Entrevista realizada dia 24 de setembro de 2017, por Aristides Oliveira e Bernardo Aurélio com participação especial de Valderi Duarte.
Bernardo e Aristides ajustaram o google maps à caça da residência de Carlos Galvão, um dos realizadores do filme Adão e Eva do Paraíso ao Consumo. Ele mora no Rio, mas veio passar uns dias em Teresina, na casa de seu cunhado Cleber Franco, no bairro Cristo Rei, e tudo parecia conspirar para que eles pudessem bater esse papo.
Depois de ficarem perdidos por alguns quarteirões, como é costumeiro com esses aplicativos chegaram lá. A casa tem grandes mangueiras e pés de jambo e um clima acolhedor. A conversa foi muito produtiva e contaram com a visita inesperada de Valderi Duarte, superoitista e videomaker da capital, principalmente nos anos 1980, formado em cinema em Cuba e participante do grupo ‘‘Mel de Abelha’’, e que estava indo conhecer Carlos Galvão.
A gente queria ouvir tua posição sobre a história do filme porque são poucos os registros de depoimentos em torno do Adão e Eva do Paraíso ao Consumo… O que a tua geração estava consumindo, lendo… como vocês viviam a cultura nos anos 70 em Teresina?
Aqui em Teresina havia, por volta dos anos 60, uma cultura intelectual, de informação e tal, estudantes que tinham até alguns jornais, escreviam e publicavam… A maior parte deles foi processada por aquele artigo 477, que era o AI-5 para estudantes, e alguns foram expulsos e presos. Eram Antônio José Medeiros, Geraldo Borges, Odilon Pinto, Benoni Alencar, e outros. Isso gerou um hiato enorme. Uma segunda turma, essa a qual pertenço, já apareceu em cima de informações do início dos jornais alternativos no Brasil, principalmente “O Pasquim”. Ele já chegou aqui, em Teresina, a partir do número 25, mas passou a ser uma forma de informação e de conversa, de aglutinar as pessoas para discutir.
Éramos uma turma composta por esse pessoal: Chico Pereira, Edmar Oliveira, eu, Paulo José Cunha, Arnaldo Albuquerque, Haroldo Barradas, Durvalino Couto. Arnaldo eu conhecia do Colégio Diocesano, quando ele terminava o curso primário e eu iniciava o ginasial. Quando nos encontramos como turma, ele já tinha interesse por quadrinhos, desenhava, pintava, ganhou vários prêmios.
Então, todo mundo da galera tinha uma expressão pelo lado artístico. Eu vinha desse movimento jovem de banda, tinha um conjunto chamado “Os Fantasmas” e tal. Todo mundo tinha um interesse a partir disso e também do jornalismo. A gente começou a escrever algumas coisas. Deusdete Nunes, o muito conhecido Garrincha, pelo sucesso de uma coluna de futebol que escrevia no jornal O Dia, o maior de Teresina, na época, ganhou uma página inteira no segundo caderno do jornal onde desenvolvia uma linha meio de humor crítico e de fofocas da política local. Ele incentivava e convocava a participação de jovens para colaborarem na “Folha da Mãe Ana”, o nome da página. Eu e muitos dos amigos que citei aqui colaborávamos e isso nos aproximou.
Teve também o jornal Tribuna Democrática, dirigido pelo Herculano Moraes, que mexia muito com a questão dos partidos políticos da província. Ele abriu várias páginas do jornal pra gente fazer o que quisesse. Agora, o que deslanchou tudo foi quando a gente conheceu o Antônio Noronha, que era dessa geração do Torquato, um pouco mais velho, que também tinha se formado fora, então escapou dessa queimação que os outros caras tiveram. Ele era superinformado e tinha na casa dele discos, livros e também conhecia Gilberto Gil, via Torquato Neto.
Noronha passou a distribuir a informação que tinha e a gente teve uma ideia de fazer um filme Super-8. O rolo de Super-8 tem três minutos, e havia muita dificuldade para comprá-lo, além de ser meio caro. Fortaleza era o local mais próximo daqui onde se conseguia comprar o filme de Super-8. Com Noronha propondo-se a ir lá e adquirir o rolo de filme, eu, Edmar Oliveira e Chico Pereira imaginamos fazer um filme com três histórias de um minuto, escrito e dirigido por cada um de nós. Seria inclusive preto e branco. Era até mais fácil a gente conseguir porque a revelação demorava menos. Cada um escreveu uma história, quer dizer, preparou o que seria o filme, a história, o enredo.
