugindo dos sintomas e mesmo após ser diagnosticado com esses problemas, eu demorei a aceitar, por achar que se tratavam de problemas para pessoas “fracas e incapazes” de enfrentar qualquer situação.
Isso foi no primeiro semestre do ano de 20111Em Setembro do mesmo ano li uma reportagem, num Jornal de Recife, sobre um caso particular e bastante desconhecido por grande parte das pessoas que moram no Estado de Pernambuco. Se tratava da história da pequena cidade de Itacuruba, localizada no Sertão do meu Estado, ao qual uma grande porcentagem de moradores sofriam de Depressão, além de outros tantos problemas psicológicos.
O fato causou uma tremenda curiosidade, já que se tratava de algo que na minha cabeça só condizia com pessoas que viviam em grandes cidades, por pura falta de conhecimento, e fui me aprofundando mais sobre o que acontecia lá. Algo me chamou bastante atenção, os moradores que apareciam na reportagem aparentavam ter um imenso vazio, como se tivessem perdido a própria alma e a procuravam sem parar através de atividades que eles mesmos criaram naquela nova realidade.
A antiga cidade ficava na beira do rio e tinham terras muito férteis, com isso todas as gerações de moradores adquiriram esses costumes, ao qual estão enraizados até hoje. Com a mudança mal planejada pelas autoridades daquela cidade e do Governo do Estado, eles foram largados no meio do nada, num local distante de tudo e em terras inférteis. Suas almas, com isso, foram roubadas após os distanciarem de seus costumes e cotidianos enraizados.
Através de minha pesquisa pela cidade, conheci moradores que poderiam de alguma forma me ajudar a realizar o filme. As informações repassadas por elas foram sendo confirmadas dia após dia, ao qual eu permanecia lá. Não se tratava só de uma questão relacionada a saúde e aos medicamentos, mas também de silenciamento sobre essa realidade. Seja de forma auto induzida (por conta de uma reportagem sensacionalista feita por um canal de televisão nacional, os intitulando de “doidos” e não os tratando com o devido respeito) ou através dos políticos e poderosos da cidade, para que esse assunto não fosse repercutido muito (criando assim resistência dos próprios moradores em expor a realidade, por receio de sofrerem represálias). A escolha do título foi feita logo no começo por conta disso tudo, pois quis dar uma interpretação mais ampla do que a aparente, além dele ser simples e objetivo, por isso o título “TARJA PRETA”.
Itacuruba me aparentava de alguma forma ser realmente uma cidade fantasma, com uma energia negativa que era sentida por qualquer pessoa que a frequentasse e que criava uma imersão não intencional em todos. Após as primeiras entrevistas com os potenciais personagens, permaneci um bom tempo observando as ruas e a seus moradores, para tentar entender como se dava a ligação entre as pessoas e a cidade em si.
Tinha o desejo de fazer um documentário mais observacional sobre o cotidiano daqueles moradores, por acreditar que feito assim, eu conseguiria uma maior imersão do público quanto aquela realidade/rotina e uma menor interferência no filme. Esse desejo foi aumentando ao perceber que, de certa forma, as ruas de Itacuruba tinham uma similaridade com o que chamamos de “Rat Race”, ao qual os moradores a percorriam constantemente a procura de uma atividade, ou seja, uma nova identidade para sair daquele cotidiano vazio, mas nunca conseguiam. O documentário observacional foi uma grande referência para mim no projeto, principalmente as obras do cineasta Marcelo Pedroso, mais especificamente com o seu filme “Balsa”.
Acreditava que para falar sobre a perda da alma e a sua constante procura feita numa cidade que aparenta ser um labirinto eterno e ao qual nunca a encontram, nada melhor do que o fazer sensorialmente. Imaginava fazer de forma ainda mais arriscada do que foi mostrado no projeto, não utilizaria nenhum tipo de depoimento, mas acabei mudando um pouco essa ideia por conta de acontecimentos que veremos a seguir.
A intenção era expor o cotidiano daqueles moradores através de pequenos recortes paralelos entre os personagens, criando assim pequenos curtas, com cada um contendo uma narrativa que se referisse àquele lugar; seja ligando os moradores entre si, o relacionamento dos moradores com a cidade, deles com os medicamentos e assim por diante, mas mantendo a base de todo o projeto, que é o vazio que sentiam e a busca constante por uma nova alma/identidade.
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Para isso, a escolha pela fotografia tinha que se adequar a pretensão de se fazer um documentário sensorial e observacional da cidade de Itacuruba, além de que não tirasse de forma alguma a força daquela realidade e do que acontecia lá, simplesmente dando clareza a situação em si. Por isso foi quase instantâneo a decisão de usar Sebastião Salgado como a referência fotográfica, já que a base de seus trabalhos é a de utilizar a sua arte para fazer as pessoas refletirem, ao apresentar a realidade de certas condições humanas e da situação econômica do local retratado, principalmente #como foi feita na sua exposição “Trabalhadores”.
