GRITOS – 10 Poemas De Joyce Mansour (Inglaterra, 1928-1986)

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Apresentação e tradução de Floriano Martins

Durante as primeiras décadas de eclosão do Surrealismo, no centro radiante que era Paris, as mulheres foram idealizadas de todas as formas possíveis, porém jamais foram vistas ou aceitas como artistas. Sequer participaram das reuniões e enquetes – a eloquente enquete sobre sexualidade comete o ato inadmissível de não incluir a opinião de nenhuma delas. Em geral quando se fala de Joyce Mansour, ela é mencionada como uma exceção. Embora admirasse o Surrealismo à distância, em seu Egito natal, somente em 1953 a poeta se muda para Paris, e seu primeiro encontro com Breton, com quem já se correspondia, data de três anos depois, quando o Surrealismo começa a enfrentar desgastes e necessita beber novos horizontes que o revitalizem. A poesia de Joyce, que enfatizava a violência sofrida pela mulher, suas imagens dilacerantes, o ímpeto revolucionário da linguagem, causou um impacto eficaz e decisivo à sua recepção no movimento. Sua natureza sempre independente a leva, ao passo de poucos anos, a compreender que a escritura automática trazia em si como elemento essencial o impulso vital de implodir eventuais travas da criação. Xavière Gauthier evidencia que toda a obra de Joyce Mansour fala da áspera luta amorosa do homem e da mulher, separados por um coito profundamente marcado pelos ancestrais. A mulher recusa converter-se no que o homem quer fazer dela. Sua poética passou então a lidar mais intensamente com outras técnicas surrealistas, de um modo bastante peculiar, como o recurso onírico, presente em muitos cenários e personagens de sua prosa, de seus densos relatos que se mantinham direcionados a tratar da violência contra a mulher, assim como o humor negro, que põe em cheque as instituições e dá à sua obra uma alta expressividade que a situa como uma das mais importantes poetas de seu tempo. Aos leitores de Acrobata apresento uma seleção de 10 poemas do livro de estreia de Joyce Mansour, Cris (1954), desde o princípio os traços de uma poética de riscos, pela agudeza das imagens que traça, em poucas palavras e com um léxico não muito amplo, resultando em objetos fascinantes, de uma agilidade imaginativa surpreendente.

Cris (1954) é o livro de estreia de Joyce Mansour

Gosto de tuas meias porque elas reafirmam tuas pernas.
Gosto do espartilho que sustenta teu corpo trêmulo
Tuas rugas o balanço de teus seios teu aspecto faminto
Tua velhice sobre meu corpo tenso
Tua vergonha diante dos meus olhos que viram tudo
Teus vestidos e o cheiro de teu corpo apodrecido.
Tudo isso finalmente me vinga
Dos homens que não me queriam.


Não comas os filhos dos outros
Pois a carne deles apodreceria em tuas bocas cheias.
Não comas as flores vermelhas do verão
Pois sua seiva é o sangue das crianças crucificadas.
Não comas o pão negro dos pobres
Pois está fecundado por suas lágrimas ácidas
E criaria raízes em teus longos corpos.
Não comas para que teus corpos murchem e morram
Germinando na terra em luto
O outono.


Eu te sustento pela última vez
Em meus braços.
Rapidamente te enfio em teu caixão barato
Quatro homens o carregam depois de lacrá-lo
Sobre teu rosto decomposto sobre teus membros angustiados.
Amaldiçoando eles descem as escadas estreitas
E tu, tu não deixas de se mover em teu pequeno mundo.
Tua cabeça separada de seu pescoço decepado
É o começo da eternidade.


Gostas de dormir em nossa cama bagunçada
Nossos velhos suores não te desagradam.
Nossos lençóis manchados por sonhos esquecidos
Nossos gritos ecoando no quarto escuro
Tudo isso excita teu corpo faminto.
Ao final teu rosto feio se ilumina
Pois nossos velhos desejos são teus sonhos de amanhã.


Na praia prateada dos suspiros intuídos
Perto dos pinheiros crucificados contra um céu ausente,
Te espero.
As pegadas de teus pés se sucedem na areia perfumada
Como eu loucamente perdidas
Lambidas por um mar ansioso.
Na praia nos deixaste ao meio-dia
Dormindo
E esta noite a noite toda nós te esperamos impacientes
Sentindo em nossos corações assombrados por tua presença
Que a praia a partir de agora ficará vazia.


Um polvo dourado e pegajoso
Luta com minha perna estriada
A música essa zebra de cores
Jorra em abundância da trombeta desossada.
Bailarinos com tachas de borracha
Lustram seu sexo de veludo plissado
Sobre o teto de platina da lei.
Esperam que meu polvo de baba sagrada
Braços e pernas intactos azulado de gim e palavras
Caia no sono…


A amazona comeu seu último seio.
Na noite anterior à última batalha
Seu cavalo calvo inalou o ar fresco do mar
Gorjeou e relinchou seu terror furiosamente
Pois os deuses desceram das montanhas da ciência
Trazendo consigo os homens
E os tanques.


Silenciosamente os navios passam
Pela água lamacenta e rosa do sol
Rosa de sangue de bois dignos
Rosa de sangue de crianças gravemente afogadas
Rosa talvez como teu sangue opaco.
Silenciosamente os barbilhos deslizam
Pela água suave suave de fluir lento
E teu corpo assim é carregado pelo mar ao longe
Quebrado pelos juncos sugado pela lama
Liberto para o esquecimento.


Tua respiração em minha boca
Tuas mãos secas com suas unhas pontiagudas
Não podem libertar minha garganta carmesim
Carmesim de vergonha de dor de prazer.
Teus lábios roxos sugam meu sangue
E minha carne cerosa sempre te tentará
Porém meus olhos permanecerão fechados.


Que meus seios te provoquem
Eu quero a tua raiva.
Quero ver como se espessam teus olhos
Como empalidecem e se consomem as tuas bochechas.
Eu quero os teus tremores.
Quero que irrompas entre minhas coxas
Que meus desejos sejam realizados no solo fértil
De teu corpo despudorado.

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