Por Floriano Martins
NOTA DE EDIÇÃO: Entrevista realizada em 2004, como parte do plano editorial de uma antologia da poesia de Alberto Pimenta (Portugal, 1937), que acabou não concretizando. Conheci o poeta em Lisboa, poucos meses antes de lhe propor antologia e entrevista. O livro não saiu por alguma misteriosa razão burocrática. Falamos por telefone e Alberto sugeriu nos encontrarmos em uma igreja, em seu interior. Seu humor refinado sugeriu o lugar para ver a minha reação. Rimos muito, naturalmente, e dali saímos para um restaurante, onde passamos muito bem assistidos por uma porção inesgotável de joaquinzinhos fritos e um belo tinto que ele escolheu. O diálogo já estava temperado, quando preparei as perguntas elas já se encontravam entranhadas daquela nossa prazerosa conversa.
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FM | Desde quando inexistes?
AP | Desde que Pádua Fernandes entendeu definir assim, por metonímia, a relação dos meus textos com o público, ou melhor, do público com os meus textos. Acho que foi da parte dele, a esta distância toda do Atlântico, um lance de dados com muita perspicácia e sabedoria.
FM | Em que te distancias hoje do protagonista do Discurso sobre o filho-da-puta?
AP | Mas quem é afinal o “protagonista” do Discurso sobre o filho-da-puta? Deve ser o filho da puta, claro. Em 1977, no livro simbólico e realmente autobiográfico Repetição do Caos, escrevi: “1956: uma noite prenderam-me por eu berrar em plana rua e a plenos pulmões que a polícia, a autoridade em geral, eram tudo filhos da puta. / É extraordinária a minha precocidade: hoje não seria capaz de dizer melhor. Mas acrescentava: – Os outros também.” Assim, em 1956, como se vê, a minha opinião não estava ainda completa. Em 1977 (ano de publicação da 1ª edição do Discurso), estava. Em 1997 não se havia alterado. Nem hoje, como se pode ver pela mais recente edição do Discurso, que é de 2003. Mas amanhã pode ser que eu chegue a outra opinião! O mundo está a mudar, não é? O pior é que eu não dou ouvidos a noticiários e desportos em geral.
FM | Recordo teus jogos em torno das palavras nu e cu (“Metade da palavra cu / é como metade da palavra nu. / Mas a outra metade da palavra cu / não é como a outra metade da palavra nu”). O que é semelhante e diferente se pensarmos na relação entre vida e arte que faz com que apenas metade de uma seja como metade da outra?
AP | O que se passa com as palavras cu e nu não se passa com as palavras vida e arte: só têm uma letra em comum, e ainda por cima uma no cabo, outra no rabo. Mas por aí também lá chegamos: todos os caminhos vão do cabo para o rabo. O que sucede com a vida é que ninguém sabe ao certo se ela é o que nos acontece ou o que nós fazemos que aconteça. Já com a arte depende da perspectiva: há a de quem faz e a de quem curte. Afinal está bem: depende de ser o nosso nu, ou o nu de outra pessoa, e quem diz isto do nu diz do cu, claro.
FM | De que maneira o excesso inconseqüente, a recorrência banal, com um acentuado ímpeto de apenas fazer rir, esfacela uma aventura tão radical quanto a do teatro do absurdo de Ionesco?
AP | Julgo que Ionesco é que esfacela o discurso trivial do ser humano. Esfacela-o pela técnica do espelho (um bocadinho côncavo ou um bocadinho convexo, e aí está a arte, como no caso dos polidores de lentes). Claro que há outras técnicas, mais aristotélicas: a da parede, do vidro, das nuvens etc.
FM | De que maneira vês o tratamento paródico dado a Fernando Pessoa pelo Cesariny de O Virgem Negra e o Saramago de O ano da morte de Ricardo Reis?
AP | Nenhum dos dois me parece que trate parodisticamente de Fernando Pessoa, mas sim de alguns modos do culto (ou dos cultos) a Fernando Pessoa. Thomas Bernhard fez o mesmo em relação a Gustav Mahler. De resto a paródia, como constatou Th. W. Adorno na Teoria estética, é talvez, com o humor, a única forma não kitsch de a modernidade homenagear o que já passou.
FM | Ao prefaciar o livro A vida é assim, do brasileiro Alberto Pucheu (Ed. Azougue, 2001), observas que a poesia, “sendo a voz de todos os tempos, por fora se compõe do discurso do seu próprio tempo”. Está bem. Mas logo concluis o prólogo dizendo que o Brasil está “há pelo menos meio século na crista da onda deste surf que começou com Homero”. Isto soa falso para brasileiros que convivem com distorções e desgastes em torno da linguagem poética e seus desdobramentos. De que maneira Portugal não pega a mesma onda que Homero?
AP | O Brasil, desde meados dos anos 50, quando Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari lançaram o modo concreto da poesia (na Europa foi o Gomringer que o fez, mas houve um real entrelaçamento), colocou-se na crista da onda. Se a onda entretanto espraiou, o defeito não é deles, é da natureza, que fez as ondas assim. Mas até dentro da continuidade do modo lírico, noutra onda portanto, creio que poetas como João Cabral e Drummond bastariam para justificar o que eu digo. Ou o que eu disse. Portugal!? Tradicional e conservador sim, mas tanto como voltar a Homero também não.
