Andriele Moraes, jovem jornalista pernambucana, é uma das criadoras do grupo de leitura e podcast “Clube do Livro Feminista”. Contista, autora publica seus contos online em sua página pessoal.
foto: Marcus Samed
O corpo de Tara expulsava qualquer coisa de coisa. Nada permanecia naqueles ossos descarnados. Na alma só os fios do resto de urdidura. No torso da mulher, nada se sustentara. Nem aquelas coisas que as pessoas costumam chamar de vida.
A coitada extraia daquilo que nada tinha uma maneira de não morrer. Manter-se de pé pra quase não desfalecer de tudo o que saia dela. O problema é que saia só o que ela queria que durasse: a vida de uma vida. Mas o que Tara estava cansada de saber é que a vida de uma vida deslizava dentro dela até virar sangue no banheiro, na rua, na presença, em qualquer lugar.
Já fazia 5 anos que esse resto de resto no corpo de Tara buscava maneiras de se aconchegar nas vísceras da mulher. Desde o casamento com Notório, esses espaços vazios contagiavam uma estrutura de sei lá o quê. Tara queria a vida de uma vida com seu homem, mas seu corpo não cedia nem sequer na ocasião do gozo jorrado no útero.
“E cadê a criança? Já não tem tempo pra ter não?”. “Já vem, já vem, Tara só tá com problema de loucura, mas a criança já vem”. A criança não vinha. A vida de uma vida queria mesmo era ser liberta de um corpo que não podia ser habitado. Tara sofria como qualquer mulher que queria gerar uma vida pra dizer que tem uma outra vida dentro de si, mas pra quem tem rachadura grossa, a vida da vida se despedaça.
Notório era paciente com a mulher de fios de restos. Não cansava de pesquisar como se faz uma vida. “Olha, Tara, a gente tem que ficar assim”. “Assim não, desse outro jeito”. “Pronto, Notório, agora que você tem que gozar não é?”. “Gozei”. “Vamos esperar”. Depois da virilidade transbordante, os dois deitavam lado a lado na cama e esperavam. O silêncio estendia-se por 10, 15, 20 minutos. Era sempre Notório que quebrava o esquecimento das palavras com um: “Será que agora vai?”. Tara calava-se. A mulher preferia esperar o atraso do sangue pra tecer a esperança da espera de uma vida.
Passou-se um mês. “E aí, a regra veio?”. “Tá cedo ainda Notório, deixa de agonia”. “Acho que dessa vez vai Tara, tô sentindo até sua barriguinha crescer”. “Coisa da sua cabeça, Notório”. Era da cabeça e da vontade do homem. Nada tinha naquele corpo. Só permanecera o amor pelo marido que escolheu.
A excessiva existência de Notório pra que, juntos, se criasse uma vida, abalava cada vez mais a presença de Tara. A mulher tentava monólogos intermináveis com Deus. Certo dia foi procurar um pai de santo que prometia uma reza brava pro corpo de Tara expulsar as energias negativas que, segundo ele, vinham era de mal olhado. “E o que devo fazer depois disso?”. “Toma aqui, ande com essa ervinha na sua bolsa que logo logo você vai conseguir ver o resultado”. A erva murchou depois de 8 dias. Nada permanecia vivo perto de Tara.
A mulher não desistiu não. Foi procurar um médico qualquer num desses postinhos com parede quebrada. “Desculpa, o agendamento pro ginecologista só daqui 2 meses”. “Pode marcar”. Tara, mais uma vez, colocou-se a esperar.
Atormentou-se por dias e dias. A fragilidade da mulher já transparecia no corpo esquelético. Notório tentava de todas as maneiras convencê-la de que a culpa não era dela. “Deus tá preparando, não lembra de Sara, não, que engravidou foi com 100 anos?”. Tara aconchegava-se. Tinha Notório. O homem era o que permanecia ali mesmo com as perdas que não podiam ser chamadas de perdas.
Chegou o dia do ginecologista. Fez os exames. “Senhora Tara, você é perfeitamente fértil, pode ter filhos”. “Não, dôtora, tem um problema aí”. “Não, não tem, olha seus exames, estão perfeitos”. O sentimento de confusão tomou conta da coitada. Se era tão saudável assim, por que então não conseguia deixar com que uma vida invadisse seu corpo? “É tempo, Tara, é tempo”. Dizia a si mesma. Tempo de não-pertencimento. Tempo de não-encaixe. Tempo de vida que não podia ser vida. Mas continuava a ser tempo.
Do desejo, a permanência e a fuga
O que o corpo de Tara não tirava dela era o desejo contínuo e excessivo pelo marido. De Notório, era a mesma coisa. O casal, que se conheceu do lado de fora de uma festa de forró que nem banda tinha, se encantou num só segundo. Foi no oi que já nasceu a primeira sedução. Olhar pra lá, de acolá. Entraram pro festejo sem nem saber que música tocava. A verdade é que não tocava nada. A banda não tinha entrado. O movimento do público era de sair. De Tara e Notório era de entrar. Entrar e se estabelecer numa quase dinâmica de dança. Entrou e ficou. A matéria do homem ficou presa na matéria da mulher que nada sustentava em sua vida.
