10 Poemas de Fábio Pessanha

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Fábio Pessanha (Rio de Janeiro, 1981). Poeta, mestre em Poética (UFRJ) e doutor em Teoria Literária (UFRJ), com pós-doutorado em Estudos de Literatura (UFF). É autor de na escuta o gatilho (Rizoma, 2023), A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Assina a coluna “palavra: alucinógeno”, na revista Vício Velho, e tem poemas publicados em diversas revistas eletrônicas.


[ESCREVER COMO]

escrever como
se o céu não existisse e cada
palavra fosse um golpe na sintaxe
do poema. nublado,
com cada nuvem
no ângulo reto das casas,
a forma vertical das chuvas diz
o impasse para a quântica
das marés; e
tocaria o ponto sensível
do seu alfabeto até que o orgasmo
rompesse com o enigma
dos meus gemidos

escrever sob um céu que nem
sempre existiu, colaborar com o
transe das fechaduras.
fechadas na
luxúria do símbolo, cada
volta, uma tetraplegia de encaixes
trouxeste a chave? disse
outro poeta,
mas agora é bem tarde para
trancas. não fosse o mistério do mundo,
seria mais raimundo
o nome para
a invenção oculta da rima

escrever por fora da frase que
desse ao agora o tempo
das nossas falhas.
reinventaria a crase a fim
de dizer a simbiose das letras
conforme a diferença
das classes. cada
texto um derredor de endereços
na procura pelo requinte dos
erros. escrever como
se nada houvesse
e tudo fosse mais que antônimo


[TE DESEJO O ADEUS]

te desejo o adeus, o fim
da ambição
segura. com paredes bem ruídas,
acatamos o traço

inconstante das suturas
até que as
marcas sejam inalcançáveis. o som
das suas mãos esquivas

propõe um tipo escaleno
de silêncio
não será agora que se fará
longe sua influência

sempre esteve tão presente
no clichê
insisto: estar tão longe mesmo aqui
tão perto. sem querer

remoer aquelas falas
de ainda
ontem, pouco antes de desligar
o celular. cabô

a bateria, você
disse. não
acho possível a bateria se
ocupar de seus fins

justo em nossos derradeiros
alôs. mesmo
assim, embora as gavetas de roupas
já se encontrem vazias

faço questão de insistir,
te desejo
o adeus sem culpa, numa tentativa
igual a tantas outras,

de dizer não é agora
o momento
dessas manobras. te desejo, o adeus
é coisa que vem como

sintaxe que a gente não
compreende,
e talvez nunca vai compreender.
quem sabe deus entenda

a consagração, aquele vício de
nos vestirmos para o auto de fé do corpo, com o nosso
jeito bem estranho, mesmo que entre nós,
jamais estejamos tão perto como o dia de amanhã


[ASSIM COMO SE DESFIZESSE]

assim como se desfizesse
por inteiro esse dia ingrato,
essa hora vã. como se

se apartasse o calor de mim,
em mim aportasse o pavor
nascido além do próprio corpo

o fogo, o afeto, a foz dos meus
desertos. quero tudo, até
os restos do que odeio. como

decerto, o acerto. como se
para o sim, um não; o equilíbrio
como fuga do incerto erro


TUTORIAL

perguntaram uma vez como é que se
inicia um poema, porque de
fato ninguém sabe começar um
poema. talvez se a gente pegasse
as palavras e as contornasse com
rupturas ou se agarrasse a imagem
e a esticasse como invenção dos verbos.
quem sabe se pensasse um estado de

ser, como se viesse agora alguma
iluminação. ou ainda um instante,
um lugar instável como verão.
assim: a diversidade das gentes
na rua; na praia, o salgado dos
corpos; no quarto, a pertinência da
casa; na janela, chuva pintada
de céu e o credo de tantas perguntas