Noronha, nas próximas idas dele à Fortaleza traria o rolo do filme a ser feito. Nesse intervalo, chega Torquato Neto, nessa última vez em que esteve aqui. Torquato tinha participado com Ivan Cardoso do Nosferatu [no Brasil] (1971). Então a gente tinha essa experiência dele por ter participado como vampirão e tal. Ele chegou e o Noronha falou inicialmente: “vamos fazer isso”. Depois se empolgou: “vamos fazer alguma coisa maior”, pensando em envolver Torquato Neto no projeto. Mas Torquato só queria participar aparecendo. Então, escolhemos, dentre as histórias que havíamos escrito, uma que se chamava Adão e Eva, que era a história de Edmar Oliveira, que apresentava uma facilidade de fazer porque eram só dois personagens e era a primeira vez que se fazia alguma coisa de filme e tal.
O Arnaldo Albuquerque, que era fotógrafo, foi quem ficou operando a câmera. A gente distribuiu papéis. O pessoal ficou encarregado de consegui a “infra”: uma peruca, umas roupas, uma costela. Noronha conseguiu a câmera e dois rolos de filme, o que nos daria um filme de 6 minutos. Então, eu, Arnaldo e Edmar nos juntamos para fazer o que seria o roteiro. Fazer o roteiro era pegar a história, decupar, realizar um storyboard contabilizando os minutos e os segundos.
Cada segundo, cada cena e cronometrar aquilo para caber no tempo de filme que tínhamos. Ficar com o relógio ali para fazer os cortes porque se sabia (apesar de existir coladeira) que era muito complicado de editar… Ainda hoje é complicado, imagina na época. Cena curta tinha que ser cortada, colada, etc. Então a gente ficou um tempo bolando isso para fazer na sequência. A gente foi simplificando.
O Super-8 era uma das poucas formas possíveis de expressão na época da ditadura barra pesada.
Você disse uma coisa que achei curiosa: o rolo de filme era muito raro. Foi o primeiro rolo que vocês tiveram acesso e o primeiro filme que vocês fizeram?
Foi.
Fala um pouco dessa lembrança que tu tem da pré-produção.
A gente pegou as coisas mais simples pra poder realizar. Torquato veio pra cá, para Teresina, pra dar uma descansada da vida e ficou uma semana no Meduna, uma clínica psiquiátrica, num quarto particular.
Tinha data marcada para se internar e a gente tocou tudo correndo para fazer antes. Aproveitar o máximo. E foi simples: um roupão, a ideia era essa, um Adão meio hippie, uma Eva simples e aquela história que é uma metáfora.
Agora, é importante dizer que Adão e Eva do Paraíso ao Consumo não faz parte da obra de Torquato Neto. Faz parte, sim, do seu currículo, mas é um filme de Antônio Noronha, Edmar Oliveira, Carlos Galvão e Arnaldo Albuquerque.
Ocorreu alguma dificuldade durante o processo de filmagem?
Também queria saber como foi a reação das pessoas de estar na cidade gravando…
A princípio não criou muito tumulto não… foi feito meio corrido. Não houve grandes anúncios e não havia esses meios fáceis de divulgação, de troca de mensagens. As dificuldades eram de tempo. A gente foi para a beira do rio Poty escolher um local mais ermo que não pudesse ser interrompido, por passagem, por pescador, uma canoa e tal.
Isso a gente fez antes, um dia antes, até conseguir um ponto para fazer isso. E a questão da luz, da angulação, da incidência da luz na lente. Na filmagem, o pessoal resolveu por um aparador, um cofo, um negócio assim, fazendo sombra, tirando o sol direto da lente. E o resto foi engenharia mesmo. O filme foi feito em duas partes, para facilitar. A parte do rio, que acaba na ponte, um rolo completo, foi filmado na parte da manhã. E a outra parte foi feita pela tarde, na cidade, no centro e na casa do Noronha.
Existe alguma história sobre o filme que você ouve as pessoas falando que não aconteceu?
Primeiro, o filme sumiu. Foi visto umas quatro ou cinco vezes por não muitas pessoas. O lugar mais público que ele passou foi na União de Moços Católicos – UMC, porque ficava na rua da casa do Arnaldo e ele tinha acesso ao auditório. Nós convidamos os amigos e passamos o filme lá. Outras sessões foram feitas na casa das pessoas. Do Noronha, casa do Torquato, lá na minha casa. E a gente fazia as projeções passando o filme com um toca-disco tocando uma trilha, em disco de vinil.
Qual era a música?
Era um disco completo do The Moody Blues, que tem um velhinho na capa segurando uma vela, com uma criança do lado e tal…
Como eram essas exibições? Como a galera reagia?
Eram exibições para os amigos e as pessoas envolvidas no projeto. Todo mundo achava muito legal. Deu muito certo, coincidiu tudo, os cortes ficaram perfeitos. Uma questão técnica que o Arnaldo resolveu foram os letreiros. Como é que a gente ia fazer? O Arnaldo teve uma ideia de fazer o letreiro com placa de vidro desenhado com tinta guache enfiado na areia. Aí foi feito quase como uma animação.
