Entrevista realizada por Aristides Oliveira.
A história da cena punk em Teresina se confunde com a Obtus, considerada a banda mais influente do gênero por aqui. A primeira vez que assisti um show dos caras foi por volta de 1999, quando conheci Erivelto, antigo baixista do grupo. Tínhamos muitos assuntos em comum e foi a partir do dia que Erivelto me presenteou com seu instrumento entendi a importância da banda na minha vida. Desde então, busco acompanhar o que eles fazem, mesmo há 240 km de distância. Chakal Pedreira é a alma da banda, juntamente com a força sonora dos músicos mais intensos que conheci: Assis, Neto e Eduardo.
O volume 2 do Vozes do Punk dedica-se a mergulhar na memória do front-man, que não poupa o verbo e conta tudo sobre os caminhos traçados até aqui. Deixo com vocês o resultado do bate papo que rolou em julho de 2019, na casa dele, no calor de um sábado carregado de narrativas em construção…
Obtus se tornou maior do que os quatro integrantes.
Quando o rock começou a fazer parte da sua vida?
Eu comecei a ouvir som de 1985 pra cá. Eu tinha uns quinze anos de idade e aconteceram muitas coisas, mas hoje a gente está vivendo o reverso da moeda. Os meios de comunicação eram muito precários. Desse percurso pra cá, eu fui tomando gosto e as coisas foram acontecendo, mas como diz o Moro: “isso não vem ao caso” (risos). Em oitenta e cinco, o que nós tínhamos? Quando eu comecei a ouvir, eu soube através da televisão que ia ter o Rock In Rio. Nessa época, meu mundo era muito fechado com relação à indústria cultural, pode ser que o termo esteja errado. Era bem limitado, era bem essa relação com as “modinhas”, entre aspas. Não, modinhas mesmo! Na minha infância, a gente teve uma educação aqui em casa muito tradicional. Família mononuclear. A gente brincava dentro de casa. Era casa-escola-escola-casa. Meus irmãos (eu sou mais novo) ajudavam meu pai, que era pedreiro… Voltando ao foco… Respira (risos). Eu conheci o Heavy Metal, foi o primeiro contato que eu tive e algumas passagens do Punk através da televisão. Eu não tinha amigos que gostassem desse estilo. Eu nem sabia que esse estilo existia. Depois do Rock in Rio, que foi uma porta de entrada pra muita gente que não conhecia, já pra galera que escutava desde oitenta aqui em Teresina, criticavam a galera que tava “entrando”, mesmo porque naquela época a gente, até um certo tempo, tinha aquele lance de ser um grupo fechado, que se reunia para trocar ideias, informações. E como é que se dava isso? Como não tinha internet, nem Skype, eram as praças, o amigo que morava no mesmo bairro.
Depois que eu tive conhecimento fui ter contato aos poucos pela televisão, ou algum amigo que tinha fita e fui conhecendo o “amigo do amigo”. Fiz contato com a galera que tinha mais material, muito mais material do que eu. Aí eu fui para a Escola Técnica do Piauí, que é o IFPI (Instituito Federal do Piauí) e lá, como era o Centro, tive contato mais de perto com a galera que curtia Metal e outros estilos como o próprio rock da década de 80. A gente se reunia às vezes na casa de um amigo, produzia fanzines. Não tinha “Ctrl C + Crtl V”, era datilografado mesmo, na tesoura, na cola. A gente aproveitava e pegava um lugar, um espaço na casa de alguém que fosse mais liberal e ia para o quarto, se fechava e fazia. Naquela época não tinha contato com bebida, droga, não é querendo dar uma de santo, mas era uma questão de leitura. Eu sempre gostei de ler. Em casa a gente teve essa cultura de leitura, de ter contato com livros e tal. O contato com meus amigos foi também pela leitura de Bukowski, Dostoievsky entre outros. Quando eu comecei a ter contato com essa galera maior, eles tinham contato com gente de fora, através de viagem ou carta. Disco, fita K7, tudo que rolava na época. Mais fita K7, nem tanto disco por conta do valor. As fitas davam a possibilidade de você comprar uma virgem e copiar do amigo e gravava. A gente pegava a fita que o irmão comprava ou que o pai tinha, passava durex na “lingueta” que eles quebravam pra não gravar nada… vedava ali e gravava. Era o Do It Yourself. A gente tinha muito disso, de reinventar as coisas. Era uma lance bem artesanal. Às vezes a gente ia para ensaio de banda que tinha em Teresina como o Megahertz, Avalon, no [bairro] Mocambinho ou de uma banda que estava começando. Era muito difícil montar uma banda, porque além da quantidade de estúdio ser pouca e também não ter lugar para ensaiar. E com relação aos shows, a divulgação era complicada. Foi na base da colagem de cartaz. Basicamente era isso, sem falar que os instrumentos eram caros, até os de segunda mão. Primeiro eu fui conhecendo as publicações oficiais como a Rock Brigade, Metal, a Roling Stone não tinha contato na época, mas já rolava a revista Som Três. Quando eu fui para a Escola Técnica, eu conheci uns amigos e na época era comum cada um dar um apelido para si e escolhi “Chakal”. Não me pergunte o motivo. Foi o nome que veio a cabeça.
