Clementina Suárez (Honduras, 1902-1991)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Clementina Suárez (1902-1991) foi uma das principais agitadoras, catalisadoras e motivadoras da cena artística contemporânea de Honduras e da América Central. Embora se dedicasse principalmente às reflexões e práticas literárias – Clementina é considerada uma das principais poetas de Honduras e foi a segunda mulher a ser publicada no país com seu livro Bleeding Heart (1930) – ela viu isso como essencial para desenvolver sua obra como promotora da arte visual e performática, junto com o ativismo feminista e a circulação e engajamento do pensamento crítico, cruzando as fronteiras e limites das disciplinas artísticas. Em sua obra, usa o corpo como ferramenta incendiária, de forma apaixonada que reconhece seu papel essencial no processo de libertação das mulheres na primeira metade do século XX.

Clementina assumiu seriamente sua responsabilidade para com os centro-americanos, acreditando que, se não existissem as condições para uma cena artística ativa, era necessário criar tais condições. E foi o que ela fez, bem onde estava, valendo-se dos recursos à sua disposição – suas casas, seus amigos, sua comunidade intelectual, suas tensões, suas contradições. Ela colocou tudo na mesa para criar espaços onde a literatura – o mundo que ela habitava – pudesse se conectar com as práticas das artes visuais, e onde os artistas pudessem alimentar seus anseios, expectativas e debates.

[…]
No início da década de 1930, era cheia de energia emancipatória, Clementina partiu para a Cidade do México, onde fundou a Galeria de Arte da América Central, ponto de encontro de intelectuais e artistas influenciados pela efervescência da Revolução, como Frida Kahlo e Diego Rivera. Ela também fez amizade com o poeta viajante espanhol León Felipe, que influenciou sua obra poética Sailboats (1937) e que durante esses mesmos anos trabalhava, curiosamente, na tradução das primeiras obras do Hispanismo Transcendental do visionário americano Waldo Frank, America Hispana: A Portrait and a Prospect (1932).

Clementina se situava em um contexto que já buscava uma América para todos, capaz de superar as relações subalternas Sul-Centro-Norte que viriam mais tarde. Foi nesse contexto que se delinearam uma forma diferente de se conceber, onde todas as identidades que haviam sido excluídas da lógica hegemônica Norte-Norte encontraram lugar para se encaixar, tomando como referência as propostas de José Carlos Mariátegui, Joaquín García Monje, Heliodoro Valle, Victoria Ocampo e tantos outros associados a uma corrente de pensamento marcada por um idealismo extraordinário e dinâmico conhecido como arielismo.

[…]
Além de seu trabalho revitalizar o cenário das artes visuais da América Central, não podemos deixar de lado a complexidade de sua prática poética, que se situa na fronteira vagamente definida entre a prática performativa e o ativismo feminista.

Em 1932, deu uma série de palestras poéticas no Teatro Nacional de Tegucigalpa, onde escandalizou a sociedade da época ao expor um corpo aparentemente nu, evocativo da totêmica Isadora Duncan. Era um corpo que exibia seu potencial infinito, que usava a leitura como forma de se ajustar ao movimento da alma, como a própria Duncan notou em A Pedra Filosofal da Dança (1920), em um contexto social dominado pelo debate sobre o sufrágio feminino, no qual o movimento anti-sufragista argumentava que as mulheres eram intelectualmente incapazes de assumir as responsabilidades da vida política como cidadãs, tornando-as impedidas de emancipar-se.

Clementina resistiu. Ela não aceitaria não como resposta. Ela empreendeu um processo de ressignificação do ser feminino com a compreensão de que as identidades são múltiplas, e que nossos desejos são diversos e não se enquadram em nenhuma construção singular. Ela acreditava que não havia um caminho único para o acesso à identidade, muito menos um consignado a ser um corpo que mantém a estabilidade do espaço doméstico. Ela usou seu corpo como uma forma de se libertar das opressões que as mulheres sofreram nas primeiras décadas do século XX em Honduras, uma sociedade conservadora, puritana e atemorizada, em que ser mulher significava ser mais uma peça no aparato social de reprodução.

