5 Poemas de Carmen Bruna (Argentina, 1928-2014)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Meu encontro com a poesia foi muito anterior à data de publicação de meu primeiro livro. Por razões que não podem aqui ser explicadas escolhi muito mal minha profissão (formei-me médica em 1955). Então vendi meus livros de medicina para comprar livros de poemas, novelas ou contos, e assim entrei de cheio no mundo das palavras. As revistas Poesía Buenos Aires, que dirigia Raúl Gustavo Aguirre, e Letra y Línea, de Aldo Pellegrini, abriram-se para mim com toda a lucidez e fantasmagoria dos sonhos. Através de ambas aprendi a conhecer os primeiros poetas surrealistas. Estive no grupo de “Poesía Buenos Aires”. Porém hoje, com a claridade que dão a distância e o tempo, compreendo que os poetas varões de então não levavam a sério as mulheres. No grupo éramos “fêmeas disponíveis” e nada mais.

Quem rompeu o esquema foi Alejandra Pizarnik, que conheci ainda muito jovenzinha. Porém já naquela ocasião havia me afastado. Possuída pelo que André Breton chamara “L’amour fou”, saí de Buenos Aires com meu namorado a percorrer distantes províncias como médica rural. Foi uma experiência longa, traumática, apaixonada. Acabei com três filhos (duas mulheres e um rapaz) a quem quero muito. Conheci o incêndio de todos os sentidos, afundei em profundos poços de depressão e angústia. É por isto que, praticamente separada, publiquei em 1979, em plena época da ditadura militar, meu primeiro livro: Bodas.
[…]

Minha atitude luciferina não termina na negação total. Somente desencadeia minha fúria ante a injustiça de nascer para envelhecer e em seguida nos convertermos em pó dos caminhos. Por isso em meu livro La diosa de las trece serpientes, evoco as palavras de Clarice Lispector: “Não vou morrer, escutaste, Deus? Não tenho coragem, ouviste? Não me mates, ouviste?, porque é uma infâmia nascer para morrer, não se sabe quando ou onde” (de seu livro Água viva).

Talvez haja algo de niilismo em mim e também de agnosticismo. Mas isto acaso é motivo para que me questionem?

CARMEN BRUNA
“Carmen Bruna, la hermana de Caín”, entrevista concedida a Raúl Henao. Revista Prisma # 49. Bogotá. Outubro de 1994.


O PARTIDO DOS DEMÔNIOS

“Conduz teu carro e teu arado
sobre os ossos dos mortos”.
Provérbios do Inferno, de William Blake.

Meus desejos não querem ser negados
meus velhos prazeres soluçam com o arcanjo primitivo.
Te maldisse, feroz aparecida de pupilas de ônix
e colhi por isto uma exuberante coroa de lírios vermelhos,
apontarei para teu coração de fêmea com minhas flechas de obsidiana,
destroçarei tuas redomas de mirra e incenso
para que tua carne não possa consolar-se nunca mais com a espuma.
Como o vapor do mar ascendem os globos de fogo,
como o orgulho dos videntes com os sentidos famintos,
multiplicam-se as orações do tato nas plumas cálidas das aves,
como a madalena conhecerei as doçuras da pele do anjo da babilônia,
a persistente loucura que se desprende dos ossos esbranquiçados pelo sol
e as delícias do mel nos lábios do oceano.
Aos despeitados todo o amor
aos abandonados toda a vergonha
aos heréticos toda a glória
Sobre a colina tremem as fogueiras
e se ergue o patíbulo onde o rebelde negro de Surinam
pende como um tigre escuro,
seus enormes olhos nictalópicos contemplam enfebrecidos o rosto vazio das caveiras.
Não há vinhas para os filtros da ressurreição,
não há deslumbramento capaz de incendiar o vale da morte:
cai o sangue dos sóis fugazes da meia-noite
nutrindo a raiz da mandrágora com seu licor viscoso,
Simão o mago interpreta meus sonhos herméticos
com os signos do jaguar e da cabala,
recolhe meus pesadelos como atos de amor
aceita minhas preces irritadas,
com mudas reprovações, com infinitos sofrimentos,
com descargas elétricas que são como enxames de pássaros sedentos;
a madona dos destinos, a mulher dos alquimistas
percorrerá a cidade em um corcel de risos noturnos
e de libélulas transparentes como as pétalas do íris.
Eu amarei tua jovem jaula de cabelos de asas de colibri,
teus estremecimentos de chuva nas janelas dos antigos conventos;
amarei o canto das auroras boreais,
o tremor de tua mão com aguilhões
e beberei as flores carnívoras das nepentes no oco das rochas,
percorrerei o submundo de Fonthill, morderei a lua de seus ídolos;
minha língua de cortesã conhecerá o leite dos jasmins no trono.


