Luz Interna – Um Conto de Paloma Franca Amorim

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Paloma Franca Amorim nasceu no ano de 1987 em Belém do Pará. De 2006 a 2018 manteve um espaço fixo semanal de crônicas e contos no jornal paraense O Liberal. Em 2017 lançou seu primeiro livro de contos “Eu Preferia Ter Perdido Um Olho” pela Alameda Casa Editorial. Colabora com artigos sobre arte e cultura para o portal Opera Mundi e foi articulista do caderno Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo. Uma autora amazônica, isso é, um coração de águas barrentas.


Não era um desses cães de latido alto que passeiam às soleiras das portas, raivosos, com seus focinhos empinados acompanhando o ritmo das caudas que comunicam em códigos ilegíveis para humanos o seu humor. Não, não era um cão. O Padre criava, sob o armário do banheiro social, no primeiro andar da grande casa de altos, uma gorda e branca coelhona que passava a maior parte do dia, mastigando nacos de couve e cenoura para em seguida soltar bolotas de coco seco pelo rabo.

Tila, que não tivera mais que um casal de pintinhos dentro de uma caixa no quintal de casa e que adorava verdadeiramente os animais, quase explodiu de emoção quando soube que a mãe havia sido contratada pelo Padre para alimentar a coelhona no período em que ele estivesse a viajar para o interior com a família, isso é: a esposa, uma mulher que surgia sempre muito entristecida na mercearia, e os dois filhos, gêmeos.

Tila tinha dois irmãos, Rita e Luizinho, o mais novo. Com Rita dividia a bicicleta vermelha, enferrujada nas extremidades, barulhenta de arame solto perto das rodas, com Luizinho ainda não era possível dividir, porque não sabia pedalar.

A cada rodada uma das irmãs tinha o direito de dar duas voltas pela rua de baixo, justamente ao longo do perímetro onde ficava a casa do Padre, decerto uma casa bastante valiosa porque não tinha a pintura da frente toda rachada e caindo aos pedaços como a maioria das outras casas, e a porta era de uma madeira pesada e maciça, um pouco escura com ranhuras desenhadas de ponta a ponta. A maçaneta era redonda feita com algo a parecer ouro e a fechadura esquisita em formato de estrela, a chave que entrava lá era uma chave com dentes ao longo dos quatro lados, mais gordinha. Qual foi a alegria de Tila quando, naquela tarde em que havia acabado de chegar à janela, como sempre fazia às quartas-feiras, entregando o maço de cigarros estoura peito para o Padre, ouviu-lhe falar: Tila, diga a sua mãe que eu mandei dizer que vamos sair nesse final de semana, preciso que ela venha olhar a casa.

Finalmente o grande dia se aproximava, Tila sentiu um calor de felicidade nascer no meio da barriga, o padre entrou em um cômodo escondido de suas vistas e depois voltou com o dinheiro do cigarro, entregou, ficou observando a menina, os olhos acesos de expectativa, não entendeu nada, deu um ralho: fora daqui, Tila, já te paguei.

Correu, correu, que lhe faltaram os joelhos, queria contar aos irmãos, em breve eles iriam ver tudo que cabia na sala, nos quartos, na cozinha da casa do Padre, tocar no branco dos pêlos da coelhona, brincar de pôr e tirar o dedo de sua boca para ver quão rápida poderia ser na hora de fazer os dentões se cerrarem sobre a carne do indicador, do polegar. Poderiam observá-la pular para lá e para cá, batendo palmas, o Luizinho com as mãos pequenas, ainda de quatro anos, a Rita mais velha com quase dez. Tila imaginou que aquela seria a realização da família, um dia no parque de diversões, aqueles passeios sempre prometidos e nunca cumpridos pelo pai que dia sim, dia não, aparecia em casa, às vezes bonzinho, sorrindo pelas tabelas, às vezes bárbaro, jogando-se por cima da mesa e das cadeiras, atacando a mãe de Tila sem muita razão.

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Fazia tempo que Tila havia decidido na própria cabeça que bom seria pra sempre se o pai não aparecesse mais, ia fazer falta no começo, ia doer, mas conforme se habituassem, ela, a mãe e os irmãos, logo ninguém mais sentiria dor aguda nenhuma, nenhum puxão de peito, aperto de choro.

