Freddy Gatón Arce (República Dominicana, 1920-1994)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Já havia escrito Vlía, o texto de escrita automática que saiu em abril daquele ano e que marcaria parcialmente minha trajetória no campo da poesia.

Abandonei a prática assídua do automatismo porque Franklin Mieses Burgos habilmente me conduziu a isso. Aconteceu que uma noite, estando sozinho em seu escritório, ele me disse com aparente indiferença: “E como é essa escrita automática? Como você faz?” E, sem pressa, embora hoje eu dissesse imperativamente, ele me deu a cadeira em sua mesa. Fiz a exposição e o Franklin depois de um tempo que ainda não sei quanto tempo durou, me aconselhou com carinho: “Deixa isso… Estás louco…”

Despedir-me do automatismo como base, eixo e nervo da minha obra literária não foi difícil para mim, pois desde o início o utilizei como meio exploratório das possibilidades poéticas, como me sugeria Baeza Flores; e porque se desencadearam no país acontecimentos que me obrigaram a afastar-me das atividades visíveis, legais, embora de exercício precário e sem efeito, que permitiram o poder arbitrário do dia e isso me levou a dedicar mais horas à leitura.

Eu aproveito esta conjuntura para me referir às suposições que as pessoas costumam fazer sobre quem ou o que Vlía é, qual personagem ou que coisa. Essas suspeitas se multiplicaram desde que no ano passado publiquei meu livro El poniente e no fragmento XII do poema com o mesmo título estão estes versos:

Oh Vlía
este é o seu poema de reparação.

A explicação dessas duas linhas é que continuo a praticar o automatismo, embora este não seja mais o foco da minha escrita atual; portanto, não queria eliminar essas linhas ou substituí-las: “Lá estão elas e lá ficam”, disse a mim mesmo. E esta frase não é uma manifestação de obstinação, porque quem é autêntico suprime espontaneamente as portas da beleza inesperada? E quem nega a intuição?

FREDDY GATÓN ARCE
Revista La poesía sorprendida, Santo Domingo, 1944.


2 – ORVALHO SOB ROSA

Nós. Já nada acontece. O mar não tem remorsos e a brisa não o despenteia. Uma saudação fica suspensa nos olhares, nas buscas íntimas, e não há mais do que nós. Nós: Vlía, tu e eu, que nada sabemos, sequer sorrimos de uma vida a outra, e pensamos como se fôssemos um, um só que desvive no céu, de todos os dias nublados por azuis. Nós já não queremos nem mesmo nos olharmos através das pupilas azuis. Estamos como se fôssemos dois olhos, quatro e cem corações desdobrados. Já não podemos mais, e Vlía e tu o compreendem perfeitamente. Não nos encontramos nem no cálice da redoma da bruxa carregada de lavandas. Creio que nossos olhos estão cansados das distâncias percorridas, e que não podemos nos reivindicar nos sonhos carregados de orvalho febril. Iremos navegando no mar de todas as insipidezes coalhadas de doçuras e de todas as sagradas mentiras. A vela que surge à distância – Vlía e tu e eu, gaivota de horizonte – se agigantou de ventos para adentrar a foz de acanalados sentimentos. Nós, que esperamos de nós? E de ti? E de Vlía? Estamos situados na infinita distância da proximidade e nem sequer soluças. As lágrimas se fizeram para a força. Teremos que inventar uma nova telepatia das almas para nos encontrarmos extraterrenos, ou sob rosa – como queiram os fados de todos os nossos desejos, os teus desejos teus, os desejos de Vlía. Já não podemos nos encher mais de mentiras inclinadas de olhos e dedos de frentes – cuidados de cabeleiras invisíveis. Devemos ir vendo nesse mapa que carece de posição fisiológica: coração. Quero – queremos tu e eu e Vlía bem o sabemos: sempre quisemos em todos os anseios apagados de sonhos – que possamos ir onde tenhamos o que ninguém sabe, o que todos sabemos desde antes de nos conhecermos. Porque nem teus olhos, nem os olhos de Vlía, nem os meus, estão espelhando nada, sequer a nós mesmos, Vlía. Eu quero que saibas – que saibamos nós – que nada mais acelera meu coração.