A movimentação do remexo permaneceu na vida dos dois mesmo quando Notório queria uma coisa e Tara outra. “Mas olha aqui, a gente tem que se casar é nessa data”. “Não, Tara, foi nessa aqui que a gente se conheceu e tem que ser nessa”. Notório cedeu. Tara não se lembrava do dia que viu e remexeu o quadril pra Notório. Nem isso ficou encravado no corpo da mulher. Mas Notório renunciou a própria certeza só pra ver a danada da mulher exibir o sorriso do amor que cantava no próprio rosto.
A paixão no olho cru de Notório não se parecia com o vento adverso na vida de Tara. Desde criança a menina tinha que dar conta de 5 bocas pra comer. A mãe, uma alcóolatra, deixou de herança pra família as garrafas de cachaças vazias. O pai, dono de puteiro, queria mais era que as filhas se tornassem moças logo pra dá de vender. Tara era a mais velha. A responsabilidade da menina foi um fiasco indiscutível. Não conseguiu as amarras das próprias irmãs, que partiram pra dor de serem prisioneiras de homens mais velhos donos de outros puteiros pela cidadezinha de Belo Jardim, em Pernambuco.
A dor coagulada da violência fez com que Tara se desprendesse da vida que detinha pra ter uma vida com o único homem que era capaz de amá-la: Notório.
Solidificação do corpo
A ideia de ter um filho partiu nem de Tara e nem de Notório. Foi dos outros como regra básica pra viver num casamento. Aos olhos dos dois, não pareceu uma má ideia. Ao total, foram 5 tentativas. Oração. Pai de santo. Evangelismo. Medicina. Sorte. Nenhuma deu certo. Notório queria continuar. Tara desistir. A dor da mulher não foi pela não-permanência de um corpo dentro de seu corpo, foi pela desaparição. Não sobrou pra si um resto de corpo. Não havia criança nascida morta, tampouco criança que não conseguia se desenvolver dentro de um agarro de desespero. Era criança que não existia. Resto de violência. De dor. Da falta de permanência que assolava a substância do abandono. O abandono da vida que nunca chegou a ser uma vida.
Depois do sofrimento pela falta de um pertencimento, Notório e Tara resolveram dar uma pausa. Mudaram os rumos da vida. O melhor foi cada um viver do prazer que sentia um pelo outro. Nesses tempos, o acalento do corpo do homem e da mulher foi o refúgio para aquilo que ela já estava cansada de perder sem ter perdido. Tara deitava-se todos os dias com as pernas entre as de Notório. Ele não sabia, mas toda vez que ela fechava os olhos imaginava a vida agarrada a um único só corpo: o de seu homem. Era esse corpo que havia resgatado o seu corpo da violência. Foi esse corpo que encontrou nela, unicamente nela, a forma de deter-se para tudo aquilo que não era arruinado. Para o abraço. Para a parte do corpo em que a substância é mais viva do que qualquer coração acelerado ou cérebro movido.
O corpo de Notório era seu. O seu corpo era de Notório. Ela se enquistou naquele homem jurando que era a vida natural que havia gerado para si. Notório deixou de ser seu marido pra ser a permanência imóvel do seu corpo que expulsava qualquer fio de coisa.
Moveu-se para um outro lado da cama. Desencostou-se das pernas quentes e reconfortantes. Lançou pro homem. “Eu quero de novo. Eu quero uma vida aqui dentro parecida com você”. Notório não quis acreditar, mas cedeu. Temia o sofrimento da esposa, mas reconheceu que o que fazia o corpo da mulher vivo era a necessidade de viver o fracassado.
Uma vida sem vida
Antes das tentativas de ter uma vida pra si, o corpo de Tara corria, abraçava, sentia prazer. Hoje, o corpo de Tara era um corpo arruinado pela parte de um outro corpo que nunca existiu. Tentara, com vontade, a permanência de algo que não fosse apenas Notório. Expulsava de vez. Pouco se movia. Único movimento era de se entrelaçar com seu homem pra que ele alcançasse a parte de dentro de seu corpo deixando ali um resto do nada.
O corpo cansado de Tara não chorava. Pouco tremia durante as tentativas falhas. A mulher entrou em um casulo para dar a Notório um outro corpo. Deixou de aceitar que sua estrutura corporal era o que o marido merecia. Ele carecia de algo mais. Carecia de ossos carnudos. Carecia de enlace. O corpo desgastado de Tara já não podia dar ao seu homem o que serviria pra viver. Na mulher, de nada poderia trazê-la de volta à vida se não uma outra vida.
