por Aristides Oliveira
Como as DJs se reorganizaram para continuar agitando o público na pandemia? Conversei com a DJ Grazi Flores e ela compartilha a trajetória pessoal que construiu para atuar na profissão, os desafios para compor mixagens na música eletrônica e os novos caminhos que ela segue neste momento tão difícil para todos nós, com a antena ligada e criando alternativas para a galera dançar. Muito bom ouvir o que Grazi tem a dizer. Feliz em ter você pelas páginas da Acrobata!
Tenho o costume de iniciar minhas locuções e vídeos de divulgação desta forma e já que virou uma marca registrada, graças ao trabalho que desenvolvo pelo Lacuna Tropical, não poderia deixar de iniciar meu relato desta forma também. Sou Grazi Flores, DJ/Artista, produtora de conteúdo e fundadora do Lacuna Tropical.
E antes de iniciar, de fato, sugiro que você pegue seu café, ajeite-se com uma trilha sonora eletrônica e se prepare para conectar-se com um pouco da minha história, mais focada no lado musical. Ah, e claro, não poderia deixar de agradecer o contato e convite do Aristides Oliveira: é um prazer imenso e um desafio proporcionalmente grande escrever sobre mim.
Chega a ser um tanto clichê dizer que meu contato com a música e minha conexão com a mesma aflorou ainda quando criança. Mas clichês existem por um motivo: carregam sua parcela de verdade. Minha vivência com a sede musical dos meus pais, minha inicialização musical nos primeiros anos de escola, minha curiosidade sobre a música e seus equipamentos me levaram a ter a sensibilidade e o desejo de testar cantar no coral que havia na escola e brincar com os sons do violino.
Dos 9 anos até os 15, estudei e descobri o violino. Dos 11 aos 14, entrei pro Coro Infantil da Osesp, tendo feito diversas apresentações na Sala São Paulo e até mesmo cantando no Parque Villa-Lobos.
Por um tempo, cheguei a ficar um tanto distante dos instrumentos e da música como produtora desta. Mas jamais deixei de absorver, pesquisar e ouvir música à exaustão; saindo do meu período de imersão na música clássica, me apaixonei pelo Indie e Alternativo, mas sempre permeado de New Age, Rock, MPB (e grooves brazucas), Hip-Hop, Jazz e, obviamente, Música Eletrônica.
Fiz playlists no YouTube para compartilhar meus vícios sonoros nos blogs que havia criado e que gerenciava. Mesclando meu interesse por filmes e toda a sua composição, imergi em trilhas sonoras e passei a fazer uma experiência inversa do consumo de um longa metragem: ouvir a trilha sonora antes de assistir ao filme e criar um enredo imaginando cenários e enredos com base na sinopse e no elenco, seguindo, sempre, a lógica da composição da trilha sonora.
Como não poderia ter sido diferente, mergulhei no audiovisual. E será que alguém consegue adivinhar o que me chamava atenção? É claro que era o som: efeitos sonoros, distorções, trilha sonora… E dentro do audiovisual, essa relação do som passa a figurar um papel essencial no processo sinestésico com a imagem que se desenvolve em seus cortes e transições.
Circulando por diversas áreas, tanto no mercado de trabalho quanto nos conhecimentos diversos que cada área exige em sua prática, passei a aguçar minha criatividade e compreender como me desenvolver profissionalmente para ter a práxis dos meus conhecimentos com a intrínseca necessidade que tenho de expressão artística.
Foi aí que “tropecei” numa pedrinha chamada eventos e, sem querer querendo, caí no mundo da produção. Em contato com experiências de funções como hostess, assistente de gerente operacional, assistente em várias áreas da produção (camarim, entrada de palco, backstage num geral), naquela loucura diária de desenvolvimento de soluções criativas, contato com o meio artístico e o desenvolvimento cultural, só poderia como acabar me apaixonando pela construção musical que o controle de toca-discos, CDJs, mixers e controladoras proporcionam em cada sistema de som, com específicas mídias e propostas artísticas.
É importante comentar que, em todos os processos, sempre tive o apoio dos meus pais (dois malucos que, além de tudo, não se contentam em apenas apoiar escolhas, mas também colam nas pistas). Então, logo que surgiu essa remota e possível ideia de mixar músicas, eu fiquei completamente receosa, achado que eu não conseguiria fazer algo do tipo.