Éramos quatro a cinco amigos era engraçado porque eu fazia Mecânica. Passei dois anos e fui convidado a me retirar. Não pode ficar reprovado e eu fiquei. Nunca tinha acontecido comigo. Eu amoleci nos estudos. Eu vi um novo mundo e deixei de lado essa questão de focar nos estudos. O lance de trabalhar com mecânica talvez não fosse minha vibe, não sei. Eu me apaixonei pelo mundo do Rock, da arte, cultura, mas na época também tinha os racha e as rixas. O movimento era pouco, a gente praticamente se conhecia. Cada bairro, o Mocambinho, Saci, Dirceu e tinham as galeras desses bairros que se juntavam e a gente ia para o Centro e trocava Fanzine, disco, fita, informação. Ficava contente quando eu chegava e alguém dizia: “Rapaz, recebi uma carta da Europa”. Aquilo era uma coisa… um amigo recebeu uma carta da Grécia. Loucura total! Além das cartas, vinha nelas fotografias e materiais como demotape e releases. Até para quem pesquisa é uma complicação, porque na época o material era difícil. Naquele tempo, ter uma máquina fotográfica era complicado. Na minha turma de Mecânica, tinha uns amigos que eles gostavam muito do… isso em 87… eu acho… Legião Urbana, Capital Inicial e outros que conheciam um movimento que eu não conhecia, que era o Punk. Eles não eram punks, mas tinha um colega nosso que era do Rio [de Janeiro] que tinha um irmão que “se dizia” punk. Eu digo “se dizia” porque o irmão dele era “de onda” e cortou o cabelo moicano. Escutei pela primeira vez em fita o Ratos de Porão e o Lobotomia. Aqui em Teresina, o material de metal era mais vasto, tanto pela questão da idade – desde oitenta já tinha gente fazendo isso – tinha mais galera. O Punk tomei contato de forma bem… pela TV, onde o movimento Punk ganhou espaço na mídia, mais por conta das tretas…
Os shows já rolavam. Os lugares geralmente eram bares (na periferia). Já rolou em lugares que pertenciam aos órgãos públicos, como o Teatro 4 de Setembro – rolou uma confusão por conta de um quebra-quebra que teve. Detonaram os banheiros. A briga da gente sempre essa: “pessoal, vamos preservar”… até hoje isso se repete. Eu queria que o lado bom tivesse ficado e o lado ruim tivesse passado. Qual é a necessidade de você quebrar um sifon (sanitário)? Um espelho? Tudo bem que o cara tá cheio de adrenalina… Foi um show de Metal[1], de umas bandas de Fortaleza, não sei se foi a galera de lá, não sei se foi revanche, talvez alguém futuramente possa falar, mas foi fechado [o teatro] pra gente. Não tinha tanto espaço assim não. A gente fez shows no Teatro do Matadouro (Clube do Gari). Foi lá, em 89, salvo engano, 88/89 que eu entrei no Demolidor, uma banda de Death Metal. Antigamente os estilos eram definidinhos: Thrash, Black, Death, Power e Heavy Metal clássico. Eu não sou músico, mas você ouvindo percebia. Por exemplo, o Thrash é o açoite, a cavalgada, tipo Metallica. No caso do Death Metal, já tinham bandas como Death, um exemplo emblemático. Black Metal era o Venom. Tô citando bandas que caracterizam os Old School. Tinham outros estilos, como o Speed e foram se misturando.
