Floriano Martins (Brasil, 1957) é poeta, dramaturgo, ensaísta, artista plástico, tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura, da qual é diretor desde então, e o selo ARC Edições, com mais de 100 livros publicados de autores de diversos países. Estudioso da tradição lírica-hispano americana e um dos maiores estudiosos do surrealismo na América, é autor dos livros de ensaios: Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América; Escritura Conquistada – Poesia hispano-americana; 120 noite de Eros – Mulheres surrealistas, entre outros.
UMA VEZ MAIS O APOCALIPSE
Há momentos em que os abraços parecem noites frias.
A tua voz assume a proporção de explosões nucleares,
eu perco a consequência de nossas últimas declarações.
Talvez uns véus possam cobrir a paisagem dissipada
em meio a tão indisfarçável pessimismo (quem me dera
teu nome guardado em alguma gaveta intocável), um
raio pode ser ao mesmo tempo a dor da opinião pública
ou o mistério que justifica o mais relutante instinto de
vida, a queda oferecida pelos deuses, a pedra alquímica
que jamais foi além do mistério da própria morte etc.
Há sempre muitos avisos que não são compreendidos.
A humanidade jamais se preparou para a vida, a julgar
por seu instinto contaminado pela sedutora sobrevida.
Não haverá um fim do mundo se não dermos início a algo.
EM OUTROS LUGARES
Ao redor das primeiras árvores que avistamos
um rastilho de fogo parecia emergir da terra.
A ausência de lua fez da noite uma pintura negra,
a imagem em movimento tentando agarrar-se ao nosso olhar.
Nosso amor era profético. A todo instante parecia
que estávamos prenunciando novas formas,
e também era forte o odor que vinha das árvores
se misturar ao atrito de nossos corpos. Tudo era luz
e algumas folhas caíam sobre nossas cabeças.
A gentileza da floresta era tanta que favorecia
sussurros e orgasmos, misturando as letras
em uma onomatopeia de encantos. Talvez
o acaso considerasse nos deixar ali a noite inteira.
Em algum momento, no entanto, a tua voz suada
me disse: – Temos que mudar a cor das palavras.
O fogo se tornou um círculo de sol, cujo relato
apenas nós e as árvores compreendemos. E rimos.
A PRATA INSTÁVEL
Os três rosários que ando buscando, e não encontro nunca.
A primeira pedra se supõe guardar em si as forças do impacto.
De uma outra jamais alguém conseguiu aproximar-se.
Quem sabe o que queria dizer a que foi confiada ao acaso.
De longe pareciam as mesmas, pela forma, a cor, o extravio.
Eu pude ver as noites saindo às pressas de seus casulos.
Às vezes pareciam mil, uma revolução exagerada, uma crise.
O mundo sempre esteve repleto de equívocos, religiões
que são praticadas desconhecendo a própria essência.
Os bagaços típicos da paz, as toalhas sujas dos banquetes,
o estigma dos efeitos físicos e as dores juradas das chagas.
Três noites em distintos hospitais contra a vontade delas.
Impossível descobrir onde fornicam a magia e o átomo.
Eu digo meu nome três vezes, os rosários fecham as portas
dos santuários, ninguém pode evitar que a realidade decaia.
NENHUMA VOZ CABE NO SILÊNCIO DE OUTRA
O mundo costuma ser apenas isto, o que imaginamos dele.
Há uma versão que talvez seja mais comum: como o aceitamos.
Ou quando os diabos desaparecem e temos que parir no vácuo.
De onde recriamos o mundo perdido? Ou como floreamos a terra devastada?
Para contar contigo eu tenho que me desfazer de muitas coisas em mim.
Será sempre assim? Não haverá um momento em que seremos apenas um,
e toda a sutileza do mundo não irá além de um inferno recriado?
Perambulei por ruelas sem sim, queria te encontrar de qualquer modo,
os fragmentos de uma realidade que não teríamos jamais como defini-la.
Era para ser apenas isto? Uma noite contigo, eu iria embora e não te veria jamais?
O inferno por vezes sonha com uma perenidade que nega seu revés.
Nunca espero nada de ti, mas sei que um dia o céu será a terra devastada.