Então lá vieram os dois malucos (sim, meu pai e minha mãe) e me trouxeram a maluca ideia de fazer um curso simples pela internet para ver se eu curtiria. Adivinha só? Logo em seguida o curso virtual já não era mais o suficiente: eu queria saber mais, eu precisava entender como utilizar um equipamento de fato e não apenas meu teclado e mouse.
Fui para a – na época – Escola de DJs (E-DJs), que, atualmente, chama-se Instituto E-Lab. Imergi na mixagem da música eletrônica e, poderia dizer que, com o curso descobri a música eletrônica, de fato, em seus gêneros, equipamentos de produção, sonoridades e texturas. De lá pra cá, conheci diferentes formas de evento (majoritariamente aqui em São Paulo e em Amsterdam).
E na boa? Devo dizer que a discotecagem foi um caso de paixão com a primeira mixagem e amor ao primeiro beat! E foi assim que eu resolvi focar na minha carreira como DJ e vivi feliz e com reconhecimento profissional para sempre. Opa! Espera aí: isso aqui é um relato real, não um conto de fadas!
Durante todo o processo, aprendi com situações hostis, duvidei da minha capacidade, questionei meus projetos e demorei a encontrar pessoas que me apoiassem e, assim, entender mais sobre o universo da discotecagem e da cena.
No final de 2018, comecei a trabalhar na Patuá Discos, loja de discos conceituada (localizada na região da Vila Madalena/SP), para o lançamento do primeiro disco do selo da Patuá Discos: o disco homônimo de Amado Maita. Planilhando, ouvindo, organizando, registrando, classificando e divulgando os discos e os eventos da loja, conheci e aprendi com diversos artistas e profissionais da cena musical de São Paulo e até mesmo de outros cantos do mundo (sim, eu coleciono muitas histórias dessas vivências!).
Surgiu, inclusive, a oportunidade de me jogar na discotecagem com vinis pelos tocas da loja. Houveram dias em que eu só abusava da bondade dos chefes, Paulão e Ramiro, e selecionava discos da loja para discotecar, por exemplo, na abertura de uma Vai Na Fé! (tradicional in-store da Patuá). E dessa brincadeira de tocar com discos de vinil, me vi obrigada a garimpar discos eletrônicos para incorporar, de forma oficial, a música eletrônica no line da Vai Na Fé! (com o aval da equipe – não é mesmo Peba e Mimi? – claro!).
Aí você me pergunta: gosta mais de “girar uns discos” ou de “apertar botões” na controladora? Os dois! Pisciana, né queridos? Não dava pra não ser indecisa! Mas não posso negar que sinto saudades de garimpar umas bolachas e de discotecar com os meus discos, coisa que a pandemia acabou brecando.
Com as diversas experiências, estudos e evoluções nas mixagens que tive ao longo dos anos, posso dizer que adoro testar formatos e mídias: cada uma tem uma lógica que a gente usa para selecionar as tracks, mixar, construir um set… E tem até mesmo “rituais” diferentes para selecionar as tracks (dentro dessas diferenças inerente entre mídia física e digital) antes dos sets acontecerem, de fato.
Para tocar com vinil, não basta saber como funciona esse relação do peso do braço, condição da agulha, RPM, técnicas para acelerar ou desacelerar a velocidade do prato para além do pitch, diferentes formas para lidar com o fluxo das mixagens conforme a posição do toca (na vertical ou na horizontal), etc.
É preciso visitar lojas, feiras e sites de venda de discos pra garimpar o som que tem a ver com a pesquisa musical que se está fazendo, estar de olho no Discogs e preparar-se para chegar na hora de adquirir o disco e não ter condições de fazer a pré-escuta do mesmo.
É preciso saber analisar a condição do vinil e saber pesar se faz sentido adquirir aquela cópia ou não. E o trabalho não termina por aí: ainda temos a seleção dos discos e das músicas, pensando numa ordem que seja possível de mixar (afinal existem desafios físicos como o caso de querer mixar uma track que está no lado A de um disco e querer, em seguida, colocar uma outra track que está no lado B do mesmo disco).