Me admira muito as pessoas atualmente defenderem o que está acontecendo no país. Quem viveu na época, sabe como é difícil como a polícia tratava a gente, como a família tratava a gente, como as pessoas na rua tratavam a gente. Era o “maconheiro”, “bandido”. Se você estivesse voltando do show, levava baculejo da polícia. O cara ameaçava de cortar o teu cabelo com faca. Então eu me admiro muito hoje as pessoas que tem cabelo grande, tatuagem defender um sistema escroto desse.
Aristides: Me fala da tua trajetória como vocalista.
Chakal: Primeira banda que eu fiz parte foi o Demolidor, entre 88/89. Eu não tô lembrado direito a data. Essa questão de gostar de rock… tinha um programa na antiga [TV] Pioneira… como era o nome? Eu sei que a gente assistia e comentava com os amigos… Super Special o nome da porra do programa! Era um cara com camisa de botão[2] que falava sobre as bandas, coisa e tal… E era aquela época pós-Rock In Rio. Tinha muito a questão da Madonna… então apareciam vários grupos e bandas de Heavy Metal, na sessão Highway. O clipe que me marcou, na primeira vez que eu assisti um videoclipe foi o Flight of Icarus (1983), do Iron Maiden. Eu falo assim porque eu não tinha acesso, Iron Man ao vivo, do Black Sabbath e o Judas Preist com Rapid Fire (1980).
Eu senti uma coisa totalmente diferente, aquele fogo que sobe de dentro, que sai de dentro para fora. Eu não sabia se eu chutava, agitava… Eu assisti nessa sala que estou. A televisão sempre ficou aqui. Tem umas paradas comigo que eu acho legal assim e que às vezes eu agradeço. Algumas coisas que eu queria que acontecessem na minha vida, acontecem. Minha vida tá acabando, como dizia lá o… não sei se é o Kierkegaard: “A partir de que o homem nasce, tem idade suficiente para morrer”. Aquilo pra mim era uma coisa totalmente diferente, os clipes. Eu disse esses três porque foi o momento que eu me percebi. Eu tava sozinho na sala, me percebi gostando daquilo. Quando eu era pequeno, eu sou pequeno (risos) eu gostava do Batman e Robin, Super Homem e eu brincava sozinho no quintal imitando super herói, coisa de infância. Na adolescência foi esse lance da música. A música me pegou assim e veio… poxa um dia… nunca pensei isso, mas inconscientemente eu devo ter pensado… deve ser massa ser vocalista de uma banda! Quem sabe um dia… pra mim era uma coisa impossível, distante da minha realidade naquele momento. Eu estudava no Eurípedes Aguiar em 86, mais ou menos isso, não tô com meu currículo aqui não, mas era mais ou menos esse período. Eu nasci em 70. Quando eu vi [os clipes] me tocou muito.
Eu vi esse lance de banda e conheci pela primeira vez a Rock Brigade aí comecei a saber que o movimento era maior, que tinha gente que ouvia som, tinha uma cena em São Paulo… Se abriu um novo mundo pra mim.
Naquela época era complicado. Você entrava no quarto e só tinha o armário, rede ou a cama, janela, não tinha televisão, computador, telefone. Poucas casas tinham telefone fixo. Quando você saia de casa, pronto! Perdeu o contato. Se não ligasse do orelhão ninguém sabia onde você tava. Para quem gostava de ler, o que informava a gente era a biblioteca. Ou você tinha a sorte de ter um amigo que gostasse de ler, descolado. E eu fui conhecendo essas pessoas e elas foram me passando material.
O Demolidor era um quarteto, uma banda de Death. Cantava em inglês e por conta do baterista (Sandro) perguntou se e não me interessaria em substituir o vocalista que tinha saído. Eles tinham acabado de chegar da Paraíba e eu fiquei naquela: “topo na hora! Vamos lá.” Marcamos os ensaios, a fase do teste, a questão do vocal e eu consegui fazer um gutural. Não fumava, não bebia (risos). Era calado, aluno quieto. Era mais quieto que menino cagado (risos). O vocal saiu bom, a banda era bem na linha Death/Grind, tipo Napalm Death. As letras não eram satanistas, era letras que falavam do psicológico, também não eram panfletárias como o punk, mas falavam de questões sociais. Tinha uma letra que era Eutanásia, letra do Sandro. Tinha letra falando de AIDS, na época era o grande boom. Também falávamos no cotidiano. A banda tinha suas composições. Eu acredito que em 89 foi meu primeiro show. A galera gostou bastante. Acredito que passei de dois a três anos no Demolidor, a gente fez show no Teatro do Matadouro, no [bairro] São João. E assim era a peregrinação das bandas, onde fui tendo contato com a galera.