Era assim que as coisas transitavam em juízo de normalidade, o tempo vinha e fechava aquela ferida, como uma costura feita da parte de fora para a parte de dentro. No interior da cicatriz ainda ficava um caroço, um caroço como um estilhaço de bala alojado no corpo que ao se mover, fosse em uma tarde alegre e ensolarada, mesmo aquelas em que há adiante talvez uma praia ou qualquer outra ordem de paisagem belíssima, ardia, coçava, sugava as tripas do entorno. Nessas horas Tila fechava forte os olhos, sentia os cílios longos encostarem uns nos outros, como se trancassem por alguns segundos o mundo todo do lado de fora e ela podia ver a própria tristeza de perto. Sentia isso tudo, muito espremido, uma vontade de chorar muito forte, por exemplo, quando lembrava do amigo Leo que já tinha um mês não existia mais.

Leo era um desses de andar batendo chinelas, pra cima e pra baixo, brincava aceso dos jogos de rua, pedia a bicicleta de Tila para pedalar uns quarteirões, depois voltava suarento, animado, cheio de uma bagunça boa, era amigo de se gostar muito, Tila gostava que só, o Leo pra ela era o preferido, mas não contava para os outros, claro, porque não queria que os ciúmes estragassem os encontros da turma aos finais de tarde na cruza entre a rua de baixo e a outra de baixo, as duas sem asfalto, terra batida mesmo, porque só mesmo a travessa onde morava o Padre fora pavimentada pela prefeitura.

Fazia pouco tempo, Tila até lembrava de ter visto aquelas máquinas amarelas enormes, cobrindo o chão poeirento com uma pasta negra, cheiro forte, denso, cheiro que nunca tinha sentido antes. O Padre às vezes saía de casa e olhava orgulhoso, suspirava profundo, conversava com os trabalhadores oferecendo conselhos que mais soavam como ordens amenizadas por singelos sorrisos e um mover de olhos urgente, junto ao farfalhar das sobrancelhas grudadas, povoadas de consideráveis fiapos brancos.

Tila lembrava ainda da noite em que Leo, depois de longo silêncio enquanto os dois olhavam a lua do beiradão, aquele terreno abandonado às margens de um grande barranco, perguntou se por dentro ele era escuro.

Escuro como?

Escuro, sem luz.

Como assim?

Porque não tem por onde entrar luz, a não ser que seja pela boca, pelo ouvido, pelo nariz ou pelo cu. Mas são furinhos, né? Pedaços de luz, não a luz inteira.

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Como é a luz inteira?

Leo apontou para o feixe amarelo que descia do centro da lâmpada do poste até o meio da rodovia lá embaixo.
Ou quando o sol brilha, em cima da terra, mas a terra não é do avesso feito a gente, com uma parte de dentro, a terra é emborcada pra parte de fora dela e por dentro ela é preenchida… Não sei, parece ser preenchida, a gente, não… A gente é meio oco…

Um tempo depois veio a prima do Leo, com uma expressão dura, um peso nos ombros, na testa, pediu para falar com a mãe de Tila, fechou-se com ela na cozinha, depois de meia hora as duas saíram ainda mais graves. A mãe chamou os meninos para a sala, fez os três sentarem no sofá, os pés do Luizinho sequer tocavam o chão, havia uma faixa densa de poeira no ar iluminada pela luz do sol que entrava através da cortina verde semiaberta. Os olhos de Tila, distraídos e apaixonados por assuntos desimportantes, seguiram um pequeno ponto que reluzia em amarelo, flutuando muito leve, quase como se fosse inteiramente feito de vibrações porosas, invisíveis, numa dança trêmula de encaixe da atmosfera, seus respiros e vácuos.

Tila vira o pescoço para conseguir alcançar a partida do ponto iluminado, como observasse as imagens também com os ouvidos, nem pôde ouvir a notícia que a mãe dava a si e aos irmãos, Leo ficou preso nos trilhos e aí o trem veio, o maquinista ainda tentou frear mas não deu tempo, não deu tempo, meu deus.

Tila vê a mãe chorando, com as mãos sobre o rosto, só então é capaz de ouvir: o Leo morreu.

Depois a vida continuou caminhando igual. Tila não quis ir ao velório, a mãe concordou, falou que ela ficaria muito abatida e impressionada, não carecia d’uma coisa dessas ainda naquele começo da vida. Tila imaginou o amigo Leo deitado no caixão, se o rosto dele estaria muito diferente. Imaginou os irmãos de Michel sentindo falta do quarto companheiro na casa, o mais novinho, o pretinho, fruto temporão da segunda mulher do pai, aquela que viera da Bahia, bonita, prosa. Imaginou se o Padre estaria lá rezando, falando aquelas coisas todas sobre céu e inferno, bom comportamento e obediência. Imaginou se o Leo estaria com os pés descalços depois de perder as sandália ao longo dos trilhos do trem.