5 – SONHO APARECIDO

Para o amor tudo se faz breve lentidão. A inconstância não vê no quarto escuro ou se alastra na fúria. Luzeiros sem amendoeiras prejudicam a profissão de adorar. Não movem o ódio salvador do tédio. A realidade indica um natural encantamento interior, emocionado, ao reverso dos olhos, intensamente. A madrugada pertence ao gato negro – velho habitante do aprazível – fica no terraço úmido – órbita da noite raptada ao céu. Dança e outros pés habitam o frenesi. O castigo não sorri nem janta. Nem melancólica quietude nem alvor de rouxinóis, soam três perdões na janela – infração da citação lunar e das cortinas. Olhos de imagens sagradas restam sepultados nas conquistas sem copas que acalmam os tristes – prolongamento do ar até a aurora. Tudo ficará distinto! Distante reconstrução do mundo, sucinta aresta da mudez, e tu, irrepreensível na propagação do vício. Para nascer escolheremos a pérola do campanário nadando na alvorada – suave admiração da queda. Florescendo tudo, não nos distinguiremos, será preferível fabricarmos uma maça inicial em um caminho sempre invisível. O brotar das cavernas indica raro encantamento e um que outro movimento pulmonar na quimera. Consumir-se leva à desordem. Não diviniza a serpente que está de vigia, há que deixá-la como lombada nos troncos da insônia. Bateremos uma vez, e o eco nos repetirá ao infinito – ouvido interior petrificado na dissolução das pétalas, tosca mecânica nas margens. Para nossa primeira divinização, regressemos à intempérie, recusemos os pés. Depois do nascimento, a perduração do amor necessita intensa embriaguez de entranhas.

A amargura jamais deve mostrar seus dentes; escapar pelas mãos, murchando o sal que provoca, é o destino do sorriso.

A fantasia não deve piscar se estamos de mãos dadas. Para seguir na ressurreição basta uma febre e muitos dedos apertados. Essencial é ir com os lábios de zombaria para todo o resto, que não outra coisa em nós se agita, senão a criação de algo inadequado. Um banho de espiritualidade conforta, porém marginaliza o gozo. Para não perder a serenidade, um salto é necessário. Na cadenciada tristeza dos outros buscaremos regozijo perene – subterfúgio para nos desguarnecermos insensivelmente, as palavras não devem nos preocupar, somente nós damos sentido às estrelas. Imaginar um céu sempre igual, acontece aos despreocupados. Crescer os olhos por uma trapaça da natureza, sucede às pessoas que carecem de uma interioridade liberada. Já que nascemos, isto de nos parecermos com muitas extravagâncias que usam dois pés ao invés de seus quatro naturais, nos privaria do ridículo que tanto se aproxima do patético. Um perfume e outros nomeados não formam uma rosa, há que arrancá-la do ar, soberbamente. Para te fazer não tive que viajar às minhas, uma idéia satisfez ao incriado. Para não esquecer nada, eu te dei poesia, indigestão de poltronas e luvas. Assim seremos semelhantes: alongar o tempo abstraindo-o de nossas incursões, é a sabedoria que nos separa do cotidiano. O dormir nos interroga para nos salvar do regresso. Há que dormir uma revelação dos ouvidos, e alguns rangidos mais no coração. Ficar como um desmaio da Morte é retrógrado. Projetemos as pálpebras sobre o mato baixo do caminho, já que continuar no pó nos dá a sensação de inatos. De qualquer maneira, ali finaliza o processo natural deles – grosseira comédia sem ato determinado – e nosso telão cobra asas infatigáveis. Nossa respiração nos traz outras respirações; contagiar-se delas propiciaria a impureza de nossa verdadeira missão, ficarmos como nuvens sem chuvas, e tu quiseste um presságio de orvalho no hálito da manhã. Para a contemplação é requerido projetar os olhos no sol. Se temos que continuar, o sofrimento se impõe, o gozo se antecipa nos covardes. Vamos por partes: que os tentáculos apalpem o ar de invisíveis cabeças degoladas, onde prima o diamante do azul. Antes de nos lançarmos ao mar – não importa sua maré nem seu sangue – contemplemos a cratera que nos sobe às gargantas. A virgindade há que levá-la a passear como um seminarista, por todos os corredores. Se a saia está rígida há que brindar-lhe a ligeireza de uma janela aberta, é propício ao conhecimento do sexo. De qualquer modo, uma indiscrição deve ser insinuar-se, como uma criança. A travessura é necessária aos desenhos de um cristal quebrado. Para não desmaiar uma obsessão de infância nos invade e afasta os atos sangrentos anteriores à concepção. Giramos o sol, mudamos o bosque e nos encontramos perdidos. Escapar não requer sistema destacado. Algo negro deve ser o princípio, reação do sangue coagulado. Outra beleza jamais emerge esplendorosa. A espontaneidade, ou desgraçamos a experiência. Apenas os olhos da neurastenia – sensato extravio – iluminam. Para maiores precauções, comecemos por não haver comido; pensar separados do estômago, ou ficar a um braço da cruz. É conveniente nos depilarmos à total germinação dos nervos. Há que agarrar fortemente seus pontos e jogar com a rudeza destinada a extrair as entranhas de um irmão. Desta maneira estaremos acessíveis a uma neurastenia melhor, salvadora. Nas mãos dez punhais devem preparar-se para a degola. Agora fortemente pelos pés nos seguramos, e deixamos as cabeças sobre a almofada – breve silhueta do universo. Nossos troncos agora podem nadar ou confundir-se com os homens. Para um passar irrepreensível, voemos ao Polo, com nossas medulas enlaçadas.


