Blackyva e a potência da voz transperiférica

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Quem me apresentou Blackyva foi meu amigo Marcelino Freire em São Paulo, numa Balada Literária da vida. Das edições que participei fiquei profundamente encantado com a performance dela. Negra, periférica, trans, Blackyva ocupa a cena funk com potência e originalidade. Suas letras demarcam uma fala política fundamental para pensar e agir sobre a realidade brasileira contemporânea.

Desde então, quando a vi arrebentando em São Paulo comecei a observar suas andanças e projetos pelas redes, seja na música ou teatro. Hoje considero Blackya uma das vozes em ascensão no gênero e repito as palavras de Marcelino: “ela vai longe”.

Conversamos sobre Educação, Racismo, Funk e a importância do Lugar de Fala na música brasileira.

Escutem Blackyva!

por Aristides Oliveira

Quando você percebeu que o funk poderia ser um instrumento de ação na tua vida?

O Funk é minha ancestralidade, não apenas pela africanidade do ritmo, mas também pela história de luta do movimento em relação ao reconhecimento como expressão cultural e dos meus pais que se conheceram em um baile funk. Demorei a enxergar o funk como uma ferramenta de transformação, não só de uma forma que pudesse ser utilizado para conscientizar as pessoas, mas de vê-lo como uma profissão também. Seguir uma carreira cantando funk – nesse caso, Funk Indie, que é um funk mais alternativo e que tem como representantes Linn da quebrada, Jup Do Bairro, Mc Tha, entre outrxs cantorxs – não era bem visto e nem considerado como uma profissão, pois se tinha o julgamento errôneo que o cantor de funk era um vagabundo, alguém que não estudava e nem trabalhava, da mesma forma que o samba nas décadas remotas (para falar a verdade, assim é a visão que muitas pessoas têm dos artistas em geral ainda nos dias de hoje) e por isso se tornava funkeiro. Só que a verdade é completamente diferente, se trabalha e muito, e os investimentos feitos para colocar qualquer material na rua não é pouco. Contudo, essa visão vem mudando ao passo que esse ritmo vem ganhado não só as ruas, que são espaços democráticos, mas também espaços elitizados, como premiações da MPB. Eu mesma me encontro no Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. O funk juntamente ao teatro me ajudou a expressar minha sexualidade, a entender minha presença nesse país, que é tão meu quanto de qualquer outro cidadão, me deu a possibilidade de desbravar novos universos, sair do meu lugar de origem e procurar saber mais sobre outras culturas.

Como é viver no Rio de Janeiro dentro e fora da Rocinha? São várias cidades em uma só?

Atualmente não moro mais na Rocinha, mas carrego ela comigo por onde vou. Seja na maneira de trabalhar em comunidade com o outro, pensar em estratégias rápidas e possíveis para se resolver questões emergenciais e ter a chance de celebrar com quem está ao meu redor, seja numa premiação no Copacabana Palace (RJ), num almoço com colegas de elenco no Terraço Jardins (SP) ou me banhando no Vale do São Francisco (BA).

Fala da sua rotina conciliando teatro, música e militância.

São três universos que não se separaram em mim, quando estou em cartaz de algum modo a música habita ali e quando estou fazendo um show, seja solo ou com o Made In Quebrada, gosto de trazer a performance cênica teatral como um elemento a mais para não ficar preso apenas ao “balançar a raba” que é maravilhoso, mas cansa.

Que mudanças você sente ao longo da sua produção musical? Quem é Blackyva desde “Diligência” até “Se te dei moral”?

Sinto que estou mais preparada para me assumir com o título de Cantor/Cantora, antes eu tinha um receio grande, pois não havia a segurança em mim o suficiente para mostrar as pessoas que essa era uma outra faceta minha. Mesmo não tendo a melhor voz do mundo, é algo que a cada dia se torna mais presente e vivo em mim. Amo compor, amo esse novo momento de escrever e falar sobre coisas mais leves, falar sobre sexo e paquera. Essa é a divisão entre Blackyva de #Diligencia e de #SeTeDeiMoral (que foi minha primeira canção comercial escrita). #Diligencia é uma fase importante onde eu ganhei o respeito de pessoas que jamais imaginaria na vida, porém, eu não poderia me estagnar aí. Eu tinha algo a mais para dizer ao mundo, mesmo que não fosse da forma mais erudita. Me estagnar na performer que traz as mazelas e dores para o palco, além de ser uma manobra batida dos “detentores” da cultura e da galerinha de berço que posa de revolucionária, mas que só quer manter os privilégios e status de desconstruída e liberal, eu estava falando as mesmas coisas e me colocando em cena das mesmas formas. A arte tem um papel social muito importante, essa ferramenta pode ser utilizada para questionar ou naturalizar opressões que nos cercam e naturalizar esse lugar estava tirando a minha capacidade de gozar da vida, a minha capacidade de sorrir, para resolver uma questão que não é minha, apesar de ser devidamente importante levar as problemáticas a debate.

