Escrever poemas sobre o poema ou a poesia leva o poeta a um duplo risco, pela reiteração movediça e o ilusionismo retórico. Astucioso truque seria disfarçar o objeto, substituindo-o por espelho ou abismo. Por efeito de transmutação, Anna Apolinário (1986) se sai bem em sua jornada criativa, ao reconhecer-se ela mesma no poema. A sua mimese é devoradora, de modo que objetos como poesia e poema se confundem com inúmeros outros – inclusive abismo e espelho –, estabelecendo uma espécie de polifonia de vozes, uma metamorfose intermitente. Desta forma, a criação esplende como sagração ininterrupta, ao modo da imagem constante no belo poema “Meandros”, cujo truque já referido a leva a substituir sagração por coito. Sua gula existencial a salva de todos os riscos – lê-se nela que a cada passo um poema emana da pele –, desse abismo que busca a todo instante submetê-la aos vícios da linguagem.
Insisto no objeto, no manejo e tratamento dado pela poeta. Em “Carta a Sylvia Plath” a brasileira escreve à estadunidense: meu verso encontra morada no teu. Neste mesmo poema ela joga com os objetos abismo e espelho, em uma reafirmação do que venho dizendo. Sua obsessão claramente é a pele, o tecido do corpo e da escrita, cuja senha é possível encontrar no verso: Há sempre um poema vagando em minha língua (“Flutissonante”). E tal obsessão pela pele, ampliada ao corpo, como centro de todo desejo – e, portanto, da criação – nos recorda Peter Greenaway (1942), especialmente em filmes como Prospero’s book (1991) e The pillow book (1996), a tal ponto que a imagem: seu corpo, impúbere papiro (“10”), tanto definiria a poética do cineasta quanto da poeta.
Um truque a mais vem do labirinto flamejante – um emaranhado de espelhos (“Ars”) – de seu léxico, onde a biblioteca é carnosa e dispõe as páginas apócrifas de antigos feitiços ou a caligrafia do sexo seduzindo a escrita. De todo modo, a poeta persegue o corpo do mundo com o seu próprio, multiplicando-se em divindades e demônios, como imperativo de sua tempestuosa busca de fundir os dois corpos. No poema “Maria e a sibila”, que soa aos ouvidos do leitor como uma conjuração, ela evoca a versatilidade do inferno e as belicosas placas tectônicas carnudas de teu sexo, como recurso habilidoso de nos impelir ao destemor de viver. Para tanto, sublinha que é inevitável dar de comer ao verbo a própria carne (“Vórtex”), incondicional quanto à necessidade vital da alteridade.
Em poema no qual dialoga com Francesca Woodman (1958-1981), Anna nos revela um desejo, o de deslizar dentro de seus poemas. Este seria, como no caso da magnífica fotógrafa estadunidense, morta aos 22 anos de idade, seu truque de mestre, rapto e dilaceramento do outro, seja em si mesma ou no leitor.
O novo livro de Anna Apolinário, A chave selvagem do sonho, se encontra constituído por cinco capítulos, a saber: “Fúria de quimeras”, “quaerens quem devoret”, “A carne flamante das metáforas”, “A doçura peçonhenta dos feitiços” e “As mil portas do poema ardem”. Tal estrutura, além da inquestionável beleza de suas imagens, traz em si a senha de seu furor criativo, onde está sempre a buscar quem possa tragar. Tais pistas são completadas, já no pórtico, pela epígrafe de Joyce Mansour (1928-1986): Entre o sonho e a revolta, a razão vacila. Em tal estrutura a poeta mergulha em uma intensidade vibrante – caligrafia convulsiva (“Os mapas flamejantes da fome”) – que a destaca em relação a seus pares justamente pela fusão entre corpo e poema.
Cabe, no entanto, observar que no quarto capítulo – “A doçura peçonhenta dos feitiços” – o objeto poema desparece, exceto na imagem: o poema é um pequeno animal mágico (“Domus desiderio”), como se ali estivesse realizado seu dilaceramento alquímico de escrita e vida. Mesmo a imagem referida desfere uma visão outra do poema, com uma carnalidade tanto mágica quanto animal.