Sua intenção é gerar debate ao redor dessas questões, expondo-as da forma mais clara possível em suas imagens em preto e branco, por utilizar a ausência de cor como um significado de ausência de informação, focando na clareza da situação, dando importância ao contexto e impacto do momento retratado, nada mais adequado do que utilizar essa referência nesse meu trabalho. A intenção de usar como referência fotográfica o trabalho de Sebastião Salgado aumentou logo após ler no livro “Trabalhadores”. O texto introdutório (escrito por ele em parceria com o escritor Eric Nepomuceno), me chamou bastante atenção e o ligou diretamente ao projeto que eu pretendia fazer:
“… A história do Bicho-Homem, o que se adapta, o que sobrevive, o que crê. O que resiste, se preserva. A História do mundo é sentida acima de tudo como um rosário de grandes desafios, a reafirmação de um fato que se repete a cada dia: a história do ser humano é a história de sua perseverança…”
Além disso, no livro tem uma fotografia que complementa na obra dele uma ligação direta com a cerne de “TARJA PRETA”. As mãos fortes e calejadas de uma agricultora ao qual Sebastião fotografou com tamanha beleza, é que podemos entender claramente o contexto daquela obra. Quando um comportamento ou um trabalho está enraizado culturalmente nas pessoas – mas quando elas a perdem – acabam também retirando juntamente a alma daquele ser humano, que se vê obrigado a percorrer novamente atrás dela para ter algum significado na vida, ou tentar encontrar outra para substituir aquela alma perdida, e quando isso não é mais possível, causam os transtornos nos moradores e na cidade, já que ambos estão fortemente ligados. Foi assim que encontrei a alma do projeto e pude entender um pouco o que acarretou aquela nova realidade com aquelas pessoas largadas à sorte, por péssimas e desonestas decisões políticas, que perduram até hoje. Outra referência fotográfica foi a americana Martha Fleming-Ives, ao retratar o cotidiano de seu pai que sofria de depressão. Ao analisar suas fotos, percebi que, mesmo existindo uma ligação direta com o retratado, ela tentou de forma discreta e objetiva manter um certo distanciamento do objeto, nesse caso o seu pai, assim como eu de Itacuruba.
Durante o processo, eu e a equipe fomos pouco a pouco nos sentindo presos numa realidade quase paralela e desconhecida por nós. As pessoas tinham muito medo e receio de falarem sobre o que acontecia em Itacuruba, tanto quanto ao que aparece no filme, como a outras tantas histórias que fui ouvindo durante esse período, através das poucas pessoas que tinham coragem de falar abertamente sobre isso.
Uma que sempre me vinham contar era a de um vereador que tinha sido assassinado a tiros, possivelmente por rivais políticos, na rua que eu estava hospedado e que fica na esquina com a prefeitura. Sensações de receio quanto a violência local e a censura imposta através dela era mais palpável e muito mais perceptível a cada dia que passava, mesmo que não dito de forma direta pelas pessoas que eu entrevistava e que não queriam aparecer no filme.
Tinha quase um ar de cidade daquelas encontradas nos filmes de Sérgio Leone, ao qual, mesmo quando não a víamos, percebíamos que a violência estava bastante presente. Foi por isso que vi a possibilidade de usar também como referência a esses filmes; principalmente no começo do curta, ao utilizar o isolamento, o desgaste, o silêncio e principalmente a morte como fatores que fazem parte daquele lugar. O início do curta “Tarja Preta” foi claramente inspirado em “Era uma vez no Oeste”, desde as escolhas dos planos, do que filmar e do desenho sonoro.
O processo de Pesquisa e Pré-Produção ocorreu durante um ano e meio até as filmagens, nesse período vimos uma pequena mudança no comportamento das pessoas. Quando começamos a filmar, alguns moradores criaram coragem e tiveram vontade de dar seu depoimento. Pouco a pouco, a desconfiança com a gente foi passando e surgindo quase que um pedido de socorro por parte deles, através dessa necessidade de se abrirem. Logo que fiz isso, vi que não poderia continuar completamente com a proposta inicial, de não ter depoimentos, para finalmente dar voz para aquelas pessoas que tanto sofriam.
Quis após isso tudo – e também após presenciar algumas situações durante as filmagens – fazer o possível com que essa obra servisse de um alerta, como também para chamar atenção de todos àqueles que o assistissem. Minha percepção sobre política, humanidade e até da vida mudaram muito durante todo o processo do filme, ainda mais após ser afetado com a morte de minha mãe durante esse período todo…
Me sentia como eles naquele momento e a cada dia que passava naquele projeto, me afundava naquela escuridão junto deles, virei um pessimista que via que aqueles moradores estavam destinados a somente uma coisa, assim como ainda continuarão destinados se nada realmente for feito naquela cidade… que é aos poucos falecerem e sumirem definitivamente do mapa, através de uma forma atualizada de dizimar uma população. Quis dar uma pancada no espectador de todas as formas, inclusive utilizando uma cena que cria mau estar, mas que era de fundamental importância ser mostrado, por acreditar que se tratava de uma forma pouco comum e até mesmo desesperadora de pedir socorro. O fim do filme sintetiza a minha percepção do destino horrível daquelas pessoas, enquanto são “obrigadas” a utilizarem os medicamentos como uma forma de controle, até elas definharem em definitivo, como também o meu momento durante aquele período e que até hoje carrego feridas abertas por conta dessa experiência…