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Eu entendi que não posso ser cobrada de resolver o racismo quando na verdade eu sou vítima dele. Sempre jogam para o oprimido a responsabilidade de solucionar as tragédias deixadas pela civilização e colonização que o atingem. A conversa verdadeira deveria ser feita entre pessoas brancas, não como protagonistas do assunto, mas como causadoras desse fenômeno social. Elas deveriam falar entre si sobre isso, pois polarizando, é como se não fizessem parte da questão e é um problema essencialmente branco, foram eles que criaram.

O ano que se passou ,2019, foi muito importante para reavaliar e questionar a minha presença em alguns trajetos, o que estou realmente disposto a fazer em vida e em cena. Escrever músicas é uma forma de curar certas feridas, porém, cantá-las é como cutucá-las e não permitir a cicatrização. É desafiador, mas me mantenho tentando. Minha existência estava caótica e consumida, eu estava me sentindo inane e com o desejo de ter fazer outras coisas cenicamente. Daí surge a necessidade de lançar o EP Dichave (meu primeiro trabalho musical solo) com referências estéticas de Dorival Caymmi , Antoni Vivaldi e o movimento do Funk 150bpm no Rio de janeiro, assim se inicia o projeto. Que tem como objetivo mesclar o novo e o clássico em uma grande celebração. Por exemplo, em uma canção lançada esse ano, #SeTeDeiMoralRemix, trago uma mescla de dois ritmos brasileiros, o brega e o funk, um leve toque de piano barroco e sopros vanguardistas do leste europeu.

A ideia de fazer um EP curto surgiu depois de escutar a música “O Samba da minha terra” do álbum “Eu vou pra Maracangalha” de Dorival Caymmi. O álbum em si é curto. Achei que fosse algo mais contemporâneo, só que não. Naquele época já existiam músicas num tempo mais rápido, como as demandas de streams hoje em dia.

Vivaldi surge a partir de uma conversa num dia de espetáculo em que eu estava conversando com duas colegas de elenco Maria Beraldo e Maria Portugal (QuartaBê) e de repente ao prestar mais atenção no compasso da música, me deu um insight de incorporar movimentos contemporâneos do Funk na melodia de “Cessatte omai cessatte”. A ideia é desse trabalho é reunir referências que possam dialogar com o conceito e com os gostos atuais de quem consome música e dialoga de maneira direta com a internet. Fiquei matutando isso na cabeça até conseguir chegar ao denominador que queria. Daí surge PANCALA ou Panchala que foi um reino antigo. A ideia é pegar referências que possam dialogar com o conceito e com os gostos atuais de quem consome música. Dichave é uma história que eu já estava querendo contar a algum tempo. Com referências que me orgulham muito. Entre várias composições, demorei para escolher as músicas e como seria o conceito das mesmas. Estou feliz com esse trabalho que me soa como uma celebração, com algo que possa fazer as pessoas se sentirem bem e nas buenas vibras desse momento pra mim. E é o que definitivamente eu quero, que as pessoas se sintam bem, assim como eu me sinto quando digo essas palavras sobre amor, esperança, sexo, tesão e festa e iniciar com um meu parceiro artístico, Aron Moraes, uma pesquisa já voltada para a cena teatral chamada #PrológoParaUmaPandemia um trabalho que traz como principal questionamento “É possível unir lutas de classe e tesão?” e que tem referências de obras renascentistas e obras afrofuturistas.

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Encontrar com DJ Werson no caminho foi um ganho para o meu trabalho. Ele é um grande conhecedor dos ritmos brasileiros. Além do profissionalismo, ele tem a sensibilidade de captar o feeling do artista e do material para fazer com que aquela letra, aqueles arranjos, o bpm acelerado se tornem uma obra.