DISSOLUÇÃO

chega bem perto do estômago
e calibra com o azedo
sabor do ácido o que
há de salino na pele.
o suor apressa o ritmo
da engrenagem, aumenta a fome
e a fé desse corpo cheio
de nomes e interdições
ao criar a relação
entre gangrena e glicose.
toma pra si o que é seu
e pensa que criar doces
é um grande afeto, mas não
se esqueça de que o amargo
alarma a estima e a candura
durante a constatação
de que a gente inventa o apego
por tudo que se põe na boca


INSISTÊNCIA

falo com as paredes. sou encontrado
no princípio das rachaduras. uma
vez alguém me disse: você é um
semeador de ranhuras. talvez
porque as ruas por onde ando escapem
dos meus pés. eles se intercalam com
a fisiologia entre chão e
pele. por isso vou muito longe, e
correr seria o único caminho


ÁGUA

tira de mim a terra
manchada de passado
e lava pelo atrito
com a pedra o nome do
que em mim pulsa sem margem


DECISÃO

abrir o peito tal qual uma larga
avenida. perceber o tamanho
da recusa. o convite é feito. há quem
inicie uma ventania ou se
despeça mar adentro. quem com margens
correndo nas veias se arrisca pela
arrebentação? a areia se
retira com mais força e foge de
debaixo dos pés. chamam: correnteza.
se todo mergulho se decidisse
quando a cabeça tocasse as primeiras
águas, os pés teriam a vantagem
de respirar por último, igual a
quem habitou o desejo por mais
tempo que o permitido e então pulasse


NATAL

o peso do osso no meio
do peito
não descreve um coração
entre as costelas

mas sente o tempo vingando
no palpite
ritmado
dos batimentos ilícitos


TRILHA

andamos e isso basta.
qualquer caminho, as vias
e suas dúvidas. a canção, as
pausas. entrar sombra adentro do que
não sabemos das árvores
e seus frutos. andamos.
continuamos até depois da
vista ao alto. o sol, a selvageria
de alguns dias de paz.
escutamos as águas.
olhamos a terra e seus rastros, nossas
pistas. uma foto, um registro, mas
é isso apenas um
fetiche. guardar no
tempo um pouco dos acertos, também
o que lembrasse desventura. nossas
vidas cruzadas, órficas.
somente isso, e basta.
em nossas caminhadas, o destino.
o que houver de mais pleno em nossos ritos.

4 comentários em “10 Poemas de Fábio Pessanha”

  1. Respondendo ao poema “Tutorial”
    O começo não tem fim
    O tudo não é o fim do começo
    Se tudo começou com o fim
    O fim foi o começo de tudo
    Nada começou sem ter o fim
    Nem tampouco o começo
    Porque o começo não é o fim
    Talvez o fim seja o começo de tudo
    #PoetaFantasma

    Responder
    • Agradeço pela resposta! Fico muito feliz quando um poema meu reverbera assim. Aliás, esse poema “tutorial” está em meu livro “na escuta o gatilho”, nascido exatamente dessas trocas, quando eu propus no instagram que me enviassem palavras ou frases e eu responderia com poemas. O tutorial foi um desses meus poemas-respostas. E agora, ele ficou ainda mais potente. Obrigado, #PoetaFantasma!

      Responder
  2. Poesia de um existencialismo medonho e, como tal, arrebatador. Ouso dizer, algo meio que vivaz/voraz/veraz na trilha do ser e o não/ser; do existir e o não/existir como dimensão inexorável de tudo que pulsa e vibra.

    Responder
    • Muito obrigado pelo comentário, Glicélio! Fico realmente muito contente com essas trocas!
      De fato, gosto de cogitar a poesia num caminho entre escrita e escuta, daí a propensão para um fazer poético em que tento conjugar o caráter pensante do poema com sua assimetria prática (seja lá o que isso for… rs…). A questão é que entendo poesia com pensamento desde minha formação acadêmica. Talvez por isso esse caráter existencialista que você viu.

      Responder

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