Essas placas eram colocadas em frente à lente?
Para Arnaldo Albuquerque poder manipular a câmera, o vidro era enterrado na areia do rio, na coroa. Ele escrevia as letras da apresentação do filme de guache, filmava ao nível do chão e fazia um corte. Apagava o primeiro letreiro, enxugava o vidro e escrevia o seguinte. Ficou uma animação do letreiro. Ele segurava a câmera, fazia uns “tantos” quadros e aí apagava e escrevia: “Produção”, “Direção”…etc.
Apesar dos cortes, ele deu uma calculada porque o Torquato ficava vindo lá de longe todo desfocado e durante esses cortes a imagem ficou aparecendo. O corte era bem curto e foi contínuo. Então, quando não tinha mais nada, ele ficou em pé, levantou a câmera, correndo de baixo para cima.
Como o vidro é transparente mesmo, ficou perfeito. Não fez sombra, não fez nada. Mas era o único jeito. E ele não tinha menor possibilidade de inserir o letreiro no Super-8. Era complicadíssimo. Só se tivesse que ir num laboratório lá. Não sei nem se fazia isso em Fortaleza.
A gente queria fazer aquilo correndo. E foi uma solução engenhosa, genial. Ficou perfeito. E aí segue a ação e os cortes eram feitos a partir do roteiro que a gente tinha feito, que na verdade foi a cronometragem da duração das cenas que a gente queria fazer na sequência para evitar qualquer interferência.
A gente não queria cortar, colar… aquele processo! A gente planejou simplesmente fazer os dois rolos inteiros e emendar uma ponta na outra. Só teve uma emenda. Esse filme passou no Rio de Janeiro. O Luís Otávio Pimentel viu, o Ivan Cardoso viu.
Como o filme se perdeu?
Esse filme, como todos os filmes que fizemos, ficaram sempre comigo. Depois que ele passou aqui, ficou comigo no Rio de Janeiro e lá a gente projetava de vez em quando. Eu tinha um projetor em casa e fazia o mesmo processo, passava o som no disco…etc.
Em 74, o Noronha foi no Rio de Janeiro. Ele sempre ia e nessa época a gente morava naquele castelinho na praia do Flamengo e ele passou lá dizendo que um amigo ia para Nova Iorque. Os filmes em Super-8, ektachrome ou kodachrome eram diapositivos e para copiá-los tinha que fazer uma contratipagem, era uma dificuldade.
Noronha soube que em Nova Iorque se fazia isso. Esse amigo ia pra lá e ele arranjou que ele fizesse uma cópia do filme, pra gente ficar, com mais um. No caso, a cópia ficaria até melhor, porque ficaria sem a emenda, ficava igual e sem corte, sem as emendas que eram coladas. Porque essas emendas, com o tempo, acabam ressecando.
Valderi Duarte: E ela colava também com uma fita adesiva…
De qualquer forma, o filme Super-8 sempre se perdia nas projeções. Quanto mais corte tivesse, mais complicado porque o circuito que um filme passa dentro de um projetor pra sair na ponta é longo e era todo entortado. Tinha engrenagem e a tração danificava a película. Quando eu voltei a encontrar o Noronha mais tarde, ele me contou uma história que o filme tinha se perdido no processo, o cara mandou pelo correio.
Agora, o próprio Noronha tinha três versões dessa história, por isso que o filme é misterioso (risos). Essa foi uma que ele me disse. Depois, ele mesmo, passado mais um tempo, falou que esse amigo resolvera não ir a Nova Iorque. Comprara uma Van, uma Kombi, não sei o que aí…
Por curiosidade histórica, mas você não precisa responder… o nome dessa pessoa não se veicula, né?!
Eu não falo porque eu não sei, não vi… Era uma pessoa da geração dele. De São Paulo, se não me engano. Noronha era muito cobrado sobre o destino desse filme. É que ele, até sem ser combinado, passou a fotografar toda a sequência da filmagem, na câmera do Arnaldo. E foi a sorte, porque foi o que sobrou do filme. Uma sorte também porque essa sequência de arrancar a costela está praticamente completa, quadro a quadro.
Tempos depois, Claudete Dias pediu os negativos emprestados a Arnaldo Albuquerque, mandou fazer cópias e as publicou na sua página do Orkut. A partir dessa publicação, Noronha era muito inquirido sobre como e porque o filme tinha sumido.
Logo após, Claudete foi ao Rio de Janeiro e ainda não tinha devolvido os negativos para o Arnaldo. Eu os peguei e fiz uma ampliação da série. A partir desse momento que tive as fotos, eu comecei a pensar em refazer o filme. Consultei o Noronha que disse “pra mim, tudo bem, vamos ver”. Consegui convencer o Durvalino Couto a fazer o Adão, e Lídia Noronha, a irmã do Noronha, que nunca tinha feito nada, nem em teatro, topou fazer a Eva.