Seus contemporâneos intelectuais se referiam a ela como a Nova Mulher de Honduras. Fundou, editou e dirigiu o jornal Mulher (1933), que distribuiu nas ruas de Tegucigalpa para dar testemunho de um processo de emancipação que fazia parte de um movimento internacional do qual Honduras não podia se separar.

Clementina produziu um feminismo próprio, que celebra um corpo que reconhece a alteridade, que não existe sem um eu que é coletivizado por todos, que toma a experiência adquirida através da corporeidade como um nó de conhecimento em si mesmo, que se centra em evidenciar a particularidade que sempre se adquire através de um processo coletivo de desordenamento da ordem pré-estabelecida. Foi esta a sua maneira de criar as condições de igualdade através da intervenção em espaços reservados exclusivamente aos intelectuais masculinos, evidenciando uma mudança social agora inevitável. Desta forma, Clementina reivindicou a essencialidade ao promover as condições de igualdade e justiça essenciais para a concretização de uma prática social e coletiva emancipada, livre de qualquer tutela ou tutela.

LUISA FUENTES GUAZA
Trechos de “Para mudar tudo, você só precisa de um corpo”, Colección Cisneros, 2019.


O PRESENTE

Eu gostaria de te dar um pedaço de mina saia,
hoje florescida como a primavera.

Um relâmpago de cor que detivesse teus olhos em meu talhe
– braço de mar de ondas inascíveis –

a ebriedade de meus pés frugais
com seus passos sem tempo.

A raiz de meu tornozelo com seu
eterno verdor,

o testemunho de um olhar que te deixasse no espelho
como arquétipo do eterno.

A beleza volúvel de meu rosto, tão perto de morrer a cada instante
por conta de viver apressadamente.

A sombra de meu corpo errante
detida na própria esquina de tua casa.

O sonho zumbidor de minhas pupilas
quando deslizam até a tua testa.

A beleza de meu rosto
em uma virgindade de nuvens.

A ribeira de minha voz infantil com tua sombra de incrível tamanho,
e a linguagem ilesa que não maltrata a palavra.

Meu alvoroço de criança que vive descoberta
para que a cubras com a armadura de teu peito.

Ou com a mão aérea de quem viaja
porque seu sangue submarino jamais se detém.

A febre de minhas noites com duendes e fantasmas
e a chuva virginal do rio mais oculto.

Que o vento se abre como um leque
ao nível do ar, da terra e do fogo.

O dorso onde bordas as tuas mãos
inchadas de marulho, nuvens e fortuna.

A paixão com que dilaceras
no leito da mesma e vasta torrente

como se o próprio coração se tornasse líquido
e escapasse de tua boca como um mar sedente.

O feixe de meus pés
despertos andando sobre a grama.

Como se trémulos aguardassem pelo encontro calado
de onde apenas pelo silêncio restassem a correntes partidas.

E em teus dedos retido o mandado da vida
que em liberdade deixou teu sangue,

embora com sua cascata, com sua racha,
as árvores do degelo, algo em ti mesmo destroçado.

A cabeleira que brota do ar
em líquidas miniaturas inquebráveis

para que as tuas mãos ilesas façam ninho
como no próprio sexo de uma rosa estremecida.

A entranha onde submerges como se buscasse estrelas enterradas
ou o sabor de pó que tornará férteis nossos ossos.

A boca que te morde
como se degustasse rios de aromas;

ou fincando em ti os dentes
matizasse a vida com a morte.

O tálamo onde medes a minha cintura
na suave sobrevivência intransitiva,

na viagem pela espuma difundida
ou pelo sangue aceso humanizada

o mundo em que vivo
estremecida de gestações inesgotáveis.

O minuto que me unge de auroras
ou de iridescências indescritíveis.

Como se ao ritmo de teu eflúvio soberano
salvasses o instante de inadvertido mel;

ou deixasses no mágico horizonte de luzes apagadas
o tempo desmedido e remediado.

Onde os sentidos ficaram detidos
e, ao final já sem idioma, totalmente despidos.

