3 Crônicas de Kátia Borges

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Kátia Borges é jornalista e escritora. Publicou os livros De volta à caixa de abelhas (As letras da Bahia, 2002), Uma balada para Janis (P55, 2009), Ticket Zen (Escrituras, 2010), Escorpião Amarelo (P55, 2012), São Selvagem (P55, 2014), O exercício da distração (Penalux, 2017) e A teoria da felicidade (Editora Patuá, 2020). Atualmente, é cronista do jornal Correio e professora no curso de jornalismo na Universidade Salvador (Unifacs).

“Sobre a fragilidade da esperança” e “A aerodinâmica dos pássaros” estão no livro A teoria da felicidade, publicado em dezembro do ano passado pela editora Patuá. A crônica “Desde que começamos a contar os mortos” está em Soteropolitanos, coletânea de autores da Bahia lançada também no ano passado, de modo independente, com organização de Matheus Peleteiro.


Sobre a fragilidade da Esperança

Lembro quando éramos crianças e pousava uma Esperança perto. O desejo de tocar aquele verde, reter entre os dedos suas pequenas asas quase transparentes, roubar o que é beleza de sua natureza livre. É sorte, dizem, quando ela invade a nossa casa, voando baixo e fixando-se em alguma parede. Desses minúsculos brindes com que a vida insiste em se mostrar aos nossos olhos em toda a sua singularidade.

Para os pragmáticos, apenas um inseto, um acinte, a nada serve em seu ciclo vivo de verão. E nem cigarras são. É de cedo que se aprende o que é mister. Lembro quando éramos crianças e pousava uma Esperança perto. Minha mãe vinha correndo protegê-la de nossas mãos. E então nos ensinava sobre a fragilidade de tudo aquilo que vive em camuflagem de beleza e existência simples.

Olhar é coisa que, em geral, se aprende com pai e mãe. Como no conto de Eduardo Galeano, em O livro dos abraços. O pedido aflito do menino diante do mar, sua urgência ingênua em apreender a imagem daquele gigantesco monstro. Até onde alcança esse corpo que se esparrama na distância? São tentáculos brancos que nos ameaçam, suas ondas?

Não recordo por inteiro o meu primeiro encontro com o azul. Morávamos perto da Praia do Cantagalo e eu tinha um avô português chamado Lídio. Ele era exatamente como eu: pequeno, ensimesmado e triste. Gostava de cozinhar. Pouca memória, porque foi curto o tempo. Ele me apresentou ao mar. A impressão que tive da areia molhada arranhando a pele, de que a água alcançava toda forma e, assim, nos seguia até em casa e, para sempre, presa ao corpo (Ave, Clarice!).

Frequentemente, produzo polaroides sentimentais daquilo que vejo. Da pequena casa onde morei, lembro as tintas de cores exóticas, sobras da refinaria de petróleo (Ah, Adélia!), o plástico que sustentava a chuva no inverno, a rua simples que se erguia luxuosa a cada segunda quinta-feira de janeiro. Lembro também que a vida parecia em muito com um beco estreito, o recuo de um mundo de muros que permitia a livre criação de universos.

Da memória, pequenas hortas. O brotar dos seios. Ocultar, da racionalidade, as dores que não interessam. Demolir castelos onde princesas mortas esperam príncipes encantados. E as Esperanças. Já repararam como elas somem no inverno? Amar o verão, no qual retornam, com seu viço verde, e a inutilidade da poesia. Amar com toda força Galinha Branca, a mendiga da infância, tão violenta em seu desamparo.

Amar com toda força cada um dos penduricalhos que Galinha Branca carregava em suas trouxas. Flexionar o verbo e os dedos. Amar até mesmo o improvável, aquilo que se distancia de tal modo que, na distância, fica próximo. E só então se pode tocá-lo com os olhos. Apreender o imponderável, essa concha. Dentro dela, o mar pede escuta. Compreender que toda Esperança é frágil. Nela não se toca.


A aerodinâmica dos pássaros

Parece inacreditável hoje, mas na infância participei de uma caça a passarinhos com estilingue. Fomos, eu e Silverinha, no sítio de um tio no Litoral Norte. Não recordo com exatidão todas as circunstâncias, mas lembro que caminhamos dentro da mata até bem longe de casa e que, após atingir as aves com as pedras que levava nos bolsos, ele espetava os corpos dos pássaros caídos no arame farpado.

Fiquei vendo Silverinha fazer aquilo e, confesso, o horror me tomou inteira. Decidi voltar sozinha para a sede do sítio, mas acabei perdida no caminho. Distraída desde sempre, andei uns poucos metros entre árvores que pareciam surgir pela primeira vez na minha frente. Era apenas o sítio de meu tio, onde tantas e tantas vezes brinquei com os primos, e não a floresta misteriosa de As Brumas de Avalon.

Sabia que os adultos da casa não sentiriam logo minha ausência. De vez em quando eu me aventurava no rio que ficava no terreno ou desaparecia por algumas horas, catando licuri para encher o tonel que ficava na varanda, isso quando não estava escalando árvores, para sentir de perto o cheiro das folhas, arrancar as frutas no galho ou simplesmente ter, do alto, a visão do verde das coisas.