Combinei com Arnaldo Albuquerque que cada um de nós devíamos fazer um exercício de memória e reconstruir o roteiro do filme numa espécie de storyboard. E comecei a fazer esses desenhozinhos, que você encontrou, parte com o Arnaldo Albuquerque e que depois enviei para você (se referindo ao Bernardo Aurélio).
Vocês já conheciam o Torquato quando ele chegou aqui?
Eu, pessoalmente, não. Torquato já tinha estado aqui no ano anterior, 1971, e Edmar Oliveira, Durvalino Couto e Paulo José Cunha, escreviam uma página que era inserida no jornal Opinião. Era um tabloidezinho, acho que do Zé Camilo. A página chamava-se “Comunicação”. Aí cada um publicava um conto, uma história. Nessa vinda anterior, foi Torquato quem deu uma entrevista e colaborou com a página dos meninos.
Noronha era amigo de infância dele, de juventude. Eu o conhecia de nome, pelas músicas, sabia que era piauiense e tal. A Lena Rios era muito amiga do Noronha e tinha estado no Rio há pouco tempo e soube que ele estava vindo pra cá. E quando ele chega, o Noronha resolve detonar esse projeto que a gente ia fazer, antes dele aqui.
O Noronha tinha participação em um cineclube, que funcionava no Colégio Diocesano. Eu cheguei até a ir lá umas noites. Foi lá que Noronha conseguiu uma câmera de Super-8 emprestada, com a qual fizemos o Adão e Eva do Paraíso ao Consumo.
A impressão que a gente tem é que vocês fizeram um filme entre amigos, para assistir entre si, que não tinham a pretensão de fazer um “grande cinema”.
O Super-8 era uma das poucas formas possíveis de expressão na época da ditadura, da barra pesada. O pessoal sacou isso… começou a ver que o filme tinha qualidade de película, passou a ser barato, passou a ser fácil ter câmera. Isso nos grandes centros.
Os artistas plásticos de Nova Iorque usavam muito como suporte de arte interativa. Isso virou uma forma, como nos jornais alternativos, uma forma de expressão livre, de vanguarda. O Hélio Oiticica, em Nova Iorque, foi muito influenciado por esse início do movimento. Neville D’Almeida morava lá também, e começou a fazer filme Super-8.
Vocês tinham influência, sintonia com essa galera?
Sim, sim. Tinha conhecimento. O Pasquim era um jornal de vanguarda que era composto desde política, muita arte, cinema. Tinha o Luís Carlos Maciel que tinha uma coluna que falava de vanguarda, tanto artística, quanto de psiquiatria moderna. Eram os nossos assuntos aqui. Era um pouco mais do que passar os filmes só pra gente. A gente queria fazer, tinha gente que queria fazer cinema, música e era junto, integrado. O Arnaldo nas artes plásticas…
O Super-8 que essa galera fazia que influenciaram vocês chegaram até aqui?
Não, os filmes não. Só as histórias, fotos, still, carta, a coluna de Torquato quando se lia no jornal Última Hora. Ele, às vezes, dava a coluna inteira para o Luís Otávio escrever, ele era um cineasta na época e também artista plástico.
Essa era a influência. Havia um interesse de trocar figurinha, assim como os jornais alternativos que a gente recebia. Tínhamos feito aqui, no carnaval de 72, o Gramma, um jornalzinho mimeografado. O Gramma foi mandado pelo Paulo José Cunha para o Torquato. Quando ele veio para cá, em 72, já conhecia inclusive o nome de todo mundo e queria mexer com isso também, entrar junto.
A revista Rolling Stones, tem uma edição que foi feita no Brasil que publicou a capa do Gramma e uma resenha falando “do pessoal do Piauí” [nº25, de 17 de outubro de 1972]. “Gramma nasceu lá e foi trazida aqui pelo Torquato Neto como uma joia preciosa. Um poema”, dizia a publicação]. Eles tinham o contato através do Torquato. Havia um meio de divulgação por meio da imprensa alternativa.
Quero retomar a questão envolvendo a possível refilmagem do Adão com o Durvalino.
Ele era ligado ao pessoal do teatro em Teresina e eu achava que ele estava próximo disso.
Quando foi?
Nos anos 90. O projeto não foi pra frente por falta de sincronia, de chegar junto na mesma data e ter tempo grande para fazer uma pré-produção, mesmo que fosse mínima, entendeu? Aí a gente foi adiando… Acabou não sendo feito. Eu ainda tenho essa ideia… A mística em cima desse filme tem a ver com o Torquato, com a morte dele. Isso chamou atenção pra caramba. A mesma geração que resgatou Raul Seixas depois, ele vem nesse bolo.