Ser trans, negra e periférica no Brazil Distópico de Bolsonaro. O que Blackyva faz para resistir em pleno obscurantismo?

O Brasil sempre foi distópico, a única diferença é que começamos a falar abertamente sobre questões que até então não eram pautas. Ambos os lados começaram a dar a cara a tapa. Mas para ser sincera, pouquíssimas coisas mudaram dentro da perspectiva de mundo do lado de cá. Mas quero salientar um questionamento a quem estiver lendo: até que ponto estamos dispostos a sair do nosso lugar de conforto para realmente conviver com as demais camadas e perspectivas sociais que temos nesse país?

O lado de cá sempre foi resistência, apesar de já me dar uma gastura essa palavra. A violência sempre esteve presente e isso não é segredo para ninguém. Às vezes mais intensa como uma avalanche, às vezes mais branda como as marés.

Crédito: Bruna Toscano

Tomando seu lugar de fala, qual a importância da Escola para a população negra no país?

Educação é a base para qualquer cidadão, seja ele de qual etnia for. É como beber água. Eu sou fruto de alguns projetos sociais que foram fundamentais para o meu primeiro contato com a arte, quando criança. Espaços como a OSWALD (SP) fazem total diferença na vida de quem não tem um acesso democrático e gratuito a cultura (ou a novas culturas). Sou do Rio, mas sei da importância que espaços como esse tem para formação de crianças, jovens e adultos. Esses lugares mudam nossa maneira de pensar, nos possibilitam uma perspectiva de vida para além do que nos é oferecido, nos permitem estar mais próximo de uma linguagem ampla e questionadora, nos fazem interagir, nos EDUCAM. É fundamental que continuem a existir porque sabemos que só o ensino básico e a base familiar não são o suficiente para cumprir esse papel e as demais demandas sociais.

Como Blackyva percorre o cenário em que negros e negras são mortos pela polícia, escolas são atacadas pela necropolítica do Witzel, o racismo torna-se rotina nos noticiários, esforços de criminalização do funk… Sobreviver a toda essa avalanche?

O Rio de Janeiro é uma canção de amor em meio a um tiroteio. Nem Shakespeare conseguiria escrever com tanta precisão o quão trágica e bela é essa cidade. É uma catástrofe diária sobreviver nela.

Suas letras são carregadas de empoderamento e visão política. Sabemos que parte das músicas funk atribuem um lugar para o corpo feminino aberto a profundos debates. Qual sua leitura em torno das canções que situam as mulheres enquanto objeto sexual?

É complexa essa discussão. O funk como qualquer estilo musical veio para contar a história de um povo, mais precisamente um povo que é completamente excluído, que ainda vive à margem, um povo que é pobre e que vem das favelas. Quando uma letra de funk faz apologia ao estupro, as drogas é necessário que entendamos o porquê de se trazer uma discussão mais profunda. O funk conta a realidade, o que nós vivemos em sociedade. Você canta e fala sobre o que você conhece. Não tem como você mudar a letra se não muda a realidade da região e do país. O funk não tem tabu. Se for pra falar de boceta ele vai falar, se for pra falar de cu, ele vai falar, se for pra falar com quantas pessoas transou na última noite e quais formas e posições, ele vai falar. Diferente dessas obras mais burguesas que pincelam com todo classicismo a vida. Vida essa que muitas vezes não dá para cantar “o barquinho vai, à tardinha cai”. As pessoas estão cantando a sua realidade, que é o que está a um passo de suas janelas como armas, prostituição, estupro e drogas. Para mudar as letras de funk você tem que mudar a realidade de quem está naquela aérea.

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E apesar da discussão ficar muito em cima do funk, isso vale para o sertanejo, músicas norte americanas, e assim vai.

A grande problemática do funk é também o lugar de onde vem, não só o funk, mas outros ritmos oriundos das periferias/favelas como bregafunk, pagodão que sofrem com o mesmo tipo de discriminação. É algo que está movimentando as massas e se isso ocorre é porque está comunicando. E a partir disso como levar o debate ao invés de apenas proibir alegando fazer apologia a isto ou aquilo? No próprio carnaval que passei na Bahia, ocorreu um pedido do ministério público para que revisse as letras de alguns cantores devido ao cunho machista. Havendo inclusive a proibição de Igor Kannario de ser uma das atrações. Porém, houve uma mobilização significativa do público para que ele cantasse.