6 – RARO INFERNO

Aqui, sobre as rochas, ou além, onde o horizonte floresce velas, um crime é necessário. Para a cor da imagem, um crime. Uma e outra vez nos aproximaremos dessa delícia – deus nectário da asfixia – e fiel à minha tristeza constante eu te deixarei intocada. Fonte de caracol na rota, irremediavelmente nos aproxima, como um âmago de solidão que veste compreensão de cores. Sorriso não frequenta as almas sem fé, nem a dedicação. Os sinos terão que não cair mais aos pés debilitados do entardecer, embriagados de sensatez. Teremos dois, três, e alguns mais imaginados horizontes para nos iludir. Na loucura um presságio de religião é conveniente. Mas, acima de todo o desagregável da brisa, a obsessão do crime deve persistir, intensamente enraizada na pele – corcel com passos de caracol onde as almas jamais se tornam temerosas. Um crime branco, um crime de frenesi que nos separe da vulgaridade. Um sangue que nos leve sem cair no tédio até ele, em cada emoção que se perde por conhecida. Nós percorreremos o arco-íris. Um arco-íris novo a cada explosão. Ir das ondas ao sol, fibra quebrada de reflexo nas rochas sem ilusões movediças, asas nos corações que sabem criar um amor para si. Nós não devemos nos satisfazer, uma contemplação basta aos sangues que se deslocam nas ruas como laranjas feridas de pudor no jardim coberto. Porém estamos muito próximo ou muito longe da realidade que nos comove: o crime, e há que se decidir a ser loucos ou todos os lençóis protestam de sede. Pintemos o sol como se fosse o olho da montanha ou decrescer das amendoeiras cobiçadas no estio. Porém não, tu estás sem sobressaltos – vivo como coral à flor da terra e outras tantas bobagens nas estrelas invisíveis.