O CADÁVER DELICIOSO DA MEMÓRIA
O sonho de uma cratera se abrindo para a formação apaixonada de um mito.
A sombra nua das últimas horas que ninguém poderia descrever.
O corpo minúsculo que eu não conseguia segurar na minha mão.
Era deixar um último grito de amor atormentar as horas frustradas.
Mas quem contaria as lágrimas que cercam uma perda inesperada?
Lembro-me do dia em que estive em sua casa e assinei 200 gravuras que ele pretendia vender à noite.
Era um ovo ameaçado em sua altura por um punhal e em cada corte víamos surgir uma boneca que enchia a cena de flores.
Não somos nada se a vida não cortar nosso desejo e alimentar o deserto com flores famintas.
É possível que o céu tenha contraído gotas inesperadas.
E que do inferno todos os tipos de ascensão podem ser esperados.
Um deus está vestido de nuvem e o outro de grama.
Eu nunca perguntei quantas cópias foram vendidas naquela noite.
Uma delas olha para mim enquanto ouço Lovin’s too easy de Frankie Miller.
Há muito voltei para casa e a notícia de sua morte estragou parte da minha imaginação.
Não consigo mais evocar o mundo em que ainda estaríamos bebendo cerveja e festejando como sempre vencendo todos os obstáculos da arte.
Juramos não escrever nossos nomes.
A vida era apenas isso: o que fazíamos.
BALADA PARA FRANKIE MILLER
Se uma voz pode cantar, uma outra nos diz:
Tudo o que quero é encantar a todos com meu silêncio.
Se ao ver de longe uma pessoa caminhando
posso pensar que antes dela ali um dia estive.
Assim que muito do que somos é um reflexo
dessas pequenas coisas que vemos, aqui e ali.
Antes que existam, ou depois de esquecidas,
as luzes iluminam quase sempre o que não veem,
como desejo estar presente no som das cores,
ou no limite dessas sombras que se antecipam
aos corpos que celebram o que podem vir a ser.
As noites são primárias, o que quero é amar você.
A TERRA DENTRO DE NÓS
Os homens ainda estão escalando os céus
como um formigueiro que perdera o oráculo,
enquanto as naves afogadas desaprenderam
a respirar na profundeza dos oceanos.
A telepatia foi a grande catástrofe da ciência,
pois as ondas do pensamento não estavam,
cercadas por eletrodos em uma árvore elétrica,
dispostas a explicar a origem de seus milagres.
Ao mover essas aves-formigas, fazendo-as cair
de suas capelas estelares, novas promessas
descubro nos rios de sangue que apascentam
os cristais de rocha no magma de meu ser.
ANCESTRAIS DO FUTURO
Caminhando pelos arredores de Blue Mountains,
Austrália, ou anotando em um diário os planos
de enterrar seus demônios sob as cavernas
de Tiahuanaco, Bolívia, ou talvez recolhendo
as letras misteriosas que como vislumbres
sangravam seus olhos entre o pecado e o sonho,
poderia muito bem ser ele, quem tantas vezes
eu vi, com seus tesouros e incógnitas, vagando
pelos destinos paralelos da humanidade incrédula.
Ele e seus animais indecifráveis, suas pedras
avistadas em invisíveis céus, Robert Charroux,
dos cálculos inconclusos de um mundo infinito.
As trevas também possuem seu equinócio oculto,
onde os arcos descrevem a passagem do abismo.
FOTOGRAFIA DE UM ILUSIONISTA
Eis tudo o que eu posso dizer: o que faço falar
é muito mais do que um banquete de fantasmas
ou de iogues nus dispostos a contar os sonhos.
Há vozes que eu mesmo as escuto assustado,
quando me revelam a antiguidade da memória.
Outras evocam espíritos há muito suicidados.
Essas vozes não coincidem com nada no mundo,
nem corpos quebrados ou teologias destroçadas.
Será outra a origem desses ignorados idiomas.
Eis tudo o que dizem: a mais próxima morada
do homem dentro de si será quando um dia
as palavras lhe transmitam a magia do átomo,
as ervas milagrosas e os métodos de levitação
que até aqui apenas os moribundos soletram.