Ele casa dois mitos aí: Torquato morto, jovem, e o filme sumido. Primeiro filme dele feito em Teresina, desaparecido. Ao mesmo tempo que aparece o mito, aparece o contramito. Os caras ficam dizendo: “Porra, deixa o cara morrer! Que porra é essa?! Agora tudo é ele?” Mas tem alguma coisa de verdade nisso tudo, ele ficaria puto por ser nome de rua, por exemplo.
Tinha umas coisas que, pelo jeito, ele era meio rebelde, mas eu o conheci. Ele morreu tinha 28 anos. Hoje seria um cara de setenta anos, que podia ter, sei lá, outra história. Com certeza, seria de vanguarda, de esquerda, mas estaria mais tolerante com um monte de coisa. Talvez esteticamente não, mas podia ter netos.
Sobre o filme, a câmera não tinha zoom, aí tinha que medir o foco. Como a gente não estava com trena, a gente fazia uns ensaios rapidinho antes da cena. A gente começou a usar uns talos de coco na beira do rio e aí ficava a marcação: “não aproximar além disso”. No geral, ficava fora do enquadramento. A gente fazia essa medida, porque a partir de um certo limite desfoca e vira infinito. Isso não aparecia no filme. É como a marcação que se faz em palco de teatro, com fita no chão.
Acabando o letreiro, o Adão viria mais próximo, depois fica o ponto de vista que ele tá olhando para o rio, e ele enfia a mão no roupão e arranca uma costela. Faz-se o corte para colocar o sangue e tal. Não ficou tão preciso mas deu o efeito que se queria. E jogava essa costela lá no rio. Filmava-se ela andando um pouco e depois caía na água. E quando caía a costela, saía a Eva da água, como uma Iemanjá que vinha caminhando. Os dois se encontram, se agarram, rolam no chão, ficam namorando.
Saem os dois andando até a ponte. Aí filma-se da ponte eles subindo e pedindo carona. A gente filmou com a câmera do outro lado, meio longe para o pessoal não sacar. Estava programado o Noronha, no carro dele, vir certa hora e parar. Mas filmamos antes várias tentativas de pedido de carona a estranhos e ninguém parou, como o previsto.
As pessoas olhavam aquele cara de peruca com uma mancha de sangue enorme, uma mulher, todos molhados, sujos de areia… Ninguém ia dar carona nunca, ainda mais naquele tempo. Uma certa hora, o Noronha encosta o carro, eles entram e vão embora. Aí tem a perspectiva da ponte acabando a primeira parte da filmagem.
O outro bloco é o da transformação. Na parte da tarde, filmamos em duas esquinas, isso na Rio Branco, ali no Centro, no comércio, na frente da Diacuy Modas, aquelas lojas antigas que aparecem. Adão e Eva andando na rua, olhando as coisas e tal. E aí filmamos a reação das pessoas cruzando com eles.
Aí tem um corte para essa outra locação que é a chegada na boutique “A Serpente”. Como a câmera não tinha zoom, a gente chegava com ela lá perto da serpente e voltava. ‘‘Corta!’’. Os dois já saindo: ele de cabelo curto, terno. Ela com uma roupa toda de boutique e tal. Abraçados. Do paraíso ao consumo!
Era uma metáfora explicada pelo título. Depois dessa saída na boutique, aparecem eles na cozinha, na casa. Ela sentada, ele como se tivesse saindo para trabalhar, com uma pasta e a mulher jogando uma comida, qualquer coisa no prato. Eles fingem bater uma boca, uma discussão…
A ideia era que ela aparecesse grávida, de “bobs”. Então a discussão era até acabar o rolo. A gente tinha medido o filme direitinho. Aí o Arnaldo teve outra ideia. Ele ficou girando a câmera. Ela ficou de cabeça pra baixo, até que o filme entra naquela ponta colorida do final. Isso encerra. Esse filme desapareceu, Torquato sumiu. Todo mundo sumiu nesse tempo. Aí começou uma outra geração com interesse por isso, por Super-8. Inclusive interesse acadêmico.
Você acha que esse olhar acadêmico em torno do filme, de Torquato… É frutífero ou alimenta ainda mais um fetiche em torno do que se fez naquela época?
Eu não posso ser contra o mito. Isso é cultural. A questão de alguns dados e fatos, você pode até não gostar disso ou daquilo, mas não tem jeito, cara. O interesse universitário é próprio, porque todo ano tem dez caras querendo uma coisa inédita, original e que possa estudar comparativamente com o currículo que ele estudou, a bibliografia… Esse é um assunto que chama muito a atenção. Agora, em cima de erros crassos, se cria mito sobre mito. Dá vontade de rir. Tem umas coisas que a gente fica rindo.
