Cinema, Empatia e Alteridade: O Martírio dos Guarani-kaiowá

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por Amilcar Bezerra


Em 2012, uma carta assinada por um grupo de índios da etnia Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul e endereçada ao Conselho Indigenista Missionário denunciou uma ação iminente da polícia federal para despejá-los das terras que ocupavam. Nela, os índios comunicavam que não iriam obedecer a decisão da justiça e que permaneceriam até a morte naquela terra, declaração por muitos interpretada como uma ameaça de suicídio coletivo. O documento se espalhou pelas redes sociais e a tragédia dos povos Guarani-Kaiowá ganhou visibilidade internacional, deflagrando uma avalanche de manifestações de apoio por todo o país. Inspirado por esse evento, o antropólogo e cineasta Vincent Carelli deu início à produção do documentário “Martírio”, que chega às telas em 2017 com o objetivo de expor a perspectiva indígena sobre o problema da demarcação de terras na região de fronteira com o Paraguai, cujas origens remontam ao século XIX. Carelli é responsável pelo projeto “vídeo nas Aldeias”, que desde 1986 promove a formação de realizadores nas aldeias com o intuito de estimular a produção audiovisual entre os povos indígenas.

Por meio de uma pesquisa exaustiva apoiada em documentos e relatos orais, o filme nos traz uma ampla contextualização histórica da situação dos povos indígenas na fronteira do Brasil com o Paraguai. Da extração da erva-mate no Império até o agronegócio contemporâneo, a distribuição da propriedade naquelas terras sempre esteve subordinada a uma lógica econômica que visava a integração ao capitalismo global. Por outro lado, ao longo do século XX se evidencia, nas políticas de demarcação, o objetivo estratégico do Estado em promover a fragmentação dos territórios indígenas para propiciar um maior contato desses povos com a cultura hegemônica, o que resultaria numa desejável dissolução de seus traços identitários. A estratégia, contudo, não funcionou. Em dado momento do filme, consciente dos propósitos dessa política, um índio acusa o Estado de favorecer a mestiçagem com o objetivo deliberado de promover a destruição da cultura indígena.

Condenados a um périplo interminável orquestrado pelos diversos interesses de exploração econômica da terra em ambos os lados da fronteira Brasil-Paraguai, os Guarani-Kaiowá hoje se fragmentam em parcelas ínfimas de seu território original. No filme, os índios se expressam em língua nativa e o espectador dispõe do auxílio de legendas que traduzem o que é dito. Todavia, apenas se ater às legendas não é o suficiente para se compreender o sentido do que se diz. A própria fala indígena se apresenta como documento vivo de seu não-lugar no mundo ocidental. Palavras em português, espanhol e “portunhol” irrompem ao longo da fala para expressar sentidos incorporados ao universo simbólico indígena a partir do contato com a cultura ocidental e permitem reconhecer marcas da trajetória errante dos Guarani-Kaiowá na fronteira entre a América espanhola e a América portuguesa. Noções de tempo, como “anos” ou “meses”, instituições econômicas como “plata”, palavras como “fazendeiro” e até mesmo “porteira”, expressões que só fazem sentido quando integradas a uma concepção de propriedade privada da terra tradicionalmente alheia à compreensão desses grupos, são alguns dos termos apropriados nesta bricolagem.

As incursões no português e no espanhol, necessárias para mediar relações ora amistosas, ora conflituosas com a cultura ocidental, são frequentemente utilizadas por muitos fazendeiros e políticos ruralistas como argumento seja para desautorizar, seja para degradar ou ridicularizar uma suposta “pureza” indígena que, paradoxalmente, só existe no imaginário romântico ocidental. Em cena gravada no Congresso Nacional, um político ruralista esbraveja: como um índio que afirma “yo soy brasileño” poderia jamais reivindicar o direito à posse de um território nacional? Desta forma, as marcas simbólicas da sobrevivência em meio aos périplos forçados, quando esvaziadas de seu sentido histórico, acabam tragicamente servindo aos ruralistas como prova de uma suposta “inautenticidade” que desqualificaria as demandas indígenas pela terra.

Por mais que notícias, relatos e reportagens tenham circulado nos últimos anos sobre a situação dos Guarani-Kaiowá, nenhum registro escrito pode nos aproximar tanto da experiência etnográfica quanto o documento audiovisual. Desta aproximação surge a empatia, aquela velha capacidade humana de se imaginar no lugar do outro, condição necessária para compreendermos o sentido de suas ações. Ao nos transportar para o interior das aldeias e acampamentos indígenas, o filme nos aproxima de índios que usam jeans e portam celulares, mas que se expressam em língua nativa e tem consciência de sua diferença, bem como do que ela representa. Acuados, usam essa diferença como escudo para sobreviver diante de pressões históricas do poder público e de fazendeiros que por tanto tempo tentaram “modernizá-los”, dissolvendo sua identidade. A potência do registro audiovisual também se evidencia nos momentos em que os índios, munidos de câmeras portáteis, filmam capangas que os atacam com tiros. A crueza das imagens paira acima de qualquer mal-entendido que as eventuais traduções de sua língua nativa possam provocar.

Em paralelo à situação dos índios em seus territórios, o filme nos mostra o debate em torno do projeto de emenda constitucional (PEC- 215) que ainda tramita no congresso nacional, cujo objetivo é transferir ao poder legislativo as prerrogativas para demarcar territórios indígenas. Em dado momento, presenciamos políticos ruralistas fazendo pressão sobre a então ministra chefe da casa civil Gleise Hoffman para retirar do poder executivo essa função, hoje sob a responsabilidade da Funai (Fundação Nacional do Índio). Já num evento que congrega empresários do agronegócio, no Mato Grosso do Sul, vemos a então senadora Kátia Abreu discursar enfaticamente, cobrando às autoridades pulso forte diante das inúmeras “invasões” a propriedades rurais comandadas pelos índios. No filme, este discurso da propriedade privada sendo vilipendiada por “invasores” estabelece um contraste brutal com o sentido sagrado que aquela mesma terra tem para os povos originais. Numa situação de clara desvantagem para os índios, que instituições poderiam mediar uma solução para o dilema?

Há décadas, inúmeras organizações não-governamentais, além da Igreja Católica e do próprio Estado brasileiro – através da Funai – tem desempenhado papéis importantes na mediação de conflitos entre indígenas e fazendeiros. Embora tenha o mérito de dar voz e visibilidade aos Guarani-Kaiowá, em seus 160 minutos o filme passa ao largo destas instituições que vem participando ativamente – para o bem ou para o mal – da construção desta história e cuja participação no processo extrapola e complexifica a polarização índios x fazendeiros. A omissão dessas vozes, por mais que estejam sujeitas a críticas, produz lacunas na narrativa.

A narração em off, que permeia todo o documentário, às vezes torna-se redundante ao enfatizar aquilo que poderia ser comunicado apenas com as imagens e a fala dos índios. Porém, nenhum destes senões chega a comprometer a relevância da obra que, além de já surgir como documento fundamental para compreendermos o drama contemporâneo dos povos indígenas no Brasil, nos mostra também a e cácia docinema como dispositivo gerador de empatia, que nos aproxima do outro.


Amilcar Bezerra (PE), é professor, pesquisador e crooner de karaokê.

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