FM | Olha, talvez o ludismo em torno da onda seja divertido mas a condizer-lhe com a realidade há aspectos inúmeros. O beco sem saída a que nos levou o Concretismo não possui elo algum com a dinâmica do surf, a menos que pensemos naquelas esteiras de academias de musculação. Drummond e Cabral são de gerações distintas e também não foram tão longevos no surf, cedo se desfazendo da prancha. Sendo tão tênues os conhecimentos recíprocos de nossas culturas, é bem natural que estejamos sempre a sublimar a realidade um do outro. Assim não percebemos que há ondas que já nascem espraiadas, por um defeito especial qualquer. É preciso conhecer bem os meandros da poesia portuguesa, por exemplo, para saber da inexistência concreta do que se conhece como Poesia 61. Da mesma maneira, há uma leitura excessiva dos desdobramentos do Concretismo no Brasil, quando este, se não é inexistente, pende mais para um malefício do que o contrário, em grande parte ao dar-nos uma falsa ideia de outro jogo semântico, desta feita entre as palavras rigor e vigor. Resta saber onde está o nu, onde está o cu. Como sabê-lo à distância, diante da quase inexistência de diálogo entre nossas culturas?
AP | É curiosa a preocupação (luso-brasileira ou vice-versa) com o Concretismo… parece a dos santos medievais com o diabo. Todos os movimentos estéticos nascem, crescem e passam – Surrealismo, Futurismo, e por aí fora ou dentro. O Concretismo teve um papel importante de depuração de muita enxúndia poética. foi ao cerne, descascou, descascou, e pronto, ou ponto. O “Soldien” de Emmett Williams, ou a “Elegia para o Che” do Joan Brossa, são clássicos no sentido puro e próprio. A mim, do Concretismo (como de todos os movimentos) ficou-me a sua lição, mas o que eu escrevo é a minha poesia, e, como não entrei num caminho murado, não tenho problemas de saída. É até onde as pernas derem. Dizia António Pedro (o poeta e homem de teatro que partiu do Surrealismo e depois fez o seu próprio caminho dentro dele) que não há antigo ou moderno, ou correntes… há bom e mau. Feliz de quem tem fé no bom, e não nas correntes em si até ao fim.
FM | Que importância hoje se pode ver na atuação, em Portugal, de algo como Os Felizes da Fé? Acaso as obsessões conceituais (performance, happening, intervenções) não constituem um ardil para dissolver um princípio de representação que é reflexão intensa da realidade ou acobertar uns maltrapilhos estéticos espertalhões que roubam proveito de tudo?
AP | Os Felizes da Fé foram (quem sabe se poderão voltar) um grupo de Teatro de Rua, com atuações muito brilhantes, outras menos, como acontece com todos os grupos de teatro, de rua ou palco. Proveito? Não tenho notícia de que tivessem tirado algum, econômico ou político, digamos, de poder. Discordo totalmente de que a ação poética e também dramática (performance, happening) seja necessariamente o que se chama conceptual. É ação! Claro, em relação à guerra tem essa coisa de usar molho de tomate e não sangue. No tempo em que atuou teve a importância que tem o Teatro de Rua desde que existe: divertir e desinquietar.
FM | Não me referia, ao falar em proveito, a Os Felizes da Fé e sim ao que temos hoje em termos de performance e happening, à distorção prática e conceitual dessas formas de representação. Talvez possam hoje ainda divertir, mas já não inquietam. Até que ponto teriam sido desgastadas essas maneiras de atuar?
AP | Hoje, toda a atuação-espetáculo fora da bosta da TV (ou, vá, dos teatros residentes) inquieta desde a manicure até ao catedrático.
FM | Em Lisboa degustávamos um bom vinho, juntamente com a poeta Rosa Alice Branco, enquanto apaixonadamente comentavas a respeito da sucessão no Vaticano e suas implicações. Estava ali implícita a relação entre domínio e transfiguração da vida.
AP | Se o vinho é o sangue de Cristo, então nada mais a propósito que uma boa conversa sobre o seu vigário na Terra. Segundo a profecia de Malaquias, este bom polaco será o penúltimo sucessor de Pedro. É inquietante! Que é que se seguirá? A água ou a coca-cola?
FM | Vês alguma relação entre happening e Surrealismo?
AP | As exposições surrealistas foram quase sempre formas de happening, e o surrealista Salvador Dalí um dos seus maiores profetas.
FM | Em muitas coisas Brasil e Portugal se aproximam, a despeito da falácia em torno do carnaval. Também temos medo do risco, nosso racismo é igualmente econômico, e se acaso fazemos dançar melhor a língua, por outro lado, minguamos essa aparente liberdade por falta de assunto. Este é o maior dilema de nossa cultura: onde estamos, o que somos? Mesmo que igual dilema se possa viver em Portugal, o que se espera aí do Brasil?