TORRE INFINITA

Choro porque subi a uma torre da qual não posso descer
choro por todas as coisas perdidas que não recuperarei
choro porque cresci e não posso suportá-lo
porque perdi o centro de gravidade do amor
porque me extraviei em uma selva onde todos os que estão comigo
são fantasmas translúcidos
e como nas novelas policiais procuram minha loucura e minha extinção,
porque tenho medo da morte e no entanto a persigo com passos cautelosos
para que me veja e acabe comigo no acaso do ponto e banca,
porque repudiaram e atiraram à luz todos os meus defeitos,
porque sei que dei tudo o que possuía
e agora que estou desnuda largaram meu coração
na água barrosa do pântano,
porque já não há canções para mim,
porque também fui enganada
e expulsa do éden sem contemplações.
Coração de cristal vais estalar de desespero
no lamaçal musgoso
toda a magia do mundo não será suficiente
para preservar o ritmo de teus latejos solitários
nem o feitiço sexual que me acompanhou por longo tempo
nos desertos da lua vermelha.

Deixaste-me em um bosque vazio, rindo e mentindo para mim
acabaram-se as viagens em vagões de segunda classe
com crianças pequenas nas fraldas.

Ah esse vento de esmeraldas pulverizadas que conduz ao cemitério.
Sozinha como a menina que fui perambulo pelos limbos
e meus gritos não têm resposta
somente o uivo dos cães selvagens
na noite sem cruz do sul ou via láctea

e o abandono que desintegra a alma lentamente
que a vai apodrecendo lentamente
a alma em pena que dói em todo o corpo,
que já não acariciam ao passar as nuvens de veludo ou a lua de ouro.


VINGANÇA DE ISOLDA, A DAS BRANCAS MÃOS

Posso acaso conjurar os deuses para que te crucifiquem?
Posso acaso apelar ao raio para que te converta em cinzas?
Posso arrancar a maçã envenenada
desta árvore invertida cujas raízes se afundam no céu
que é meu universo
e oferecê-la a ti para que morras?
Sou eu a víbora Nidhögg que tenta derrubar tua árvore cósmica,
tua Iggdrasil,
para erguer em seu lugar outra Iggdrasil de nove luas
com seu jaguar em liberdade,
uma árvore celestial onde girem e cantem minhas esferas.
Tem tanto poder o ódio das mulheres que amaram muito?
Pode o ódio dessas mulheres ser o sol do devir?
Pode a morte sacrificial converter as trevas, as orgias e o caos
em uma nova vida resplandescente?
Se renasce depois seguindo a dança das loucas azuis?
Chove e germinam as laranjas andróginas e suas flores?
Há que abolir o tempo, irmã inimiga,
e ali onde eu enterre teu cadáver
na encruzilhada desses caminhos infaustos
todos os peregrinos jogarão uma pedra
porque saberão que te assassinei
e converti esse lugar em sagrado com meu crime.
Ali estará a casa do deus,
o centro do mundo,
o assobio de Delfos
seus oráculos dementes e narcóticos como a própria vida.
Ali estará o abrigo do mundo
porém já não respirarás
e depois da colheita das amapolas
tampouco eu respirarei.
A marmita das feiticeiras não poderá revelar jamais
porque nem para que existimos eu, tu e ele.
Ninguém poderá revelá-lo.
O mundo é certamente absurdo
e quando aqueles que nos amavam nos abandonam
a dor que nos causam não tem cura.
A dor nos conduz à terra dos que perderam seu sangue
no naufrágio espectral dos desertos
e ali onde na encruzilhada te assassinei.
Na encruzilhada eu a assassinei.
Porque com seu sangue minha dor será lavada,
porque com seu sangue serão lavas as chagas permanentes de minha alma,
porque com seu sangue perderei minhas memória.
Desdobrarei a vela negra para que ela nos sirva de mortalha.


LOVE FOR SALE

Lanzarote do lago
é essa angústia insensata de teu amor cortês
o que me enlouquece e subleva de teus sonhos maravilhosos.

