Rogelio Sinán (Panamá, 1902-1994)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

A arte é magia; a vida, não. Se o que queres é se referir ao fato criador em si, posso dizer que, segundo meu critério, a ideia inicial surge na mente. Às vezes basta somente uma faísca, uma recordação, um perfume, uma frase, um desenho. Suponho que a imaginação é a encarregada de elaborar, amassar, estruturar, dar forma ao magma. Tudo isto é parte do processo criador, durante o qual a massa se transforma em expressão, em linguagem. A arte é vida criada pelo artista, seja escritor, pintor ou escultor. Li que, antes de pintar A última ceia, Leonardo se sentava horas e horas frente ao muro observando as diminutas linhas, os traços que nele havia deixado a pátina do tempo; e, a ponto de esculpir o Moisés, Miguelângelo meditava ante o bloco de mármore, dizendo a si mesmo: “O que devo talhar está ali dentro da pedra. Minha mente já imagina sua efígie tal como o cinzel a deixará. Só falta desbastar o supérfluo. Meu trabalho consiste em eliminar o matagal.” Porém, prévio ao Moisés, quanta fadiga, quanto estudo. Com anterioridade à sua criação como arte (pintura ou escultura; poesia, conto ou novela, sem esquecer o teatro e outras modalidades) as silhuetas ou espectros das obras se encontram delineadas nos silos profundos de nosso espírito. “O poeta é um pequeno deus”, diz Huidobro. “Poeta nascitur”, diziam os latinos. O que indica que os artistas nascem predispostos à criação artística. Contudo, não basta haver nascido com predisposições especiais. “Ser é fazer-se”, sustenta Pirandello. O que indica que é necessário estudar, trabalhar e dominar a matéria. Em seu afã de estudar anatomia, Miguelângelo roubava cadáveres no cemitério. Uma noite, levando um às costas, tropeçou, caiu, quebrou o osso do nariz e, desde então, perdeu seus traços primigênios. Os múltiplos esboços e desenhos que deixou Leonardo dão uma ideia de que não somente era um gênio como também de que se desvelava estudando. Aqueles que sentem e possuem afeição pela arte, pela literatura, leem com prazer e estudam os clássicos, os mestres, os que marcam rumos e itinerários. Há escritores que corrigem o escrito à medida em que avança a criação; outros o fazem depois do fatigante processo criativo; e há aqueles que nunca ficam satisfeitos. […] Em meu caso específico, vou corrigindo à medida que escrevo. Finalizada a obra, a sigo corrigindo, pois nunca fico satisfeito.

[…]
De que meios nos devemos valer para estimular os escritores em nosso meio? Vejamos o que ocorre nos países vizinhos. Colombia e Venezuela possuem um rico mercado interno e fizeram convênios com famosas editoras espanholas. Na Costa Rica, o governo criou a Editorial Costa Rica, com capital próprio que edita grande quantidade de livros de autores nacionais. A editora EDUCA (dignamente dirigida pela escritora Carmen Naranjo) editou e segue editando livros de toda a América Central. A Nicarágua fez uma séria campanha de alfabetização e agora ali, como em Cuba, as pessoas leem e os livros são baratos. No Panamá é plausível o trabalho que realizam diversas instituições bancárias ou autônomas criando concursos literários. Não o fazem somente com a ideia de descobrir novos valores como também de criar maior abundância de leitores. Aí estão as Feiras do Livro (e entre elas merecem menção as efetuadas pela Universidade do Panamá, com descontos de 50%). A quantidade de livros vendidos indica que, na verdade, o que faz falta é dinheiro e leitores que comprem.

ROGELIO SINÁN
“Nuestras polillas son altamente intelectuales”, entrevista concedida a Enrique Jaramillo Levi. Revista Maga # 5-6. Panamá, julho de 1985.


SUA FORMA SOBRE A ÁGUA

Na equidistante hora do peixe despertado
com a primeira espuma da manhã, flutua,
como um pressentimento de bocejo salino,
sua forma sem arestas, desfiada, fofa.
Flutua, digo, a névoa, crispada de latidos,
amarrando nas ébrias elásticas gaivotas.
E, ao recolher o homem sua rede, meio dormido,
talvez tema o espectro que vai sobre as ondas.


O FILHO PRÓDIGO

Lambendo terra, areia, raízes e lavagens,
tombo a tombo o rio precipita-se na origem.
Esbanjou os ouros do poente em acrobacias
de ondulante prontidão por liquidar seu fértil
caudal de margaridas e asas de borboleta.
Regressa enxuto, lodoso, mendigo de estio,
e, saudosa de carícias de asas paternais,
joga-se no seio do mar, arrependido.


A PESCA MILAGROSA

Velho cais remendado de brumas e sereias.
Úmida visão. Verde vaivém de remo e quilha.
Torso de onda. Gaivotas silvando no trapézio
de um canto marinheiro. Hora salgada de iodo
quando o pelicano afunda punhais na clara
pupila da espuma. Brisa ágil. Breu. Hipocampos,
nostálgicos de friso. Tritões. Caracóis.
Vejam bem ali: entre as redes caiu a tarde!


ENDEMONINHADAS

Possessas da bruma com lábios de gemido
galopam onda e brisa balançando cordames.
Asas de furacão com raios no bico
desgrenham maldições, espumas, ais.
O Sol afunda luminosas agulhas de prodígio
desalojando névoas de desleal filiação;
e, conjurado, desfeito o malefício,
os fúlgidos demônios precipitam-se ao mar.


MADALENA

A estrela vespertina, fatalmente risonha,
suspira ensimesmada atrás do mito solar,
ungindo, borboleta, a marca translúcida
com grito de cristais e pupila de sal,
quando, rumo ao frio sepulcro das ondas,
o sangue iluminado mancha claraboias, ela
salpicará o cocar das nuvens piedosas
ao se desfazer em lírios como uma Madalena.


QUARESMA DE TERRORES

Marítima quaresma das metamorfoses
– oh suicídio assombrado de peixes e frutas! –
quando crescem escamas no ventre da noite
tal mutilado de estrelas e prenhe de bruxas.
Pueril forma dolorida do sonho cancelado
Acariciando à deriva da inútil sereia!
Quanta cera nua mergulhava candelabros
e Cristo, afogados em oceanos de névoa!

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