LUZ

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Por Maíra Dal’Maz

o tempo inteiro me pergunto como é que você confia no gesto de fechar os olhos? sim, eu preciso sair de você. como se o escuro não fosse um palco onde os aedos morrem, sob a sombra giratória de uma torre eólica, que dança a coreografia de uma deusa impiedosa. o que deixamos de ver? nesse exato momento algum bicho está sendo esmagado por sua rotação cega. aquela mancha de ferrugem — será sangue seco? 

quantos corpos viram energia? 

quantos corpos amam usando essa eletricidade? 

quantos corpos odeiam também? 

qual minha opinião sobre seus sussurros elétricos? 

a hora em que o sol incide nas pás, o vento domesticado inclina as cruzes na beira da estrada. faz sombra, buscamos sombra para imaginar a direção firme de uma carreta enorme e muitos pneus como patas de fera inventada. imagino o bicho atravessando a pista, sem saber contar. imagino o motorista, que é só uma carne distraída, guiando outra carne maior. quantas vezes o bicho é atropelado pela mesma carreta? o que sente o bicho que a conduz, se apenas reage ao breve movimento, insuficiente para despertar? 

quem é a mãe deste homem? 

qual a sua história? 

quanto tempo ainda para se decompor os corpos atropelados?  

meus pensamentos em descer do carro e recolher a carcaça, levar para casa. meus pensamentos do que fazer com a carcaça em casa. meus pensamentos que se encostam em nada. lateja, espasma a sua boca que nunca se fechou no peito da mãe. flagrei você sonhando, o gesto antigo — maxilar torto, em ângulo reto, arrastando a primeira fome. seus olhos entreabertos me doem uma privação sagrada. deliro. a força com que escancaro sua mandíbula é a nossa criatividade e diferença. a força é o apetite da palavra. o que sai dali vem de antes da linguagem. é o vestígio da dança que se faz ao negar heróis e homeros. te amo com mãos nuas, contendo o abismo, o sorriso e a escuridão. você segue dormindo no meu colo, sem imaginar que somos todos comidas de vermes anônimos e mutuais de outros seres complexos, gentis. abre os dois olhos uma luz que não é gerada por máquinas encandeia. você deixa apenas um olho se fechar bem lentamente, movimento que se parece com a distância. as pás da torre no meu colo. é o chamado. ao menos você está pronto. afio a presença até escrever um pacto que nega a morte. sim, eu duvido da luz. 

vamos brincar. 

Maíra Dal’Maz é leitora, feminista, escritora e servidora pública da educação. Tem três livros de poemas e escreve em blogs desconhecidos há mais de 10 anos. Mestre em Educação Inclusiva e doutoranda em Literatura Comparada, com ênfase em literatura de autoria feminina.

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