Olheiras verde mar, sombra nebulosa e violeta da espionagem velada.

Porque resgataste a rainha Genebra do Outro Mundo
e ela deveria ter-se aberto diante de ti, ansiosa e terrível
como as gatas em zelo
deveria haver guiado tua mão
entre o emaranhado venusiano de suas úmidas relvas
de suas leitosas coroas de noivas de pálpebras brancas e lascivas
como a espuma das açucenas salgadas que rompem na praia.
Era a flor vermelha de sua vagina de rosa navegada por ramalhadas celestes.
Era a flor de ouro
da mulher primigênia
era teu pássaro de plumas de diamante que queria aninhar-se em seu leite,
e no lago dos cisnes que agonizam intoxicados
de perdida paixão.
E há pela noite
um perambular de olhos vampirescos,
há plumas de pavão real com luzes de neon
e vagas mulheres de longos cabelos
que entoam fragmentos de Madame Butterfly.
Há gente que canta a epopéia de Severino Di Giovanni,
há mulheres que rezam nuas nas basílicas subaquáticas,
pares que se acasalam como peixes aéreos
inundados de luz e maré preamar estranha de rouxinóis alcoolizados,
bebendo a saliva dos dragões
que encharcam de violetas e de chamas
a seiva de suas gargantas
rindo-se às gargalhadas do Papa Wojtyla
e dos mulsumanos fundamentalistas.
O inferno bíblico é o melhor lugar para passar as férias
com “gente como essa”.

E, sicários que cheirais a sepultura,
se nos apanhais sem documentos,
se nos apanhais na catatumba molhada pelas lágrimas
onde nos refugiamos de todo o terror do caos,
deixai nossas pupilas drogadas,
deixai-nos os olhos
deixai-nos os sonhos que refletem todo o horror
da lâmpada de marijuana onde se suicidam
as borboletas turquesas.
Deixai-nos o elevador onde se saboreia a genebra
deixai-nos as olheiras pavorosas da ebriedade
dos castelos ruinosos onde a madressilva copula com os zorrinhos.
Deixai-nos a morte lenta da morfina e da heroína:
nós a ganhamos
jogando um jogo limpo
de criaturas contra mísseis.

Deixai-nos eleger a vida.
Deixai-nos eleger a morte.

Na distância, à meia-noite, quando as bruxas cavalgam,
soam o bandoneón e o sax de Piazzolla e Gerry Mulligan.
Depois, muito longe, Ravi Shankar.
Erotismo sem hemorragia dos Vedas
como o empedrado poeirento das vacas sagradas da Índia.
Ah tão simbólicas as pobres com seus ubres de líquenes roxos,
já tão famintas como seus próprios donos!
Perfume de bosta, de curry nas cozinhas,
de hóstias mastigadas como pão de centeio,
nos perdidos monastérios católicos,
dessa horrenda Calcutá da Madre Teresa,
cheiro de urinas, de sêmem e de sangues menstruais,
junto às vias férreas paralíticas.

Desejo uma violenta inundação de frescas hemácias,
de assassinatos ao estilo ocidental,
as gargantas talhadas de orelha a orelha
como nas novelas de Dashiell Hammett.
Desejo toda a tristeza de Keith Jarrett
em Margot
e de Chick Corea em “This is new”.
Desejo, sem nenhum deus onipotente,
esta nostalgia insensata
que enche meus olhos de umidade.
Meus olhos de pestanas surpreendidas
pelo pranto feroz de todos os meus cruéis pesadelos.


O PROCESSO E A CONDENAÇÃO

As flores de teus olhos
se abrirão alucinadas em meus seios para sempre perdidos.
As montanhas nevadas serão a inabarcável altura
que só alcançarás para beijar na boca
a febre de teus sonhos

alarido na pedra

Eu te causava repulsão
meu mundo enfermo tornara-se insuportável para ti
e assim me condenaste ao pavor permanente
conheço como ninguém as ensolaradas cabanas
onde se derramará o fogo de tuas quimeras
conheço tua feroz certidão de nascimento,
a da mulher sem cabeça
e posso imaginar-me o dourado templo outonal de teu epitáfio.
Meu coração transborda de amor por ti e de maldade,
não temas. Ninguém te molestará em teu refúgio.
Aquela que hoje diz que te quer não subirá contigo às alturas.
Estarás só.
Só.
Como eu.

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