Fabricio Estrada (Honduras, 1974)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Existem fatos que a poesia não alcança facilmente, mesmo com todos os mecanismos que a linguagem poética pode nos oferecer. Em minha poesia, quis explorar aquele ponto-limite onde as manifestações planas da realidade se cruzam com a intenção estética, mas falo de uma realidade que ultrapassa a poesia e não de uma realidade que é indescritível. É aí, então, que o enxame humano cria sua vibração e que não precisa de palavras ou poesia para expressá-la. É uma espécie de epopeia da grande recusa a se expressar, que faz com que a simples realidade freie o mundo da comparação poética.

Nos últimos anos, recusei-me a acreditar – seguindo esta inércia – que a poesia é a pedra de Roseta da poética aristotélica. Recuso a crença alucinante de que a poesia salva, de que é um recurso de redenção ou de terapia social, de que os poetas são tocados por um verniz de santidade que ainda não impregnou os grandes seres humanos que arriscaram tudo pelo que humano. Um gesto simples, mas inequívoco no monge bonzo daquele Vietnã martirizado, contém todo o signo do céu e do mar juntos. Como você consegue isso com palavras? Neste confinamento, iniciei a tarefa de revisar minha presença e ausência dentro do que escrevo e os números vermelhos que encontrei na ausência estão me incitando, como milhões, a sair, a andar pelas ruas, a quebrar os limites das precauções e recomendações do panóptico.

Procurei conter a poesia na qual acreditava ter alcançado satisfação estética e meu papel de inspirador social. Neste momento, é a humanidade inteira que questiona o que seus pensadores e criadores acreditaram dela. As distopias agora são coisa do passado e todos nós nos despedimos agitando nossas máscaras nas plataformas da utopia, que ainda nos espera. Recuso-me, então, a acreditar que haja algo superior ao fato humano que já entrou – como diz Pamuk – naquela parte da realidade da qual é impossível voltar, e escrevo, até o limite, mas escrevo, com cada vez mais segurança.

FABRÍCIO ESTRADA
“Reflexionando lo que escribo”, escrito para esta edição, 2020.


Provarei a sorte das loterias,
tomarei o curso do despejo dos cães de agosto.

Acamparei depois da investida da loucura e acenderei uma fogueira,
esfregando as pernas que se movem à vontade em direção ao sul.

Tenho poucas armas para traficar
e consegui trocar apenas um par de penas com os anjos famintos.
Péssima poesia se escreve com elas, péssimos cartazes incendiários,
poucas epístolas, poucas emendas constitucionais,
poucas leis para o vazio, poucas notas sinceras.

Uma vez declarada aberta a cidade por ela entraram até os budistas mais reacionários, todos com seus lança-chamas
e metais cumpridos para sondar as gretas.
Por várias semanas permaneci insepulto
e nem mesmo tatuando em meu rosto o nome de Orestes
apareceu uma Electra que chorasse e rogasse por mim.
Os cães de agosto me levam pelos calcanhares,
muito cedo começou o desmantelamento das lojas.

Desalojados os velhos seguiram com toda a vida que se move.

Desmantelam corpos. Paradas de ônibus. Livrarias.

Uma mulher foi desalojada de seu rosto.

O céu foi desalojado de seu azul.


MONTADORA

Sempre
o desejo de ver nos demais
o que já ocorre em nós mesmos,
a intenção de desviar a tristeza que nos corrói
para outros mais aptos a sofrê-la.
O que produzimos além de toneladas de angústia?
O que reciclamos além de milhões de ansiedades?
A toda hora se abrem as caixas
delas retiramos a víscera infinita de tecido,
os pescoços, a agulha
as mangas, a agulha
a etiqueta, a agulha
hora após hora
enquanto chega a vez do almoço,
depois do trabalho, depois dos bares
nas grandes montadoras que nos tosquiam,
essa espécie dentro de nossa espécie
que nos arranca a pele em finos fios e embala.

Um amigo me contava
sobre o feeling de uma montadora em Choloma:
durante todo o dia a música ensurdecedora dos autofalantes,
evitando conversas entre os trabalhadores.
Aquela estridência deve fazer com que cheguem em casa vibrando,
despedaçados, ao final do dia,
espirais brancas para varrer e tosar.
Ele me contava da aposta que se faz
para produzir mais camisas brancas,
camisas brancas,
camisas brancas,
camisas brancas,
camisas brancas,
casimas barcnas,
casmias cranbas,
masicas barancs,
camcans braisas,
canscam sasbrai,
cansbrasas icam…

É comovente ver essa gente do primeiro mundo
vestindo nossa pele.
Comove sentir quando chegam os esfoladores
e nós tão brandamente
entregando nosso peito e dorso
o pescoço branco, a agulha
a manga branca, a agulha
a etiqueta branca

a agulha.


VAMOS SER ROMÂNTICOS

Está bem. Sejamos românticos.
Mas uma vez eu estava ao lado dos tomates
com um megafone
e na minha frente um açougueiro quebrou o osso.
Minha boca tinha 40 watts
e as minhas palavras eram afiadas como uma vizinha que canta mal.
Talvez ele tenha me ouvido como esses anúncios de aeroporto
que ninguém entende e todos os voos são perdidos.
E assim ele continuou tratando de ser romântico.
Três soldados enviando mensagens de texto em seus celulares
dois inspetores de saúde vasculhando os bifes,
um taxista trocando óleo,
mãe e filho comendo rosbife,
o dono dos tomates esmagados
que pareciam duas balas e o açougueiro
esmagando vértebras.
Todos ouviram meu barulho.
Palavras que não venderam nada.
Tão jovem e já pregando o evangelho –
eles disseram,
e os preços subiram naquela manhã
e uma senhora, nada poético,
reclamou daquela leitura em seus bifes.

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