5 Poemas de Alberto Girri (Argentina, 1919-1991)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Legitimidade do poeta. Provavelmente, somente o que se anima a rejeitar o poema como produto artístico. E então, de imediato, a suspeitar que o justo reside nesta conciliação: a capacidade de esquecer-se da obra de arte unindo-se à de assimilar, mudar os procedimentos mais convencionais, os clichês que até mesmo os melhores textos relevam para convencer inteiramente.
[…]

Luta pela expressão (expressividade), esforço para recobrar a memória de um Paraíso Perdido, algo que às vezes, com inesperados clarões, se atualiza. E, como uma Queda, sobrevém quando já não acreditamos que essa memória poderia seguir se fazendo ouvir. Por sorte, há também uma terra de ninguém, aberta entre memória e Queda; região livre onde nos é permitido exercitar nossa tarefa, igual o que cumpre um devoto e fatigante cultivo.

E não é pouco o que recolhemos, o sentimento de que a única eternidade a que se tem acesso é a do presente, a sensação de apalpar o tempo, o material, a matéria do poema. Se excluíssemos tais frutos não haveria o poema.

ALBERTO GIRRI
Trechos de El motivo es el poema. Buenos Aires. 1976.


A poesia de Girri torna-se cada vez mais seca, mais erguida, até parecer-se com uma via abrupta de realização que a aproxima de alguma liberação da subjetividade devoradora. É o que perseguem, sem sabê-lo, muitas tendências atuais: o cinetismo, a poesia concreta, a arte tecnológica, a música eletrônica, certa literatura negada ao confessional e confidencial quando consegue eludir o aborrecimento do puro desdobramento textual. Porém em Girri, esta modernidade se produz como conseqüência de um processo de mutação interior, de esvaziar, de limpar a casa por dentro, de começar por si mesmo. Semelhante ascese individual falta a muitos oficiantes de uma arte não-euista, de maneira que acabam recaindo em novas convenções ou, faltos de si mesmos, aderem à procura de acomodação teológica ou ideológica, ou de alguma das Igrejas existentes. E rendem-se às profecias, à insânia da História, aos dogmas, às honras com que o eu envaidecido se entretém nas honrarias.

JUAN LISCANO
Texto sem referência de origem, inserido em Páginas de Alberto Girri seleccionadas por el autor. Editorial Celtia. Buenos Aires. 1983.


MUSEU: POR FORA O MUTÁVEL, POR DENTRO EVASÃO

Remoção do imóvel
ideal de cabeças e torsos,
de cabeças inclinadas para um lado
como se tivessem um verme no ouvido,
de bocas abertas, estáticas,
como se fossem ouvir por ali,
a tradição
do monolítico, somático,
que em um dado momento crucial
é interrompida por ambiguidades,
e até então
eqüidade absoluta da beleza,
substituída por normas pessoais do gosto,
Rodin
exigindo da pedra
um dissolver-se em ar, em luz,
Brancusi
lançando-se com pedras, madeiras, metais,
a desmatar o caminho
até a positiva verdade do espaço livre,
e tão seguros
tão sadicamente senhores
de fazer com que os traços humanos
“não sejam mais belos que os dos sapos”.

Uma perturbação:
observando
essas admiradas e orgulhosas peças
o crítico diria que os artistas
exploram a vida como um Amazonas,
e acabam por enfrentar
o duplo rosto das coisas.
E um prêmio:
o que nos mantém alerta,
depressão, hostilidade, ansiedade,
desapego emocional,
vem tomar aqui o fôlego
que de tanto em tanto necessita,
o que traz a contemplação
do real quando se atreve a sair
de seu lugar detrás dos olhos,
dentro do crâneo.


DUAS NOTAS AFINS

1

Os realistas são realistas,
atuam, estão,
avaliam a menor os princípios
que inspiram seu trabalho,
e se soltam, se excitam
com as recompensas do tato,
a resistência, rusticidade,
fineza, fragilidade do que apalpam.

Por sua parte, os sentidos
dos realistas condescendem
sem discriminar, unicamente
conhecem entidades instantâneas,
para eles não há realistas e não realistas,
há sensações,
não há atores, há atos manifestos.