Como se ensaiando o voo suas asas se queimaram
ou, por ter cicatrizes, seus braços se extenuassem.

A pele que me veste, me contém e abrevia,
a que ata e desata minhas ramagens.

A que te abre a branda residência de meu corpo
e te entrega seu mais íntimo segredo.

Minha veia, chaga viva, quase queimadura,
vestígio do fogo que me devora.

O nome com que te chamo
para que sejas bem-vindo.

O rosto que nasce com a aurora
e é guardado por anjos na noite.

O peito com que suspiro, o latejo,
o tique-taque entranhável que ilumina tua chegada.

O lençol que te envolve em tuas horas de vigília
e nele te deixa cativo, dorme, sonho do amor.

Árvore de meu esqueleto
mesmo com suas miúdas dobradiças.

O recinto sombrio
de meus fêmures estendidos.

A morada de meu crâneo, desgarrado lamento,
pequena molécula de carne jamais humilhada.

O orgulho sustenido de meus ossos
aos quais até com as unhas eu me agarro.

Meu canto perene e obstinado
que em morada de luta e esperança defendo.

A casa intemporal
que meu pó amoroso te oferece.

O nível da lesão
ou da ferida que poderia haver acabado comigo.

O pranto que me lavou
e que este pequeno corpo transcendeu.

Minha sombra estendida
à mercê de tua lembrança.

A agulha imantada
com seu pólen impensado e suas brasas vermelhas.

Minha existência cinzenta
com sua primeira mortalha.

Minha morte
com sua pequena eternidade.


OLHANDO EXTASIADA O CÉU

Sentada à margem da vida
eu sou três:
meu sonho, a poesia e eu;
porém o que digo agora
meu sangue apaga com sua veloz vertente,
entretanto o relógio
– rompe ondas dos dias –
inventa uma nova hora,
na escala gradual do tempo.
Anterior ao pêndulo
e ao voo das andorinhas,
está a minha lua que chora e ri
em um pontual protetorado de palavras.
Eu não sei como fechar os olhos,
reconquistar as tardes,
as memórias
e as paisagens
em uma só fonte recôndita
que definitivamente afirme o sopro primogênito;
na altura da rosa que não murcha
no seio,
ou da nuvem que teria restado
aceesa à janela
olhando extasiada o céu.


MAGICAMENTE ILUMINADO COMO EM UM PARAÍSO

Eu saí de meu vestido
e fui ter com meu corpo,
e pude então comprovar
o valor de meus pés, minhas mãos, minhas pernas,
meu estômago, meu sexo, meus olhos e meu rosto.
Soube do deleite que um deles me deu
e de improviso me disse:
que mágico contorno o de meu dorso,
que novos e antigos ecos no fio de minhas veias,
que voz na garganta,
que sílaba impronunciável no lábio
e que sede detida na garganta!
Apressadamente saí pela porta
disparada a caminhar,
a tocar o chão com meus pés,
a lançar flechas acesas pelos olhos,
a devorar paisagens,
a enredar as minhas mãos em hieróglifos de relâmpagos,
a deixar detida aqui em meu sexo
– árvore frutificada –
o aroma da vida.
Pude absorver, cheirar, gritar
viver, viver, viver.
Como se despertasse uma e outra vez
e fosse laboriosa abelha
a liberar seu mel astral.
Aurora que coalhasse aqui no peito,
armeiro que dia e noite trabalhasse
em sua cumprida faina.
Precipitadamente abro
as portas de meu quarto
e jogo longe o lençol.
Me aproximo do espelho como uma morada
que não me reterá.
Como um propósito alucinado,
brilha meu anel de pedra de cor lilás,
minha lâmpada, meu relógio,
detidos nos umbrais do tempo.
Meus sapatos despertos na beira da cama
e meu rosto deambulando pelo sonho
como uma decoração para um poema
escrito nas linhas da mão,
ou no fulgor metálico de meus sentidos
tulipas sempre ardendo.
Meu perfil de arcanjo
dança com o raio,
detém seus reflexos na fronte
e com seu fogo derruba o coração
como em um paraíso magicamente iluminado.

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