Compra disco, limpa disco, guarda o disco; escuta o disco, tira os discos da ordem, tira da estante, coloca no chão, coloca no case, leva pra festa o case cheio de discos, toca, volta, reclassifica e guarda. A experiência de tocar, portanto, se torna ainda mais física do que com o digital, o que exige uma atenção diferente e um fluxo completamente diferente de raciocínio sobre a música e traz um contato completamente diferente com a cultura de produção, relação comercial e reprodução da música.
E mesmo com o famoso time code, que é a forma de tocar com os toca-discos e utilizar músicas cuja mídia é digital, a relação da mixagem com um equipamento como o toca acaba trazendo outra dimensão para as técnicas, performances e construção do set em si.
Já para tocar com mídias digitais, é preciso pesquisar em sites, plataformas de divulgação, redes sociais e, quando a gente está com sorte, também dar uma conferida no e-mail para garimpar as tracks. Mas mesmo quando se fala em mídias digitais, é de suma importância manter o acervo sempre o mais organizado possível em pastas com a classificação dos gêneros musicais e texturas das tracks, datas e artistas e labels. Manter o pen-drive sempre atualizado, manter uma HD com o backup das músicas, organizar os pen-drives… E claro, revisitar o acervo, tanto da mídia física quanto da digital sempre facilita o trabalho de seleção das tracks que serão utilizadas; mas não podemos esquecer que a conferência da condição dos equipamentos e treino nos mesmos também é extremamente importante para saber lidar com imprevistos técnicos e sempre extrair o máximo possível do potencial dos equipamentos para o estilo de mixagem de cada um.
Vou aproveitar e ressaltar que a mixagem em CDJs e controladoras possuem artifícios interessantíssimos e efeitos viciantes para agregar um tempero diferente às mixagens: cues, hot cues, loops, rewind, efeitos e outras artimanhas tecnológicas que possibilitam novas dinâmicas e texturas para as mixagens.
Particularmente, posso resumir que, independente do formato/mídia utilizada, eu adoro fazer o que chamo de mixagens espontâneas, montando sequência das tracks e das mixagens no momento exato em que estou tocando.
Das diversas formas que busquei para divulgar o meu trabalho, uma delas foi o Lacuna Tropical. Sim, antes de ser o laboratório de experiências eletrônicas que é, ele foi o espaço que decidi construir para publicar e divulgar os sets que fazia (desde a época do curso de discotecagem! Aproveito para, especialmente, citar e agradecer por todo conteúdo e liberdade criativa, professor e DJ Erik Kyo).
Por ser um tanto quanto viciada em projetos, criei um podcast que, em pouco tempo, passou a fazer da grade de programas da Dublab Brasil desde sua estreia em solo brasileiro. Atualmente, o programa possui duas edições semanais do programa: às terças temos o Lacuna Tropical Convida, que traz diferentes DJs convidados a apresentar sets inéditos para o programa; às sextas temos o Lacuna Tropical, trazendo sempre sets inéditos que eu produzo especialmente para o programa.
Com a pandemia, o Lacuna Tropical desenvolveu-se para outras áreas, como eventos virtuais e entrevistas com protagonistas da cena. Dentro dos eventos virtuais, destaco a segunda edição do Vibe Lacuna, festival 100% virtual/on-line, que uniu cerca de 94 DJs, 24 marcas (coletivos/festas/labels/apoiadores) em 110 horas divididos em 05 dias de programação em 04 plataformas na internet (Dublab Brasil, Facebook, Mixcloud e Twitch).
Sim, eu organizei e produzi todos os eventos virtuais e estou em fase de planejamento e organização da terceira edição do festival (ainda para este ano, de 2021). Dentro das entrevistas, destaco o projeto >> O SOM DA PANDEMIA << que objetiva criar uma ponte, através de entrevistas e bate-papos com DJs e protagonistas da cena, que permita uma conexão com essa vivência particular e individual dos artistas durante este peculiar, complexo e histórico momento da humanidade que é a pandemia.
Inclusive, se tornou uma forma de registrar a diversidade de singulares experiências durante a pandemia, é traçada uma cronologia sobre a vida pré-pandemia, os resultados do início da mesma com a simultânea experiência coletiva da quarentena, novos hábitos criados, soluções no desenvolvimento dos projetos e carreiras, formas de se sustentar pelo trabalho e perspectivas do pós-pandemia.