Não sei por que, por exemplo, o Edwar Castelo Branco, que eu conheço só de e-mail, resolveu focar seu trabalho no depoimento da Claudete Dias, que é da área de História, talvez por ser o contato mais próximo que ele tinha, o único, ou talvez por serem amigos, não sei.
Ela deu o relato dela, a memória dela sobre o filme. É em cima disso que ele desenvolve a sua teoria sobre o filme perdido. A história que ela conta é um pouco diferente do filme. Quer dizer, já é a visão dela. Aí desvia um pouco, levou o cara pra ficar explicando coisas que não existem e que não se pode comprovar porque enfim, não existe mais. Ela falou que o filme encerrava falando uma frase: “Toda sociedade tem o fim que merece”. Claro que não! Frase nenhuma, ainda menos essa. E também um negócio do adesivo “Ame-o ou deixo-o” no vidro de trás do carro. É uma ideia criativa…
Isso não aconteceu?
Não! Aquilo era um adesivo que usava quem era favorável ao regime. Eu ainda não fui fundo pesquisar mas acho que essa frase nem é daquele contexto, ela é posterior. Essa tese faz uma confusão ao misturar os filmes que Torquato fez aqui em Teresina, um com o outro. Tem um depoimento que o Adão chega na beira do rio Poty e vê vários casais de animais, cada bicho com seu par, e ele entra em depressão e resolve arrancar uma costela.
Qual a possibilidade que a gente tinha com esse tipo de produção e onde é que você ia conseguir par de bicho para colocar na beira do rio? (risos) Isso não tem sentido! Nem se eu tivesse escrevendo o que estava na cabeça, mas ela fala como se tivesse acontecido e o cara publica como se estivesse.
Quando ele estava para publicar o livro, o Durvalino tinha um blog, não sei se era blog na época… Ele mandou um trecho, resumo da tese, o Durvalino publicou. Fui ler. A Claudete, por acaso estava no Rio. Ela me disse: “Não, não falei nada disso. Eu fiquei falando, sei lá como é que ele viu, o que eu disse”. Falamos das fotos. Ela publicou as fotos e não falou que era do Noronha e ele ficou puto (risos).
Aí eu entrei no meio e acalmei as histórias. Aí ela falou: “Eu tenho o e-mail do Edwar, amanhã eu falo com ele”. “Eu falei com ele e disse que vai ligar pra você”. Aí ele me mandou um e-mail com um questionário de como é que tinha sido feito um filme. Respondi: “Você está publicando o livro, vou responder questionário agora? Não faz sentido o resultado dessa nossa conversa, o livro está impresso”.
Em 2004 eu vim para Teresina participar de uma semana que comemoraria o que seria os 60 anos de Torquato Neto. A Secretaria de Cultura fez mesas de cinema, poesia, música, funções culturais que Torquato Neto exercera no cenário brasileiro. Para a mesa de cinema fui convidado por Jairo Araújo, que estava à frente dessa história, exatamente por ter participado dos filmes de Torquato aqui em Teresina. A mesa foi composta por mim, Ivan Cardoso, do Rio de Janeiro, e por Douglas Machado, com a mediação de Antônio Noronha.
Uns garotos, Isana Barbosa e Rammyro Leal, que estavam terminando um curso desses aí de fim de ano souberam que eu estava aqui e me chamaram para gravar um depoimento para um curta de fim de curso: “Um Inventário em Super-8”. Disseram-me que só faltava o meu depoimento para a conclusão do curta.
O documentário é mais ou menos encaminhado pela entrevista do Edwar, que fala assim: “Olha, esse filme (Adão e Eva) foi todo bolado pelo Galvão. Ele que fez tudo. Fez o roteiro, não sei o quê…” nem era assim, nem assado, mas tocou… Já com o livro publicado fez questão de dar uma remendada na história.
Acho até legal isso, mas também não é assim. Foi toda uma equipe que fez o filme. O livro ficou como está, mas ele deve ter hoje possivelmente outra visão. Outra coisa que tem no depoimento é que a forma como o Adão arranca a costela… Ele pega um talo de coco no chão, rasga o peito. O talo de coco era da marcação do foco da qual já falei aqui (risos). Quer dizer, ela lembra de detalhes, mas muito loucos, entendeu? É muito louco.
Qual a importância do filme nesse contexto de produção?
O mito do Torquato Neto morto, jovem, nutriu a importância do filme perdido. E a coincidência do movimento. Alguns filmes em Super-8 possivelmente já haviam sido feitos aqui em Teresina antes de maio de 1972. Pelo menos no cineclube do Diocesano, em alguns fins de semana, os alunos se deslocavam a alguns recantos para realizarem filmes como experimentos, como dever de casa.
