Cinematografia da saudade

| |

Por Anna Apolinário*

Apolinário vem do meu pai. É um nome de origem latina, significa “Consagrado a Apolo”, o deus da mitologia grega, irmão gêmeo de Ártemis (arqueira selvática, deusa da caça), Apolo é uma deidade do sol, da música, beleza, poesia, artes, profecia. Assim como Ártemis, Apolo também carrega arco e aljava de flechas, domina a arte de atirar.  Apolinário é um epíteto exuberante, antigo, iluminado e perfumado de poderes poéticos e isso eu aprendi a encarnar, na vida e nos livros. Além da herança apolínea, sinto que minha natureza é irremediavelmente dionisíaca, insanavelmente lírica. Talvez eu seja essa estranha amálgama dos dois, um fruto alquímico pairando na surrealidade do mundo.

Tenho pensado muito em meu pai. Agora ele está distante, fora da Paraíba, mais distante do que sempre esteve. O que ainda vibra são reminiscências esmaecidas. Hoje uma memória me remexeu, lembrei de uma noite no cinema, isso volveu um estranho fio de afeto que o tempo não corroeu. Quando eu e minha irmã éramos adolescentes, painho nos levou ao cinema. Mas não era qualquer cinema, fomos ao Cine Municipal, um dos maiores e mais antigos cinemas de rua da cidade. Ficava ali na Rua Visconde de Pelotas, no Centro, próximo à praça Rio Branco, hoje conhecida como praça do “Sabadinho Bom”, onde acontecem rodas de samba e chorinho todos os sábados ao meio-dia. O Cine Municipal era um cinema grandioso, foi inaugurado em 1965, com mais de 900 lugares, as filas eram imensas, exibia filmes em numerosas sessões diariamente.

Na noite em que fomos à sessão, creio que em 1997, o cinema já estava em decadência, o número de poltronas estava bastante reduzido. O filme exibido era “O Exorcista” e a sala escura parecia uma cápsula envelhecida, sufocante. Eu e minha irmã ficamos chocadas, assustadas, mesmerizadas com as cenas da menina possuída. Painho assistiu a tudo impassível, pernas cruzadas, silencioso, apolíneo como sempre. Naquela noite não conseguimos dormir, o medo comeu nosso sono e a lembrança de tudo aquilo permaneceu em nós até hoje. Naquela noite nasceu meu gosto por filmes de terror, com o tempo o medo se dissipou e o interesse pelo gótico e gore, tanto no cinema como na literatura, cresceu.

Lembro que o cinema sobreviveu até o ano de 2007, mas não era o mesmo cinema, funcionava ainda, mas apenas com a exibição de filmes pornográficos. Lembro de passar em frente ao saudoso Cine Municipal, no auge dos meus 20 anos, no caminho das minhas muitas idas à Música Urbana, a longeva e singular loja de discos de João Pessoa. Pouco tempo depois, o cinema morreu de vez e virou igreja evangélica, hoje o lugar é um ponto comercial, como findaram quase todos os prédios dos muitos e antigos cinemas do centro da cidade.

As salas de cinema de hoje funcionam todas dentro de Shoppings, eu detesto isso. E a maioria dos filmes estão nos streamings, nas plataformas, em qualquer tela, do notebook ao smartphone, o acesso é amplo, a variedade é grande, as pessoas não se interessam tanto em ir ao cinema. O único cinema alternativo que temos na cidade é o Cine Banguê, que fica no Espaço Cultural, o Banguê exibe filmes de arte, grandes clássicos, filmes brasileiros e estrangeiros, um respiro e um refúgio para uma cinéfila como eu. Mas de tempos em tempos o Banguê fecha, por problemas técnicos ou para manutenção e ficamos órfãos novamente, esperando ansiosamente o momento do retorno. Entre as poucas coisas que aprendi com painho o costume de ir ao cinema permaneceu. E a magia disso nunca morrerá em mim.

__________________________

Anna Apolinário (João Pessoa/PB) é escritora, poeta, pedagoga e Mestra em Letras/Literatura (UFPB), produtora cultural, organizadora do Sarau Selváticas e da Cia Quimera – Teatro & Poesia. Seu livro mais recente é Beijos de Abracadabra – poemas automáticos bilíngues (Triluna, 2023), obra lançada com fomento da Lei Paulo Gustavo Estadual e Fundo de Incentivo à Cultura Augusto dos Anjos – FIC SECULT -PB.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!