AP | Eu não espero nada nem do Brasil, nem de Portugal, nem de qualquer país ou grupo. O que espero é de pessoas, de mim sobretudo, e confesso que é pouco.
FM | Qual a tua ambição em relação à poesia, Alberto? Ou melhor, de que maneira poesia pode constituir-se uma razão de ser?
AP | Uma razão de ser parece-me que é de mais, mas no entanto cito-me de novo: “Uns dizem que a arte dá alegria, outros dizem que infunde terror; o mundo poderá estar à beira da hecatombe, mas o espírito humano não passa sem celebrar o seu engenho. incessantemente. uma pessoa entra, desabotoa as calças, senta-se, muda de traje, já nada é o que era. Que outra coisa faço eu desde que nasci? Sim, desde que percebi que a saída era para o norte, quer dizer, para a morte. Aí está o pólo, o pólo a nortear o caminho, mas a paixão é um norte e uma morte, e quanto mais ao norte e mais morte mais a paixão se polariza, mais se torna pólo e brilha de cada vez como uma estrela ou o cu de uma ursa quando se peida depois de comer muito mel.”
>>> POEMAS <<<
[VEJO]
Vejo
a pequena suja
a brincar na rua
com os cagalhões dos cães
não digo que seja sublime mas
como tudo
não deixa de ser interessante
alguns
parecem as
galáxias
mais longínquas
ou os berços
de estrelas
Barnard 68
tudo claro
mérito dela
e das suas mãos
gostava também
de ir brincar com ela
mas
quem sou eu para isso
já nenhum poeta o faz
só uma ou outra das 4.370
inspecções-gerais da vida corrente
já nenhum poeta o faz
nem os maiores
nem os simplesmente grandes
e menos ainda os pequenos
já nenhum poeta o faz
ELEGIA
já nada é o que era
e provavelmente nunca mais o será
e mesmo que o fosse
algo me diz que já não seria o que era
porque o que era
era o que era por ser o que era
do que eu me lembro muito bem
embora eu então não fosse o que agora sou
mas o que agora sou
ou estou a ser
é deixar de ser o que sou
porque eu sou deixando de ser
deixar de ser é a minha maneira de ser
sou em cada instante
o que já não sou
e o mesmo se deve passar com tudo o que é
motivo por que não admira que assim seja
quer dizer
que nada seja o que era
e se assim é
ou já não é
seja ou não seja
MORRERAM TODOS…
artur hipólito morreu com 62 anos, 20 anos após ter feito 42, mas na altura quem diria?
heitor fragoso morreu atropelado. foi levado para o hospital, mas esqueceram-se duma parte do corpo no local do acidente.
manuel testa morreu sem se ter conseguido habituar a este modo
de mal-estar no mundo.
arnaldo rodrigues caiu a um buraco da canalização e nunca mais
foi visto.
jeremias cabral pôs termo à existência por motivos desconhecidos.
zeca gomes morreu em defesa da pátria mas a pensar noutra coisa.
antónio de oliveira morreu igual a si mesmo: triste sinal dos tempos!
bernardo leite pôs-se a pensar na morte e não conseguiu voltar a
trás.
ivo gouveia tinha uma agência funerária e escolheu para si um
caixão representativo.
guilherme silva fechou-se no sótão, para morrer num lugar elevado.
luís dimas respirava saúde, agora respira um hálito de eternidade.
antónio garcia, o coveiro, teve uma síncope e caiu dentro da cova que estava a abrir.
bento nogueira engasgou-se com um pedaço de carne e desapareceu do nosso convívio.
paiva de jesus enforcou-se.
joão baptista viu o cunhado levantar-se do caixão e teve uma síncope.
lourenço pinheiro estava a ver a trovoada e um relâmpago entrou lhe por um olho e saiu-lhe pelo outro.
jorge velez de castro finou-se após uma longa vida de sacrifícios, toda dedicada ao bem-comum. e foi assim: depois de ter ingerido o seu sumo de laranja, foi conduzido para a cadeira de repouso pelo enfermeiro de confiança. nela se conservou, de boca entreaberta e olhos fechados, atéàs onze horas. às onze horas, o enfermeiro de confiança aproximou-se com a intenção de o conduzir ao banho. pondo delicadamente a mão nas costas da cadeira, disse: são horas do banho, senhor director. como este não desse sinal de ter ouvido, o enfermeiro de confiança, com a costumada jovialidade, debruçou-se e repetiu:são horas do banho, senhor director. posto isto, empurrou a cadeira até ao balneário, passou um braço pelos rins outro por baixo dos joelhos do director, e assim o levou para a água, só então se dando conta de que ele já não vivia.
zé maria, o peidolas, foi expulso da vida pela autoridade competente.
joão gaspar foi um nobre e valoroso homem que morreu heroicamente no campo da honra. paz à sua alma.
raul santos deitou-se um dia e por mais que o sacudissem nunca mais se levantou.
alfredo penha caiu tão desastradamente da cama que nem é possível dar pormenores da sua morte.
joaquim perestrelo morreu no meio da missa, qual quê! ainda a missa não ia a metade!
sousa dias morreu de pé, mas enterraram-no deitado, como toda a gente.