Notório, ao ver os prantos silenciosos de Tara, pediu para que não insistissem mais em uma criança. Tara negou. O homem viu pela primeira vez aquela mulher chorar. Foi tomada por uma crise de desespero. Precisava tentar a perda. O sofrimento abateu-se sobre ela. Notório, mais uma vez, cedeu.
Tentou. Tentou. Tentou.
Do nada não vinha cansaço. Do nada não vinha sequer um recomeço.
Tara envelheceu estirando a Notório um desejo inabalável de qualquer coisa. A mulher já não sabia mais o que queria. No seu corpo, nem a consciência foi capaz de permanecer.
Tentou. Pedia pra Notório tentar novamente. Queria vida. Queria viver.
O nada abalou-se novamente. Tara deixou de sentir. Resignou-se para o lugar de coisa alguma destinado a ela. A mulher fez de tudo para retornar. Retornava só à noite quando se reprimia no corpo cumprido do marido. Era dali que, a cada noite, sentia a necessidade de tentar mais uma vez. Notório preocupa-se cada vez mais com a sanidade de Tara. Tara preocupa-se cada vez mais em dar um corpo vívido pra Notório.
O vazio apaziguava a mulher. Quando tocava no ventre, sentia a matéria que não consistia em nada. Sem se angustiar, acariciava. Nesses momentos, a mulher falecia.
O corpo foi tomado pela velhice de quem se trancou num sol pra se esquecer de si. As rugas com seus 30 anos pareciam mais de gente de 50. Encurvou-se. Começou a andar olhando pra baixo. Procurava alguma coisa de nada. Fazia qualquer pessoa tocar na própria barriga. Depois disso ria. Pra vizinhança, Tara já se tornara a louca que não podia sair de casa pra não assustar as crianças. Pra Notório, Tara continuava a mulher que se apaixonou sem que música precisasse tocar.
Todos os dias Tara morria e renascia. Morria ao perceber que em sua estrutura não havia nada. Renascia quando se entrelaçava com Notório.
Nesses anos, a mulher sempre achou uma brecha pra enfiar qualquer coisa dentro de si. Teve uma vez que engolia foi agulha pra ver se aquele corpo dado desde a nascença se sustentara com aquilo. O objeto saia era num dos vômitos. A única sanidade mantida em Tara era Notório.
O homem passou a chegar mais cedo do trabalho pra tocar o corpo de Tara e senti-la viva. A quem chamasse sua mulher de louca, o homem partia logo pro contato físico. “Repete o que você disse que eu quebro seus dentes”. Disso nada adiantava. Todo mundo temia as loucuras de Tara.
Num dia, a mulher, sem Notório ver, saiu de casa e foi engolir as pedras que começou a catar pelo chão. Na rua, as crianças riam. Alguns tentavam impedir. “Isso aqui tem que permanecer no meu corpo, é pedra ó, não sai em vômito, não”. Notório, ao ouvir os gritos, correu logo pra acudir a esposa. O homem pensava ser possível mudar alguma coisa. Mas não tinha jeito. Tara foi consumida pelo desejo de ter um corpo que não cabia em seu corpo.
A mulher passara os dias em casa à espera do marido para voltar à vida. O cadáver foi causado pela morte do que não se podia sustentar. Do único sustento, o entrelaço com Notório, o homem a quem retornava à existência.
O homem dessa mulher já não sabia mais quanto tempo de presença poderia aproveitar ao lado dela. Temia, todos os dias, tocar em Tara e senti-la morta. Temia a morte da morte. A morte que não podia mais retornar à vida.
Por amor à esposa, Notório esperava. Com suas pernas, puxava as pernas de Tara para perto de si. A mulher se remexia. Era ali que via o seu retorno. A mulher reagia com o encosto da cabeça no ombro do seu homem. Mas até quando se movimentaria assim?
A morte de quem já morreu
Tara morreu a morte mais insuportável que a morte verdadeira. Morreu a morte de não provar do que seu corpo poderia fazer. Morreu a morte do sentimento definhado dentro de si sem nem virar poça de sangue pra concretizar o abandono.
A morte de Tara foi a morte do banho tomado, da vestimenta, da conversa, do entrelaço com Notório, da saída de qualquer coisa por vômito. A morte de Tara foi a morte do corpo que não sustentava um outro corpo. Foi a morte do fio de resto. A morte de não renunciar a morte.
Sem falar pra Notório, a mulher pensava diariamente, enquanto seu corpo se intrincava sob o corpo de seu homem, que desde que veio à vida veio pra morrer e sustentar uma matéria insustentável. Desde criança soube que a ordem natural da própria existência era fazer com que nada durasse. Sabia, todos os dias, mesmo em meio à morte, que a transfiguração das coisas permanecia em sua vida para que outras vidas não permanecessem em sua presença.
Tara desapareceu assim como toda a matéria do corpo que não se conservava dentro de si.