Viagem à Demência dos Pássaros – 3 Poemas de Alberto Pereira

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Alberto Pereira nasceu em Lisboa. É escritor. Membro do PEN Club Português. Publicou os livros: O áspero hálito do amanhã (2008), Amanhecem nas rugas precipícios (2011), Poemas com Alzheimer (2013), O Deus que matava poemas (2015), Biografia das primeiras coisas (2016), Viagem à demência dos pássaros (2017), Bairro de Lata (2017) e Como num naufrágio interior morremos (2019).
Alguns dos seus poemas foram traduzidos para espanhol, francês e inglês. Obteve os seguintes prémios literários: 1º Prémio do Concurso de Poesia, “Ora, vejamos” (2008); 1º Prémio no Concurso de Poesia da ACAT (2009); 3º lugar no Prémio Sepé Tiaraju de Poesia Ibero-Americana, entre 3027 obras inscritas de 26 países (2009); 1º Prémio do Concurso de Conto “Ora, vejamos” (2009); 1º Prémio do Concurso Literário Conto por Conto (2011); 1º Prémio no XIV Concurso de Poesia Agostinho Gomes (2013); 1º Prémio no Concurso Literário Manuel António Pina, Museu Nacional da Imprensa (2013); “Menção Honrosa no Prémio Internacional de Poesia Glória 2018 e 2020”.


Viagem à Demência dos Pássaros
(Menção Honrosa no Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant`Anna 2020)

II

Tarde aprendi,
homem que não fala com o seu Inverno
cresce-lhe a erva nos olhos.
O meu pai sempre disse,
“a mulher é uma árvore de coração movediço,
quando a resina lhe chega aos lábios
somos uma imagem em chamas”.

O amor,
apartamento de duas assoalhadas.
Uma,
com vistas magníficas
que prometem perfumar lâminas.
A outra,
espaço onde o tempo repete às vísceras
o meticuloso acordo entre a tempestade e a morte.

Afinal,
a vida não cheira continuamente
a um piano que toca flores.
O céu metido em prateleiras
apaixona-se pela lei da gravidade.
E cair não é bom para ninguém.
Também os deuses
em contacto com o solo
imitam o cristal.

Os meses têm dentes.

E eis-nos,
a dar a última demão no vento
para citarmos de novo
um corpo que foi Agosto.

O amor é uma pistola
que faz férias no paraíso.


IV

Recordo os dias,
rítmicos revólveres a bordar o cio da pólvora.
À minha frente o teu nome.
Os espelhos respiram Agosto
e por dentro de Agosto
as crianças enlouquecem
no íntimo gatilho dos pássaros.
Tudo é um texto onde latejam
abruptas lâmpadas.

Beijo.
Homem.
Mulher.

O beijo é uma pedra entre duas bocas.
A mulher deita-se nos lábios do homem
como numa zona de caça.
Este tem palavras que pensam um corpo nu.

O verde é a primeira cor de uma mentira.

O homem imagina árvores, roupa
e a casa luminosa sem precisar das mãos.
A mulher encaixa no pensamento
cidades para garrotar o pó.
Ambos caminham
com orquídeas que rezam névoa.

Lembro agora o tempo
em que imitávamos a infância.
Nenhum poema tomava a pílula,
nem a inocência se suicidava em Deus.

Depois a boca começou a ter cadastro.
A pele adquiriu a claridade fosca
da música de Sibelius
e duvidei se a tua garganta
era a Finlândia.

Todo o frio confessa,
deixaste-me o Báltico.


V

Sabes, meu amor,
adoro os pássaros que voam
quando as árvores já não são suas.
A biografia do coração
raramente esquece a queda das folhas.

E o que é o voo para lá do Outono?

Não me digam para guardar
o vento na garganta
ou que as tempestades
são retratos de um hospício.
O teu corpo ensinou-me,
o Verão é um felino
e a hierarquia das garras
só o tempo a sabe.
É certo, as nódoas têm sinos,
mas no pináculo do perfume
ninguém observa versos rotos.

Ainda te quis quando a pólvora
tocava os últimos acordes nos ramos.
Não tinha aprendido,
aparar as unhas à neve
serve para pintar biombos nos olhos.
Se tivesse ouvido Dostoiévski ou Gógol
e bebido as sombras de São Petersburgo,
sabia, o ouro das catedrais
assimila a mágoa da cidade.

Sabes, meu amor,
a eternidade procura sempre uma corda no céu.

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