4 Poemas de Manuel Orestes Nieto (Panamá, 1951)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Já se passaram cinquenta anos desde aquele 1970, quando publiquei meu primeiro caderno de poemas, sem compreender plenamente que estava cruzando o umbral nos caminhos das palavras. No entanto, meio século não foi suficiente para dizer tudo o que queríamos partilhar. Acho que o que está escrito é um único poema sobre um espaço geográfico e humano chamado Panamá e como me senti vivendo entre os oceanos, na passagem de multidões que iam e vinham pela estreita geografia ístmica. Família, memória, bairros e acontecimentos foram igualmente entretecidos em uma poesia ancorada na primeira cidade do lado pacífico do continente, reconhecível, chuvosa e que faz fronteira com uma fronteira colonial no coração do país e às margens do fabuloso Canal do Panamá. A poesia expressa essa realidade da nação e as contradições que surgem da ocupação estrangeira e com soberania cortada. Boa parte dessa poética tem como pano de fundo a história e, principalmente, a segunda metade do século 20 no Panamá. Registros diversos, oscilações entre o lírico e o épico, fugindo da gratuidade do folheto, modulando o som, era o desafio nesse ofício de ourivesaria de canções e sonhos. Sei que a poesia panamenha é desconhecida e que suas realizações e linhagens poéticas estão prestes a ser lidas pela primeira vez nas latitudes de nações irmãs. No entanto, ela existe. E a fazemos no país que leva o nome de uma árvore, peixe ou borboleta, onde vivemos, entre boas-vindas, reencontros, abraços e despedidas, nos portos e nas marés que nos rodeiam.

MANUEL ORESTES NIETO
“Han transcurrido cincuenta años”, Esferas del tiempo, 2020.


[NO DESLUMBRANTE MAR]

No deslumbrante mar
que nos fez;
na evaporação que se ergue
na túnica prateada das ondas,
nas águas tíbias
onde os cardumes nadam
em uma sincronia estelar
dentro de nosso coração,
no estreitamento
onde as pedras são polidas
no vaivém dos séculos
e emergem as águas-marinhas,
talhamos o memorial deste salobre oceano
e dos que souberam empinar-se
até alcançar a ressonância do amor
e o crepitar da coragem.


[TIVEMOS O PRIVILÉGIO DO CHEIRO SALOBRE]

Tivemos o privilégio do cheiro salobre
dos penhascos e arrecifes,
dos cardumes azulados
e o interior do indelével oceano,
como uma dádiva dos deuses
que reinam ainda
nos arquipélagos de níquel e cristal.

Os deuses do resplendor
e do relâmpago,
os deuses das águas,
os deuses esbeltos
da transparência de nosso mar;
os deuses imaculados
que esculpiram as medusas e as baleias,
a concha do molusco,
os tentáculos do polvo,
e as níveas catedrais
do fundo do mar.

Os deuses que vêm reunir-se
no início das noites côncavas
do inverno
para acender as estrelas
que iluminam o mágico oceano
que nos envolve.


FOTOGRAMA DE CHUVAS

Chove em maio sobre a cidade
e na janela da casa de zinco
há uma criança que escuta uma velha falar sozinha,
como se dissesse a si mesma:

                                      No Darién há vezes
                                      em que chove por três dias sem parar
                                     e o rio se torna um animal.

A cortina d’água jorra
pelas cariátides de bronze do Instituto Nacional
como uma serpente líquida
que se move viva pela encosta da rua.

E ela continua:
                                No nascimento do rio
                                há uma maldade que dorme
                                e às vezes desperta;
                                por isso a terra se move quando vem o aguaceiro.

A criança, sem entender suas palavras, pede a ela:
                                  Avó, deixa que eu me banhe no aguaceiro.

                  Não – ela responde –
                  porque a água da chuva está enferma
                  e quando cresceres
                  não poderás ter um filho assim como tu.

E ambos, sem falar, ali permanecem,
como se flutuassem em uma escama de peixe
nesta diminuta esquina do mundo,
inclinados na janela
que se abre ao ar cinza e úmido
desta cidade de chuvas intermináveis
e extensos silêncios,
vindo transcorrer a tarde empapada
desde o céu até a terra.



AQUELE PAÍS EM SUA MEMÓRIA

Ela me falava do lugar onde nasceu,
quente, úmido e fluvial,
como quem conta o naufrágio de um país.

Ao lhe ouvir, dava a impressão de que essa pátria selvática,
que descrevia até mesmo no som das aves
e no temor às matilhas de animais de olhos violáceos,
ficava demasiado longe.

Suas histórias resultavam truncadas,
abatidas por um silêncio ardente e melancólico,
filho de uma distância.

Sempre senti temor quando repetia
que os furacões apareciam de um momento para outro
como gigantes sem rumo que arrasavam com tudo.

Porém me contava de seu país de montanhas
de onde se podia ver dois mares ao mesmo tempo,
página a página,
rugido a rugido,
como os ventos abruptos e o aguaceiro
que rachava as margens dos estuários.

Quando a chuva nos encerrava em casa
e não podíamos sair,
eu lhe pedia que me dissesse como era aquele lugar
de árvores tão altas como o céu
e de escaravelhos de cor lápis-lazúli.

E então seu país era uma bruma alegre em seus olhos.

Seu inesquecível país onde o sol era uma festa vermelha
que tingia o oceano,
cachos de sal e espuma nas noites fosforescentes
onde as estrelas cadentes eram contadas às centenas.

O país que por força de recordações
permaneceu inalterado em seu coração de cristal
e em sua memória fresca
e que, de quando em quando, abria
para vê-lo flutuar em um mar de lágrimas.

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