Minha mãe bem que tentava acompanhar tanto movimento. Para colocar um freio em minhas aventuras no sítio, fez com que toda a família reforçasse as lendas de que havia um jacaré dentro do rio. O bicho ali representava o “homem do saco” das ruas de Salvador, sempre pronto a levar as crianças desobedientes para uma espécie de limbo.  Mal sabia que aquela história teria em mim um efeito contrário.

Localizar o jacaré do rio passou a ser a minha obsessão nas férias — aumentaram ainda mais, os meus sumiços no sítio. Só não sei até hoje como me meti nessa caça a passarinhos com Silverinha. Ele era bem mais velho e penso que me desafiou a mostrar coragem. Mas a verdade é que a coragem de matar as aves, eu simplesmente não possuía. Muito menos a habilidade necessária para armar a pedra no badogue.

Naquele dia, como se cumprisse um itinerário de tortura, engolindo a raiva e a vergonha, precisei esperar durante horas até que Silverinha ficasse cansado de acertar as aves com as pedras. E tudo aquilo pesou bastante nas decisões que tenho tomado desde então. Me refiro aos desafios aceitos só por orgulho. Aos amigos que pedem conselho, sempre falo sobre a queda que antecede o voo dos pássaros. Eu os observo da varanda do apartamento onde moro, no décimo-segundo andar de um prédio.

Gosto de tê-los perto por alguns segundos, como se não se incomodassem com a minha presença. É com certo prazer que me aproximo o quanto posso e deixo que sintam que nada desejo, nem mesmo capturar sua beleza. Nada nessa vida se compara à confiança de uma ave em sua queda. Um pássaro desconhece os princípios básicos da aerodinâmica.  Ele apenas confia em seu instinto.

Fico surpresa ao saber que cientistas ainda pesquisam de que modo os pássaros enfrentam as correntes de vento. Fico pasma com a perenidade de alguns mistérios. Como as aves dormem enquanto voam? Alemães estudaram uma espécie conhecida como Fragata de Galápagos e descobriram que ela plana quando adormece, usando apenas um dos hemisférios do cérebro. E até sonha (até sonha!) durante cinco minutos.

Cientistas, sempre eles, divulgaram uma pesquisa em 2017 sobre a adaptação das asas das aves às correntes de ar. Pretendem usar esse conhecimento nos cada vez mais detestáveis e invasivos drones. O mundo é um lugar horrível? Tá certo. Mas, ao mesmo tempo, ele é repleto de beleza. Na internet, por exemplo, alguém perguntou outro dia por que os pássaros não voam até a Lua em um site de buscas.


Desde que começamos a contar os mortos

Nesses dias de distanciamento, tenho notado a ausência dos pássaros. Chego à varanda do apartamento e nenhum deles aparece para a saudação costumeira. Antes que começasse a pandemia, pousavam em bando no parapeito, como se quisessem puxar assunto. Vem de lá que te conto, parecia gritar uma dessas cambacicas impacientes. Mal aproximava o ouvido e ela mergulhava em queda livre.

Disse-que-disse de passarinhos só pode ser canto, pontificam os ornitólogos. “Essa manhã sobrevoei o Oceano”, talvez zombem de mim em uníssono. A varanda do apartamento tem sido o limite do meu contato com a natureza nesses dias de distanciamento. Poderia argumentar com eles sobre a plasticidade da aerodinâmica, caso me dessem a palavra. Mas as aves têm mais com que se ocupar.

Os sabiás-laranjeira, por exemplo, andam insones há muito tempo. Desde 2013, trocam o dia pela noite. De madrugada, nas grandes cidades, decidem cantar. Me junto a eles em silêncio, após o pesadelo diário no telejornal. Desde que começamos a contar os mortos, nunca mais o sono por inteiro. Nunca mais os pássaros fofoqueiros no ritual da manhã. Logo agora, justo agora, esse vazio na selva de prédios.

Deve haver uma razão para o sumiço das aves, penso. Ando obcecada em dar sentido às coisas. Invento uma lógica improvável para os acontecimentos. E é possível que seja eu a descobrir a cura, de tanto que a espero. Avisto ao longe um sanhaço-cinzento com ares de não vou lá. Olho para ele, aceno. Sinto que tem receio. Quem sou eu para duvidar do medo? Eu que não consigo entender um sentimento. 

Ponho a leveza da espera no cuidado com as plantas. De seus vasos, contemplam os movimentos da casa. Nunca estiveram tão solidárias. Perdi a conta de quantas vezes me viram chorar. Trago água fresca, promovemos uma pequena festa e, às vezes, rimos juntas. É mesmo o fim do mundo, essa conversa, e como irrita a mania de enxergar lirismo em tudo. Pedra é pedra é pedra é pedra é pedra.

Impossível imaginar se há agora algum futuro maquinando a aurora. Algum verso respirando sob escombros. Mais uma madrugada de olhos abertos, ouvidos atentos, insônia de pássaro. Alguém pigarreia alto no outro apartamento. Lembro meu pai chegando em casa, noite alta, do trabalho. E a sua chegada anunciada pelo som do pigarro. E, então, de súbito, escuto um barulho na varanda: ruflar de asas.

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