O que coincidiu da gente está ali era que havia um movimento nacional nos filmes de super-8. A gente estava inserido num movimento longo, underground, vanguardista. Não ficava cuidando de roteirinho, de imitar fala e botar cartaz, quer dizer… Essa história (Adão e Eva…) é uma metáfora simplista: é a diluição pelo consumo.
Seria a história da humanidade. O maior grau de conflito era no comportamento diferente dos jovens: cabeludos, droga, amor livre, estes temas que hoje em dia são corriqueiros, eram visados seriamente pela repressão. Qualquer coisa que você fizesse divulgando um tipo de atitude diferente, confrontante com a moral burguesa era uma luta política.
Como os caras [militares] eram meio burros, se jogava um pouco com metáfora, mas era uma forma possível de encarar isso. A presença de Torquato nos dois cenários, tanto no Rio, com o Ivan Cardoso, que estava fazendo filmes médio-longa, e aqui no envolvimento com a gente: a turma do Gramma teria ficado muito marcada. Torquato tinha essa coisa multimídia, ele era um jornalista lido pra caramba.
Ele era compositor junto com a Tropicália, que era o movimento mais avançado. Esse nosso filme chamaria atenção de qualquer modo. Ele vivo ou não. Essas tragédias todas, a morte trágica e jovem, e a criação do mito aumentou o interesse. A metáfora está aí: o mito foi consumido. Não tinha nenhuma ingenuidade da gente estar usando a metáfora simples para a crítica que a gente queria. Se o Torquato não tivesse chegado do Rio de Janeiro a gente teria feito o filme de qualquer modo. A gente tinha escrito e ia fazer três filmes em um minuto, esse era um deles.
Como foi o processo de revelação? Quando exibiram o filme?
A revelação levou bastante tempo, porque era feita em São Paulo. O filme chegou pelos Correios. No dia em que chegou, nós fizemos uma projeção grande.
O que o filme foi fazer em Nova Iorque?
Era o único lugar que poderia fazer a cópia. O filme era como se fosse um slide. Ele já vem no positivo. Eu acho que ele ia fazer um negativo.
Qual a reação com o desaparecimento do filme?
Não tinha mais ninguém próximo. Torquato já tinha morrido, quase todos da nossa geração, eu, Arnaldo Albuquerque, Chico Pereira, já morávamos no Rio de Janeiro e fizemos Super-8 por lá!
Um mistério…
O único que sabia o nome do cara que perdeu o filme era o Noronha. Contou o milagre, mas não contou o santo (risos). Eu acho que ele não contou, não porque fosse um conhecido e pudesse dar buxixo, mas porque revelar o nome, talvez, poderia abrir outro tipo de informação e ele não quis dar essa satisfação.
Ele não tinha que prestar contas a ninguém. O filme era dele mesmo. Ele comprou o filme, pagou a revelação. Todo mundo que entra como produção num filme Super-8 é o financiador, é a grana. Aí tinha a divisão de tarefas.
Tinha um amigo dele que ficou encarregado de comprar a costela (risos). Tinha que ser cedo, no mesmo dia… o cara trouxe uma costela enorme. Sacanagem! Como é que o cara ia tirar uma costela desse tamanho? Mas não tinha jeito (risos). Aí ficou isso mesmo, senão ia ficar podre. Tinha que ser mais de uma costela porque tinha que jogar na água e podia perder, não dar certo. O truque ficou legal.
Como foi o lance de querer gravar o nu?
Quando a gente teve a ideia do filme, o Noronha, com sua vanguarda falou: “seguinte, a Eva tem que ser pelada”. Era meio loucura, era vanguarda demais (risos). Resultado era que ele conhecia a Claudete e numa reunião seguinte ele disse: “resolvi que quem vai fazer é a Claudete, amiga minha”. Fizeram as roupas, era um roupão. Quer dizer, esqueceu-se essa história de Eva pelada (risos).
Arnaldo fez o sangue, levou as tintas, bolou o cartaz e a galera ficava com o cofo rebatendo a luz na lente. Aí a Claudete veio de sutiã. Era pra ser uma Eva pelada e agora vamos fazer uma Eva de sutiã? Não teve quem fizesse ela tirar o sutiã. Ela não conta isso! (risos) Ela fala que era adolescente! Não era adolescente, na época. Ninguém ia forçar a barra, mas fica assim mesmo, fica por conta do negócio.
A gente levou ela até a água para testar o lugar fundo, para fazer o truque dela saindo da água, aí entrei com o Edmar primeiro, para ver e até arrumar um lugar para ela ficar. A direção de ator foi meio complicada.