Concordo plenamente que deve haver uma reeducação em relação a qualquer conteúdo que deprecie a imagem das pessoas, que estimule a violência, porém que isso seja em todas as categorias culturais – sertanejo, comerciais, novelas, inclusive na própria literatura acadêmica – e que possamos nos questionarmos a que tipo de situação está submetida a pessoa que está cantando certo tipo de letra.

Fala um pouco do Made In Quebrada? Como funciona a dinâmica de criação com a turma EuriMania, Andrezza Santos e Dj Werson?

Made In Quebrada é um grupo formado por jovens de diferentes regiões do Brasil em que há uma união de estilos musicais. Nosso primeiro EP (2018) foi o que me motivou a ter a segurança de me assumir como cantor/cantora. A princípio iríamos nos reunir para compor apenas uma música, mas nossa relação foi tão harmônica e produtiva que acabou formando o grupo. Apesar de termos vivências parecidas, a personalidade de cada um é distinta, quando cheguei pela primeira vez com uma letra de funk eles se assustaram pelo teor do conteúdo, como já dito acima o funk vai falar sem tabus, e não só isso, acredito que por causa da praia, entre outros fatores, o carioca tem essa propriedade de falar da sexualidade com naturalidade. “Naquele Esquema” que a princípio teria um conteúdo mais direto sexualmente, precisou se moldar também ao modo que eles se expressam artisticamente, para que não houvesse o desconforto de nenhuma das partes. Nosso desejo sempre foi trazer letras com um conteúdo mais político e ao mesmo tempo que fizesse as pessoas dançarem, se jogassem na pista. E isso tem dado certo, o retorno do público nos shows tem sido muito positivo.

Lembra daquela polêmica envolvendo o clipe “Você não presta”, da Mallu Magalhães? Rolou um debate atribuindo a performance da cantora como atitude racista. Muita gente opinou, criticou e deu suas sentenças. Desde quando ocorreu, tinha vontade de saber sua posição sobre o episódio. E aí?

Podemos iniciar este tópico analisando desde o lugar e as vestes que Mallu está até o lugar e as vestes que os bailarinos “semi nus” e cheios de óleo se encontram. Existem olhares e formas de se falar ou se fazer algo que pode ser completamente racista ou não. A construção estética do clipe traz uma linguagem, explícita ou entrelinhas, que deixa o corpo negro no lugar do exótico. Ou seja, a estética utilizada é racista e vai alimentando toda essas narrativas culturais de que o negro é o OUTRO, nunca o indivíduo EU. Assim como vemos em filmes, novelas, propagandas. Intencionalmente ou não, lembro que o discurso de Mallu dizia que a ideia era passar algo mais “selvagem” em “Você não presta” evidenciando assim, a relação colonial que ainda sustenta esse país.

2020: Perspectivas? Projetos em andamento?

Para 2020, tenho trabalhos paralelos no Teatro com espetáculos já existentes que entrarão em circulação e novos trabalhos já sendo ensaiados, darei continuidade a minha pesquisa cênica #Prólogo e vou continuar focado em entrar na indústria musical brasileira. Me consolidar no mercado. Irei lançar mais um clipe do EP Dichave e iniciar uma Turnê desse trabalho.

O que você está escutando? Indica sons para os leitores e leitoras.

Ultimamente eu tenho ouvido uma salada musical devido a #Prólogo e as narrativas e paisagens musicais que quero contar com ele. Para #Prólogo, por exemplo, existe um mix de Steven Mcqueen, Scritti politti, Siouxsie and the banshees, Marvin Gaye, Deize Tigrona, Mc Jessi, Angela RO RO e por aí vai. Já para o meu trabalho com a música tenho escutado e estudado ritmos brasileiros urbanos como o pagodão, trap brasileiro, bregafunk, bregawave, entre outros estilos.

Minha indicação será meu álbum de cabeceira “Goela Abaixo”, que é o último trabalho da banda Liniker e os Caramelows e “Piano Concerto No.2” de Béla Bartók.

–> O crédito da imagem de abertura é de Pérola Quesada .

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