No capítulo final, “As mil portas do poema ardem”, onde ela convoca o poder supremo do corpo fêmeo / inscrito no cósmico cetim dos abismos, (“Uma toalha manchada de sangue encontrada ao pé da porta de um labirinto de vísceras”), verbos e adjetivos são substantivados, produzindo um léxico mais carnal e devorador, centrado em outro objeto, já conhecido do leitor e que vem se definindo desde o princípio: pele, objeto referido, direta ou indiretamente, em todos os poemas. Duas vezes o objeto poema ressurge, porém já no plural, configurando assim um sentido mais amplo e não meramente literário.
Desta forma se fecha A chave selvagem do sonho, com a sua razão ardente cuja decifração a perseguimos desde o primeiro poema. Não é um livro cíclico, e sim uma espiral, onde a cada ilusão de retorno ao começo nos deparamos com um objeto novo até que o mesmo se converta em todos. Nenhuma imagem o define melhor do que esta: Nossos nomes lambem o alfabeto bestial do abismo (“Os sonhos me possuem como a virgem sacrificial de suas noites”), assim como a viagem aos abismos do ser e da escrita que vai do primeiro verso – A floresta se move através do sonho (“Insídia”) até o quinteto final com o qual concluo também esta minha leitura da poética de Anna Apolinário:
Um segundo antes do despertar,
mordi o mel em brasa das romãs,
macerei estrelas para adoçar alucinações,
guardei um punhado de leopardos nos bolsos,
e segui insone com meus chinelos e meu chapéu chamejante.
Floriano Martins, junho de 2019
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2 Poemas do Livro
Quando respiras eu sinto a imensidão do teu sonho dentro de mim
Teus pulmões estendem tapeçarias frementes em meus ouvidos.
Colossais fios em galope por todo meu corpo.
Indomável reluzente vestimenta de céu e trovão.
Minhas pálpebras estremecem:
o movimento das asas de um pássaro mágico dentro do labirinto.
Teu sonho é um sussurro de rústicos rubis molhando meus lábios.
Meneio meus cabelos:
salamandras dançam hipnotizadas ao som de teus tambores.
Quando tua língua se move, desmesurada víbora,
e meus dedos escavam em busca da chave,
as mil portas do poema ardem.
Minha faiscante raflésia,
quando respiro eu traço um tremor de terra
na corola sangrenta do teu sonho.
Meus chinelos distribuem velas aos navegantes sonâmbulos
Profecias chamuscam a paisagem marítima de meus sonhos.
A noite sussurra nos lençóis o sangue de um animal ferido.
Os dedos rondam a carne suculenta dos colapsos.
Uma rosa oracular cresce no regaço das quimeras.
Meus suspiros bordavam volúpias nas vestes das virgens.
Minhas preces devorando víboras nos cabelos das bruxas.
Um segundo antes do despertar,
mordi o mel em brasa das romãs,
macerei estrelas para adoçar alucinações,
guardei um punhado de leopardos nos bolsos,
e segui insone com meus chinelos e meu chapéu chamejante.
Anna Apolinário (Paraíba, 1986) é poeta, licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba, especialista em Língua, Linguagem e Literatura. Produtora cultural e organizadora do Sarau Selváticas (@sarauselvaticas). Estreou em 2010, com Solfejo de Eros (Câmara Brasileira de Jovens Escritores), em seguida vieram Mistrais (Prêmio Literário Augusto dos Anjos, Edições Funesc, 2014), Zarabatana (Editora Patuá, 2016) e Magmáticas Medusas (Editora Cintra/ARC Edições, 2018). Seu próximo livro A chave selvagem do sonho será publicado em 2020 pela Editora Triluna. Participou da antologia Um girassol nos teus cabelos: poemas para Marielle Franco (Quintal Edições/Mulherio das Letras, 2018), da série As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira Volume 3 organizada por Rubens Jardim, está presente na terceira antologia das Senhoras Obscenas (Editora Patuá, 2019) e na coletânea Sob a pele da língua: breviário poético brasileiro ( ARC/ Cintra Edições, 2019). Autora integrante do poema surrealista coletivo As máscaras do ar (publicado em quatro línguas em revistas e periódicos internacionais) e da Edição #126 da Agulha Revista de Cultura: Surrealismo e Jovens Poetas Brasileiros I, Edição Comemorativa do Centenário do Surrealismo (1919-2019).