Arnaldo Albuquerque, Edmar Oliveira e eu fizemos a decupagem para poder organizar os minutos, os enquadramentos: “isso aqui vai ser desse tamanho”. “Quanto tempo dura…” “Posição”. “Quadro”. “O cara vai entrar”. Ele já via a possibilidade de que a câmera não tinha zoom. Se fazia duas vezes, como ia ser para ele ver como movimentar a câmera, para alterar enquadramento. Como não tinha zoom, ele tinha que se deslocar (abre, fecha…). Ele era bom, não balançava pisando na areia. Eu avisava que o minuto estava acabando, eu fazia o gesto pra ele e cortava.
Além de vocês (Edmar, Torquato, Claudete, Noronha, Arnaldo), quem estava nas gravações?
O Gordinho, amigo do Geraldo Aciolly, professor da universidade na época, amigo do Noronha. A Lídia, irmã do Noronha, o João, meu irmão. Só tinham essas pessoas. Dava num Fusca (risos).
Fusca acochado!
Tinha também o carro do Geraldo Aciolly. Foi num lugar afastado, num dia de semana normal.
Esse filme vai ser feito?
Cara, eu quero fazer. A minha ideia era fazer uma animação dessas fotos, queria fazer em Super-8, quadro a quadro.
Nota dos editores (Bernardo Aurélio, Aristides Oliveira e Jaislan Monteiro).
No que diz respeito à fala de Carlos Galvão sobre Edwar Castelo Branco e sua pesquisa sobre o filme Adão e Eva do Paraíso ao Consumo, entendemos que seria oportuno trazer a opinião do professor, que, após ler a entrevista, nos cedeu a seguinte nota técnica:
‘‘Colegas me indagam sobre o meu ponto de vista acerca de contemporâneo de Torquato Neto cujas memórias colidem com informações constantes do livro Todos os dias de paupéria: Torquato Neto e a invenção da tropicália, o qual publiquei em 2005.
O ponto de vista que expresso, a respeito disso, tem três camadas, todas, por sua vez, necessariamente posicionadoras de pontos de vista distintos entre mim e o citado contemporâneo de Torquato. Basicamente, como ensinaria Michel de Certeau, tudo decorre do fato de que falamos de lugares distintos, o que necessariamente gangrena o meu dito e o seu dito.
Didaticamente, como forma de tornar maximamente compreensível o meu ponto de vista, anoto as referidas camadas que constituíram o meu ponto de vista. Em primeiro lugar, do ponto de vista metodológico, é preciso esclarecer que jamais fiz qualquer estudo sobre Adão e Eva do paraíso ao consumo.
A história do filme só me interessou dentro de um conjunto maior de documentos com os quais instaurei Torquato Neto como um sujeito-signo e, a partir dessa instauração, formulei a tese de que ele é um ótimo vestígio de seu tempo justamente pela guerrilha semântica que desenvolveu e em torno da qual, do meu ponto de vista, deu a ver o Brasil de seu tempo.
Nesse sentido, não releva para mim a história que o filme conta, mas o quanto a inserção de Torquato Neto nas peripécias criativas que resultaram no mesmo se coadunam ou se afastam da contra-linguagem torquateana; em segundo lugar, do ponto de vista da teoria, justamente por estar interessado num objeto mais amplo e não apenas no filme enquanto vestígio, desenvolvi operação historiográfica para a qual é indispensável separar memória e lembrança.
Do ponto de vista da corrente teórica que informou o meu trabalho, lembrança e memória não coincidem. Jamais poderão coincidir. Isto porque a lembrança tem aspectos pessoais e biológicos, estando circunscrita à esfera do indivíduo, enquanto a memória corresponde à elaboração discursiva da realidade, o que a submerge num campo de ressentimento.
Nesse sentido, é muito útil a leitura do livro já clássico organizado por Stella Bresciane e Márcia Naxara – Memória (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. No mesmo sentido, vale muitíssimo a pena a leitura do texto – esse já plenamente clássico – de Michel Foucault Language, Counter-memory, Practice.
Finalmente, do ponto de vista empírico, eu poderia me colocar à exaustiva audiência de todos os sujeitos históricos envolvidos na geração dos documentos históricos com os quais trabalhei. Mas não o fiz, por três razões. A um porque, como dito, jamais me interessou, especificamente, a história de Adão e Eva…
O meu interesse foi pela história do Brasil que poderia ser narrada a partir da contra-linguagem torquateana; a dois porque não operei com história oral, preferindo, principalmente, a memória hemerográfica; a três porque, do ponto de vista da teoria a partir da qual enxergava e sigo enxergando, os ressentimentos em torno da memória dos documentos tratados poderiam gerar um debate que não seria útil ao estudo.
Teresina, 27 de julho de 2019. Edwar Castelo Branco’’.
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