Todas as formas de água: estreia da escritora potiguar Clara Bezerra aborda o prazer e a dor de amadurecer

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por Marcela Güther

“Roupa de Ganho”, obra publicada pela editora Paraquedas, empresta termo popular das lavadeiras nordestinas para lavar, torcer e enxaguar metaforicamente as palavras e criar uma obra poética que narra os processos emocionais do amadurecimento.

“Descobri textos das raivas

Das chuvas, das águas

Inundações diárias”

Composto por um pouco mais de 100 poemas e aforismos, Roupa de Ganho” (Editora Paraquedas), primeira obra de Clara Bezerra (@clara_bezerra), presenteia o leitor com versos que descrevem as dores, os prazeres e os desencontros do crescimento. Para revestir as emoções, a autora se vale de um vocabulário ancorado na geografia marítima. As águas, portanto, são abundantes na escrita, e povoam o livro em suas mais diferentes formas, trazendo consigo um sem número de metáforas possíveis.

A nomenclatura dos capítulos, inclusive, fazem alusão a esse universo. São eles: Córrego, Correnteza, Travessia, Mergulho e Fôlego. Em cada um, a escritora busca agrupar poemas relacionados e que de alguma forma conversam entre si. A cadência da escrita segue a metáfora dos nomes dados a cada parte do livro com a dramaticidade dos versos dilatando à medida que as páginas são viradas, como se fosse a metamorfose da inocência para consciência.

“Na primeira parte trago o início desse percurso emocional. Em seguida, mostro como essas águas começam a ficar mais fortes, volumosas e claras. No terceiro capítulo, marco os lugares atravessados. Depois, evidencio a busca pelo amor. E por último, dedico ao trabalho com a palavra, que dá forma a isso tudo”, descreve Bezerra.

A autora revela que, além da água, a palavra casa também atravessa todo o livro, e afirma que ambas são significantes que dão certa condução à obra. “Diria que ‘Roupa de Ganho’ fala dos caminhos que uma mulher fez para validar sua existência, com fluidez como a água, mas na busca do abrigo que encontramos em uma casa”, pontua.

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Uma das qualidades do livro é utilizar as metáforas que envolvem esses dois termos, e principalmente as relacionadas à água, sem exauri-las com repetições despropositadas. Ao contrário, a engenhosidade com que Bezerra dá novos sentidos à palavra a partir de combinações singulares e tocantes, aferem a grandiosidade da obra.

É preciso ressaltar ainda a vocação do livro para encantar tanto na composição de versos concisos, que se fazem ainda mais potentes na leitura em voz alta por exaltar a rima como costura da cena, quanto na composição de poemas mais extensos, com enredos envolventes, sofisticados e ternos.

A destreza com que a autora estrutura a obra, permite que ela alterne o narrador, ora primeira pessoa, ora terceira, e ainda passeie por alguns poemas se valendo do ponto de vista de elementos da natureza. Ao fabular a partir de outras perspectivas, Bezerra amplia as possibilidades de criação de histórias, e oferece ao leitor experiências singulares e por isso potentes.

“Roupa de Ganho” imprime na história de Bezerra estrelas de excelência e uma identidade no mundo literário, ainda que a autora não consiga definir com precisão seu estilo. “Como água, acho que é fluido, mas consistente, formando imagens fortes, mas de forma cuidadosa e delicada”, resume a estreante.

Lavadeira das palavras: uma confluência de memória e inspirações

As águas que se derramam por toda a obra têm influência do território ocupado por Clara Bezerra da infância até os dias de hoje. A potiguar, nascida em Acari e criada em Cruzeta, municípios vizinhos e que ficam a cerca de 215 km de Natal, hoje, adulta, vive na capital do Rio Grande do Norte.

Ecos dessa migração permeiam o livro e as experiências vivenciadas ainda menina forneceram material para compor o título da obra. “O nome ‘Roupa de Ganho’ veio de uma inspiração nas lavadeiras que conheci na minha infância. Essa expressão era usada na cidade onde cresci para designar as mulheres que lavavam roupa como trabalho”, detalha.

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A sensibilidade desenvolvida ainda menina pode ser creditada à literatura. Como filha de uma professora de Língua Portuguesa, Bezerra sempre esteve envolta em livros. Escritores clássicos como Eça de Queiroz, Machado de Assis, José de Alencar e Aluísio Azevedo, foram seus companheiros na transição da infância para a adolescência. Havia ainda um interesse pulsante pela poesia, que não era contemplado por esses autores, o que a fez buscar novos nomes para compor a própria lista de referências. Nessa jornada se encontrou com os cânones da poesia brasileira que influenciaram também a escrita do livro.

“Penso que existe em Roupa de Ganho as marcas da melancolia de José Mauro de Vasconcelos e Manuel Bandeira, coragem e transgressão de Ana Cristina Cesar, misticismo de Hilda Hilst, doçura de Cecília Meireles, força transformadora de Carlos Drummond de Andrade, e uma simplicidade de Manoel de Barros”, elenca Bezerra.

Ainda que na infância a autora tenha ensaiado alguns versos e treinado a habilidade de compor rimas, a constância na escrita veio somente no início da juventude. Os poemas que fazem parte do livro são fruto de uma década e meia de produção literária e ao mesmo tempo testemunhas dessa passagem do tempo. “Esses escritos falam do caminho de me tornar adulta e mulher, das coisas que perdi, dos lugares onde passei, dos medos, mas principalmente da minha coragem porque também é uma exposição muito íntima”, confidencia a escritora.

Ainda sobre o processo de composição textual, Bezerra revela que os temas que aparecem no livro nasceram espontaneamente. “Eles não foram escolhidos, foram percebidos e extraídos dos textos escritos nesses últimos 15 anos. Como uma admiradora da psicanálise, é como se fossem a leitura extraída do inconsciente, que aos poucos vai construindo uma história e um conhecimento até então desconhecido”.

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Além de admirar, a autora também se dedica atualmente a estudar a psicanálise. Formada em em Letras (Língua Portuguesa) e em Comunicação Social (Publicidade), Bezerra é ainda pós-graduada em Planejamento Estratégico em Comunicação e mestre em Estudos da Mídia.  Profissionalmente atua com Comunicação Institucional, e escreve de forma paralela a essa atividade.

A estreia oficial na literatura, no entanto, pode mudar essa configuração. “Lançar este livro é dar concretude à pessoa que venho me tornando, e uma forma de dizer para mim mesma: sim, eu escrevo”, assume Bezerra. A completude desse anúncio se faz na apresentação da obra, em que a autora poeticamente declara: “Foi assim que fui me tornando poeta, lavadeira de palavras, e foi assim que este livro nasceu. As palavras são minha roupa de ganho”.

Confira um poema do livro:

óvulo

De que sou feita

Eu?

De mares, paisagens

Paranoias, prisões

Navios negreiros

Veleiros, velas, porões

Escuro

Terras áridas, úmidas

Visões

Descobrimentos

Encantos

Eu, esse pedaço de dor

Dividida em tratados

Tordesilhas

Essa terra descoberta

Essas veias externas, expostas

Os caminhos

Os erros todos do mundo

Jorrando sangue, canhões

Guerras

Ressentimento de tudo

Os gritos de libertação

Tambores, canções

Essa que sou eu, aqui

Muitas que fui

Antes de mim

Muitas que fluem

De onde vim

Adquira “Roupa de Ganho” pelo site da editora Paraquedas:

https://www.lojadaclara.com.br/produto/roupa-de-ganho-clara-bezerra.html

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