Tradução de Allan Vidigal
Gunnar Ekelöf (1907-1968). Poeta e tradutor sueco. Após uma fase inspirada pelo surrealismo francês, enveredou por uma via modernista, sofrendo mais tarde a influência da filosofia oriental. Considerado um dos maiores poetas suecos, estudou línguas orientais em Londres e Upsala, e música em Paris. Participou nas revistas literárias Spektrum e Karavan. Crítico literário em diversos jornais e revistas. Tradutor de Mallarmé, T. S. Eliot, Baudelaire, Rimbaud, Malraux. Ingressou na Academia sueca em 1958. Lembrado como o primeiro poeta surrealista da Suécia, sua estreia literária se deu em 1932 com a antologia Tarde na Terra, escrita durante sua prolongada estadia em Paris nos dois anos anteriores. Autor de vasta obra, é amplamente lido entre os poetas modernistas escandinavos e é um clássico da poesia sueca. Segundo Marianne Sandels, “foi mestre na arte de descrever os sabores do Verão, a neblina que se ergue sobre os pequenos lagos à noite, os prazeres simples da vida rural, que lhe permitiam comungar com a Natureza. (…) Este amor pela paisagem sueca, embora simples e discreto, podia na verdade compensar a sua falta de entusiasmo pela nova sociedade sueca que então surgia”.
[AS FLORES DORMEM NA JANELA]
As flores dormem na janela e a lamparina espreita luz
a janela espreita de olhos vazios fixos no escuro
pinturas exibem sem alma o pensamento a elas confiado
e as moscas pousam nas paredes para pensar
as flores inclinam-se para a noite e a lamparina tece luz
o gato no canto tece fios de lã em que dormir
no fogão o bule de café ronca às vezes de prazer
as crianças brincam quietas no chão com palavras
a mesa posta com uma toalha branca aguarda alguém
cujos pés jamais subirão as escadas
um apito de trem pelo túnel do silêncio soa distante
não descobre o segredo das coisas
e o destino conta as badaladas do pêndulo em decimais
APOTHESIS
dá-me veneno mortal ou sonhos para viver
o ascetismo logo irá terminar nos / portais da lua que o sol
abençoou / e embora descasados da realidade os sonhos
do morto cessarão de prantear seu destino
pai lego ao teu paraíso meu olho como / uma gota azul no oceano
o mundo negro não mais se curva por esmolas / e salmos
mas ventos milenares ponteiam o cabelo / solto das árvores
poços saciam a sede do viajante invisível
quatro direções postam-se vazias em torno do esquife
e a musselina dos anjos se converte
por uma varinha mágica
em nada
EUFORIA
Te sentas sozinho no jardim com teu caderno, um sanduíche, garrafa e cachimbo.
É noite, mas tão calma que a vela queima sem tremular,
espalha seu brilho pela mesa de tábuas grosseiras
e brilha na garrafa e no copo.
Um gole, uma mordida, e acendes o cachimbo.
Escreves uma ou duas linhas e para e pensa
a faixa fina do vermelho da noite passando lentamente ao vermelho da manhã,
o mar de cerefólio, espumando verde-branco no escuro da noite de verão,
nem uma mariposa sequer em torno da vela, mas corais de mosquitos no carvalho,
folhas estáticas contra o céu… E o choupo farfalha em meio à calma:
Toda a natureza forte de amor e morte ao teu redor.
Como se fosse a última noite antes de uma longa jornada:
A passagem já está no teu bolso e todas as malas finalmente feitas.
E te sentas e pressentes a proximidade da terra distante,
sentes como tudo está em tudo, tanto o fim quanto o começo,
sentes que aqui e agora é tanto partida quanto regresso
sentes como morte e vida são tão fortes quanto o vinho dentro de ti!
Sim, unir-me à noite, unir-me a mim, à chama da vela
que me encara estática, insondável e estática,
unir-me ao choupo que treme e sussurra,
à multidão de flores que se esgueira do escuro para escutar
algo que estava na ponta da língua mas nunca foi dito,
algo que eu não quereria revelar mesmo que pudesse.
E que em mim murmura de pura felicidade!
E a chama de eleva… como se as flores se aproximassem cada vez mais
e mais da luz em um arco-íris de pontos brilhantes.
O choupo treme e brinca, a noite vermelha termina
e tudo inexprimível e distante é inexprimível e próximo.
Canto a única coisa que concilia,
canto apenas o que é igualmente prático para todos.
TODO O MUNDO É UM MUNDO
Todo o mundo é um mundo, habitado
por seres cegos em comoção escura
contra o self o rei que os governa.
Em cada alma milhares de almas aprisionadas,
em cada mundo milhares de mundos escondidos
e esses cegos, esses submundos
são reais e vivos, embora incompletos,
tão verdadeiros quanto eu. E nós reis
e príncipes das milhares de possibilidades em nós
somos também servos, aprisionados
em uma criatura maior cujos self e ser
entendemos tão mal quanto nosso superior
entende o seu. Nossos sentimentos assumiram
a cor de seu amor e sua morte.
Como quando passa um grande navio
distante, além do horizonte, deitado
sobre o brilho da noite — e não sabemos dele
até que as marolas nos alcancem na costa,
primeiro uma, depois outra, depois muitas
batendo e ressoando até que tudo volte
a ser como antes. — Mas tudo mudou.
E assim nós as sombras nos perturbamos com um estranho incômodo
quando algo nos diz que outros foram em frente,
que algumas das possibilidades foram liberadas.
[DÁ-ME VENENO MORTAL]
”Dá-me veneno mortal ou sonhos para viver” — Mas agora
mais do que sonhos para viver quero veneno mortal
Capitão sem tripulação, pois todos
Comeram do lótus, tornaram-se porcos que recuso-me a comandar —
Timoneiro só, exausto — também eu dei à terra
Numa praia que me era estranha, com estes corpos por carga
Dá-me água! Só o que tenho é salmoura
Dá-me a água mágica que lavará o sangue
Dá-me de volta a ilha onde afundei em sonhos
Ali caminhei sob a canga da liberdade, com rédeas de ouro
Quem uma vez se viu náufrago preso no abismo que suga
não luta contra o leme, não tem mãos para navegar
O que tem a fazer é ensiná-las a acariciar —
Como o príncipe que certa vez mergulhou a cabeça numa fonte
por um momento sentiu a nascente vertiginosa do tempo
retrocedendo no Tempo, 1001 anos atrás, lhe vejo refletir
a si mesmo no olhar que é meu. E assim naufraguei
com a Ninfa que dá veneno mortal ou sonhos para viver
Sem mapa, sem estrelas, com e contra as correntes
Uma vez naufraguei na ilha da ninfa ruiva alourada.
Allan Vidigal (Brasil, 1971). Poeta, editor e tradutor. Possui mais de 20 livros de história empresarial publicados, incluindo algumas das maiores corporações do Brasil. Parou de contar livros traduzidos depois de chegar a cem em temas diversos que vão das Artes à Zoologia, passando pela Ciência da Computação, Design, Economia e assim por diante. Tem traduzido com frequência para a Agulha Revista de Cultura e projetos isolados de Floriano Martins.