Júlia de Carvalho Hansen (SP/ SP, 1984), é poeta, astróloga e editora da Chão da Feira. Estudou literatura na Universidade de São Paulo e na Universidade Nova de Lisboa. Tem livros publicados no Brasil e em Portugal, sendo o mais recente deles Seiva veneno ou fruto (Chão da Feira, 2016).
Foto: Ilana Lichtenstein
Levar os Papéis Velhos
O tempo que se leva para atravessar o oceano
não é o tempo que se leva para uma vida se compor
e é sempre tempo de se abrir janelas
para o vento levar os papéis velhos
as intrigas que mofam a todos
é o tempo de se deixar
escorrer nas réstias da luz
atravessar esta cidade que não me reconhece
os mais antigos medos da desaparição
do amor, dos vínculos e da gratidão
eu posso dizer
de certeza
que estamos todos aqui
embora em menos silêncio do que o necessário
nos faremos ritmo e salsugem
e as coisas que acontecem são as coisas que acontecem
às terríveis aventuras
chamem de acaso ou coincidência
a solidão se desmontando e oxidando
o tempo que nos resta até a escuridão.
Pequena Iluminação Budista
Anos atrás o rapaz com quem
deixamos de ser virgens juntos
propôs um dos primeiros
exercícios que faríamos juntos
seria nos colocarmos
um no lugar do outro.
Sem muito suor
isto criou um impasse
ilusionista como são todos
os impasses do desejo:
como iríamos juntos
parar um dentro do outro?
Se estávamos, se nascemos
e continuaremos separados?
E nos desdobramos tanto
em pensares, sem fazeres
que chegamos ao possível
colocar-se no lugar do outro
pela consciência
de se meditar num outro
eu ele
sendo o mesmo
ponto.
Então nos perdemos.
Por que se eu me colocar
no lugar do outro
onde terei colocado o outro?
O outro é aquele o outro
que só se move
por si só.
A Ventania Não Alivia
É bom que nosso amor vá ganhando
assim uma dimensão humana
que a gente não tenha que atravessar paredes
mas só as correntezas, as colinas
os dias em que neblina na descida
ao subterrâneo de nós mesmos
— e, sem dilaceração, convivemos.
A curva dos dias que se tornaram anos
mostra que o ponto
de um ponto ao outro
em nada retilíneo
desenhou um círculo entre nós.
Isto a cada dia me acalma
conforme as fúrias e as suas ventas
arrancam aos pedaços
os horizontes, as perspectivas
com pouco ou nenhum interesse
no que nos acontece
tenho todos os dias as mãos cortadas.
Dia desses fritava um hambúrguer
quando o fogo subiu pra cima da frigideira
e aquele pequeno incêndio que eu vi
eu pude assoprá-lo sem precipitação.
Confesso que, quando deu certo, tremi
um pouco nas bases, mas não deixei
que se instalasse o desespero
dos que estão imersos no destino.
Um dia é cedo no mesmo dia é tarde
e a ventania não alivia o calor.
Tea For Two
Tanto faz parte do destino
das mesas estarem entre nós
que sem fazer alarde
uma agulha enovela
zonzos de calor
a ternura e o risco
de uma criança que enfia o dedo no bolo
como você encaixa o dedo
no anel da xícara
enquanto retiro lentamente
do seu papel
um canudinho pra sugar a vida
este saquinho
de açúcar
pesando na mão
rasgo com os dentes
pondero, mas não sei calcular
nem ponho no suco demais
pois pode explodir
um coração
estou evitando
mas agora consigo ouvir
meu corpo
é capaz de quebrar
um copo atrás do balcão
farejar o gás vazando
abrir a porta e sair correndo
pelo tempo que nunca houve
mandar, quem sabe?, pedir
evacuar a área planetária
uma brecha na agenda
o gás alcança onde o ar atinge
se propaga a população mundial
nos níveis em que andam
as chuvas é um perigo
os postes as árvores caindo
as luzes todas piscando
que sorte com os ventos ter
esta conexão sem fios
atravessando os dias
crescendo como morangos
de sobremesa
que eu peço mas não sei se
tão doces como comer
com garfo ou colher
eu sou cheia de dedos.
a pessoa da foto na divulgação não é a julia hansen
Marcia, obrigado por avisar. a Julia foi publicada na nossa edição impressa de n 7 em 2017 e na transposição do material de todas as edições para o site, ocorreram alguns pequenos problemas e aos poucos estamos corrigindo. agradeço por seu comentário e alerta. abraço