Para que o sonho se realize faltam todas as coisas incompatíveis com a angústia, e ela está ausente deste ou daquele céu que me frequenta. Se estamos junto ao demônio, não há que jurar nada à noite nem às almas vazias. Para que os cães não roubem nossa atenção, os enforcaremos em qualquer galho das mãos intangíveis, e a insônia da vítima terá sabor de hiena. O mais adequado é vestir-se de algas. Quantas coisas fazem um crime! Agora a moléstia de distrair meus olhos na loja do mar, minhas imersões não requerem fundo preciso, nem clima antigo. Porque a indecisão turva os sentidos, te contentarás com desnudar-te. Porém, o crime! Onde está o crime? Outra paixão já não comove. As pessoas, por que nos deixam sozinhos? Um protesto, por que a solidão sempre acompanha o crime e nós devemos ser distintos. Excluiremos a solidão de nossos cálculos. Assim estaremos melhor, um pouco mais solitários. Então o crime não chega. Para mim o crime, do contrário ficaremos sobre o gramado. Iludir-se com o céu acontece todos os dias. Esquecer é cruel em tua presença. Esquecer uma rosa quando murcha ocorre a todos os floristas, e eu só brilho uma flor que nasce de qualquer impertinência dos olhos: o crime rebenta nas pupilas. Um instante sem precisão de calendário duvida e fica a teus pés – passageira sem destino – e o crime se aceita ou tortura. Há que oferecer-se em uma quietude calada, um ambiente levaria a perder a realidade ambiente. Devemos nos sentir como uma valsa. Ouves? Que bem se escuta o silêncio das ondas! Há que manter a atitude: um beijo nos tornaria seres abandonados em um quarto apertado; nós temos outros recursos. Aguardemos, o crime requer ser catado, do contrário seria transbordamento de serventes e os arrecifes se estendem em tua cabeleira. Toda a augusta excelência do álcool há que recebê-la com a irreverência de um sentimento qualquer sem a ridicularia dos dias marcados em Agosto, Abril ou Maio. As flores indicam luzeiros tremeluzentes de decepcionadas emoções – sofrer de borboletas sonolentas na tarde coalhada de pintores, amendoeiras sem luz de alcovas adormecidas. Para a perpetração do crime aqui estamos, sem ti e sem mim. Incubar ossos e torná-los popular pelos ares como mensageiros do Senhor, é nosso destino. Esta é tua comunhão com o irremediável. Eu tive muitos crimes. Deixar que o nosso se realize prontamente seria dar razão aos pássaros febris da lua. Eles dão Dezembro a cada amor, e não devemos fatigar seus lábios. Há que dar às pálpebras a natural posição do sonho; assim tudo brilhará melhor, quase interiormente. As sereias não têm por que angustiar-se; urgem-nos e a impaciência pode esgotar nosso deleite. A psicologia do crime nos tem presos, e é cruel uma amargura no ar. Não é possível ir daqui nas algas ao redor do mundo; nas gaivotas do horizonte as penas se internam – todas as queixas têm uma gravidez de angústia. Nunca procuro situações futuras para meu coração, seu latejo poderia desmaiar em uma mentira. Por isso, sim, há uma, outra e outra e muitas mais. Ela, elas, agora não intervêm. Seria um processo lento somar tantas estações para Coleção de Areia – 34 criar uma primavera para ti. Façamos amor como nós mesmos, que se detenha a dois passos do pecado. O crime? O crime preocupa somente aos homens, e nós não os vemos. Estamos com o único Juiz verdadeiro, o nosso. Não há por que chamar! Surgiste Mulher em mim. Cala! Amanhã não há que falar do passado. Toda insignificância de hoje não será mais do que cal nas grutas – copas de erguidas ilusões nas esferas. Por outro lado, a almofada deve nos abandonar; somente as pedras se convertem em pesadelos de fios rosados – agradável intenção dos demônios. Depois do crime, as abelhas propiciam um delírio maior. Apoia-te em meu ombro para dar descanso a teu coração sob a sombra de uma chaminé. A incongruência é notável: os sonhos jamais choram fumaça – fio do ar tecedor de árvores. Agora, presenciemos um desfile de seixos e pés feridos sob a água do céu, recuperemos os olhos, recolhamos as pálpebras: as trevas devem reinar com todo seu atavio. Para ser os bêbados eternos, cultivemos videira em um jogo de pequenos e grandes sinos – aridez no dia de mortes. Procuremos por nós um momento posto que a detenção do relógio é necessária no esbanjamento da adolescência. Acima de todas as lerdezas, deve nos proteger um pressentimento de Rainha de Sabá e Príncipe Azul. A humildade do berço não se opõe à exploração de outros campos. Para uma maior exaltação, deves te vestir de sonho, assim a brisa não terá dificuldade em te despir. Evitar uma trapaça do discernimento requer um tapa no sol, a lua e as estrelas se prestam mais a um encantamento. Um riacho faria música adequada à entrega. Para que tua languidez cobre expressão de anjo, reclina-te em uma palmeira qualquer, suas folhas darão a insensatez de seu vaivém. Uma vez retornada a cabeça, perde-a novamente em um cruzar de campos sempre cobertos de verde – invisível sentido da candura eloquente que não redime.

Despoja-te de todas as vestimentas que são os pais e um lar honrado, para a veemência. Já estás pura, para o amor. Um revoar de cidades e paisagens, e o trem não se detém. Um sonho a mais, e outro sonho. Tudo em uma sucessão sobressaltada. Nada vai à terra. Dança, pés, divinização. Medula, cabeças sem troncos, crime. Pesadelo, embriaguez, adolescência. O vertiginoso intenso interior se impõe. Tudo corre, voa, se transforma; as árvores se detêm para roçar o rosto cadenciado. Algo quer amanhecer, uma terrível confusão a tudo revira, e por cima de tudo, o galope, o galope, o galope. O indizível, por momentos tem um trejeito e o dormir tem uma ligeira transformação de membros. O lençol se converte, uma e outra vez, em asas da janela aberta e o galope se cansa, acalma. Cidades, paisagens, árvores, tomam a placidez de uma definição. O sonho tomou um ritmo infinito de aroma no amargo sorriso insatisfeito. E tudo é suavidade de esperançosa confiança no dormente.

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