Naquela semana as coisas até pareceram um pouco menos emperradas, a mãe pareceu dar uma trégua, dispensando Tila de alguns trabalhos como deixar o arroz pronto às seis da tarde e passar a ferro a pilha de roupa. Aos poucos tudo foi se ajeitando, os acontecimentos na permanência deles mesmos em corriqueiros gestos, uma normalidade perene se apossou do espaço. Leo virou uma memória, um pensamento especial antes de dormir, talvez mais um ponto de luz na janela, luz inteira – agora que não era mais corpo, do avesso, talvez tenha deixado de ser também, o Leo, um escuro por dentro.

Chegou a sexta-feira, Tila veio da escola e ficou escondida na esquina da casa do Padre, só esperando a hora em que a Caravan prateada sairia da garagem com a família inteira dentro, a mulher do Padre com a cara de choro de sempre e os gêmeos atrás, o Humberto e o irmão dele, a quem chamava Dois porque ninguém lembrava de fato seu nome e porque era um desses meninos insuportáveis que criam nas pessoas uma vontade de se armar do pior, como se o pior fosse retirar do arrogantes o princípio do batismo, o nome próprio, a designação do pai. Sabia-se lá quem era o Dois de verdade, o que importava mesmo é que mais parecia uma cópia barata do Humberto, tudo sempre um pouco aquém, o nariz um pouco menos adunco e portanto sem aquela partícula única de personalidade, a barriga um pouco menor, o cabelo um pouco menos loiro, tudo em si com menos força do que como se apresentava em seu par geminado. Dois, ainda que feito primogênito pelos cinco minutos que o separavam do irmão, não passava de uma cópia rasa de um outro que, de certo modo, também era cópia rasa de si mesmo. Uns meninos de trocar tapas, egoístas com seus brinquedos caros, lustrosos, à beira da enorme casa, e por dentro eram também muito podres porque carregavam nas entranhas os grandes banquetes, peças abundantes de carne de primeira ao molho madeira, doces caros da confeitaria do centro, gemas, claras em neve, camarões na moranga, ao passo que todo o restante das crianças da vila possuía uns vazios por dentro, uns buracos de fome amaciados em horas certas e esparsas por refeições simples, contidas e improvisadas.

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Muita ansiedade no suor escapando do centro das mãos. A mãe ainda falou antes de entrarem na casa: quero todo mundo comportado. A penumbra se espalhou sobre o piso de tábua corrida desenhando a indicação de um caminho celestial corredor adentro. Tila carregava o irmão mais novo no colo, a mãe trazia pendurada no ombro esquerdo uma sacola de feira, no outro a bolsinha de sempre, amarela e com o fecho meio quebrado. Rita se antecipou e foi se lançando para dentro da cozinha, impressionada com o tamanho das coisas, o branco, o brilho, tudo num excesso vivo e sem limites.

De repente, a mãe abriu a porta do banheiro social, olhou sob a pia e gargalhou alto, lá estava a coelhona, mastigando uns pedaços de papel higiênico, já revirava-se de fome a coitada. Tila com o Luizinho no colo, Rita voltando da cozinha, numa explosiva excitação, queriam ver de uma vez por todas o bicho, estudá-lo, observá-lo, dar-lhe os cuidados necessários para que vivesse quinhentos anos sob sua admiração. Tila entregou o menino a mãe que se arredou para trás, de imediato, para deixar a menina passar, Rita veio junto. Enquanto Tila fitava a coelhona, a coelhona fazia o mesmo, os quatro olhos cruzados, vítreos, os da coelhona rubros, brilhantes, os de Tila pretos, petecas futuristas, as duas impávidas, apenas micromovimentos na mandíbula da coelhona demonstravam sua capacidade de mastigação, Tila engolia algo como o seco de uma saliva grossa. Aquele encontro era feito a esperança renascida nos corações outrora embebidos em ruína. Depois de tão inquietante aguardo pela alegria, a mãe pensou que bom que era ver a filha feliz. Rita pensou do outro lado: a coelhona também está feliz. Tila e a coelhona pensaram juntas uma da outra, ao mesmo tempo: impostora.

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