2

Pergunta:
O mundo,
onde os realistas atuam proclamando-o
o melhor dos possíveis mundos,
existe como o externo verdadeiro?
Resposta:
Existe, observem
as construções dos realistas, edifícios,
torres de cujas cúspides se jogam
depois os construtores.
Existe,
e também existe recusando-se. Espiemos
os realistas em suas casas,
a errônea
crença de que habitá-las é possuí-las,
e possuí-las é reproduzir-se
à imagem e semelhança.


OS PESSIMISTAS NÃO SÃO EXCEÇÕES

Padecem de sonhos
arquetípicos correntes,
com freqüência
sonham que sobem em barcos
e percorrem as entranhas, passeam
pelo convés, ali se estendem,
dormem, caem ao mar
e vão dar no ventre de um peixe.

Como qualquer um,
aprendem que a vigilância
e a nutrição em condições adequadas
os conservarão fortes, saudáveis,
porém seu estímulo mais apressado
se apóia em que nada desviará
a fatalidade de que ontem fomos borbulhas,
amanhã múmias,
depois montículos de cinza.

O exclusivo, inconfundível,
está em sua compaixão:
sempre que realmente
escrutinam e esmiuçam o que se passa
determinam silenciá-lo,
isolá-lo;

e em sua generosidade, reconheçamos,
quando, sem reservas,
nos oferecem compartilhar a profecia
ancestral que os irmana, advertência
de que a derradeira batalha do mundo,
ainda não disposta, haverá de produzir-se
entre otimismo e pessimismo,
com a vitória, inequívoca,
ostentando o signo do pessimismo,
a negação criadora.


NA LETRA, AMBÍGÜA SELVA

1

O ritmo do escrito
é o ritmo do que escreve,
e o texto, o poema,
em parte mecanismo verbal,
em parte sistema de correspondências,
é com o mundo uma só identidade.

2

A forma equivale
a convicção interna,
e a letra a emprega com vistas
a prover o mundo de significados,
e ainda para o Significado,
e ainda para subjugá-lo
com o prejuízo de que a palavra
traduz e verte o idealizado.

3

Linguagem e estilo
penosamente edificam hierarquias,
e ao consegui-lo
o mundo fica em suspenso, extático,
mesmo que em seguida se decomponha o produto,
sua linhagem se vulgarize,
soe escarnecido e degradado
como esponjosa, murcha potência,
e as linhas melhores, as exemplares
e musicais tiradas, sobrevivam apenas
como por trás de um vidro, burla e tédio,
oh pobre Olimpo!

4

Campos onde o que mais despoja
é o que avança?
Ardil e recompensa
para os que perseveram
enfermamente atentos em apoderar-se
da totalidade atrevendo-se
ao banal absoluto de escrever
“Fechem essa porta”?, ou “Quisera dormir”?
Quanto trace a escritura
será interpretado, obterá resposta,
como aos piedosos é permitido
orar segundo lhes pareça, convencidos
de que Deus escuta e lê
até as pisadas de uma formiga.


O POEMA COMO IDÉIA DA POESIA

Que a finalidade
seja provocar o sentimento
das palavras,
e alcançar
o desafio da expressão,
perseguir objetos
que se ajustam ao sentimento,
fundir-se em objetos
até a emoção adequada,
está provado,
e tanto, provado e provado,
como não o está
que nesses trânsitos
a tendência mãe seja
por onde vai a inspiração,
“se no frio ou no calor”,
e não o está
que se tenha que seguir Homero
por entre as Musas, seu rogar que o assistam,
e Platão
saudando belos versos
mais em medíocres embora iluminados
do que em sagazes e hábeis exclusivamente
ao amparo de suas próprias forças,
e Dante, ao reclamar
a intervenção de deuses
acaso sem crer neles:
O buono Apollo, all’ultimo lavoro
fammi del tuo valor…

Porém muito menos nenhuma
prova determinante do oposto,
que o poema
conduza-se na mente como um
experimento em uma ciência natural,
e que a aptidão
combinatória da mente seja
a única inspiração reconhecível.

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