Comecei a adotar visual nos shows. Bracelete com prego, a gente que fazia mesmo. Não tinha hippie vendendo e fazíamos as bijuterias. Era Old School: jaqueta, patche, calça rasgada, coturno e essa vontade de botar a raiva pra fora. Na época, a gente não sabia o que era stress, mas sabia o que era raiva. Vontade de falar, gritar e expor. Tinham bandas que falavam de satanismo, mas em Teresina predominou o Thrash Metal. Cantar em banda de Death Metal pra mim foi um ganho, no sentido de que o Demolidor me possibilitou ter contato com letras sociais, em vez de ficar falando apenas de Satanismo. Me perdoem, não estou dizendo que todas as bandas eram assim, mas eu tô falando de mim. O que se fala de “Inferno”, na verdade são pessoas que fazem guerras, como War Pigs, do Black Sabbath. Não tá falando de “Demônio”, “Cão”, “Chifre”. Tô falando de pessoas que têm poder que incitam as lutas, a guerrear, destruir, mas na minha cabeça, na minha adolescência, inferno era inferno mesmo, o “Diabo”, “Caldeirão” e tudo mais.
Eu terminei tendo que sair do Demolidor. A banda continuou com outros vocalistas. Eu acho que sai no fim de 89. Pouco tempo depois… Seria bom se eu tivesse dados precisos aqui, mas eu tô indo pela memória. Entrei no Verme Noise a convite de amigos. Nas bandas que já participei, cada um tinha uma personalidade e eu sou o mais falador. Eu tenho essa verborragia dentro de mim. Eu queria que ela funcionasse em outros momentos, mas… Sempre tive uma queda por falar e escrever. Acho que é por isso que até hoje me aturaram como front-man. Pra mim é um exercício de catarse.
Na década de 90, a cena tinha um atrito foda. Não tô falando aqui só de Teresina, mas a nível praticamente global entre o punk e os skinheads, “carecas”.
Um belo dia meu amigo Vidal (baixista), que morava aqui perto (hoje ele é do Exército) chegou pra mim e fez a proposta [Ricardo, guitarrista. Vale destacar a entrada posterior do Marcelo, responsável por “dar uma pegada mais thrash” para a banda]. A banda já ensaiava, mas precisava de alguém. “Porra, tô caindo de paraquedas. Tomara que dê certo”. A gente começou a ensaiar na casa do baterista (Bernardo). A gente tinha a mesma vibe, vamos mandar todo mundo à merda. Tocar cover sim, mas a ideia era ser uma banda autoral, assim como o Demolidor. Nada contra banda cover, mas todas as bandas que participei são autorais. O Verme Noise era um quarteto, a gente tocou final de 89/90 até 94 se não me engano, quando sai da banda. Quando eu sai a banda acabou. Isso foi por vários motivos, primeiro porque ela foi se modificando, não o som, mas os integrantes. A gente fazia um estilo mesclado com Metal, crossover. Éramos limitados como músicos e rolou o convite. Eu ensaiei, os meninos acharam o vocal bacana, urrado, gutural, as letras eram cantadas em português e como banda, montamos um release. A ideia era o protesto. Falar da corrupção, fome… expor. Viemos aqui para acordar, incomodar. Não veio para alegrar, como era a mensagem do Punk.
A gente já conhecia bandas como Delinquentes, Karne Krua (Aracajú), Ramones, Titãs (com o disco Cabeça Dinossauro) e outra banda que influenciou a gente foi o Câmbio Negro, de Recife. A gente tinha contato através de cartas, o Vidal era o que mais se correspondia. A convivência da banda era muito boa. A única viagem que a gente fez foi a Parnaíba (PI) e o decorrer da banda a gente fez muitos amigos [Durante a conversa off, Chakal lembrou que a banda tocou em Piripiri. A memória dele duvida se foi em Floriano ou Picos], tanto do lado do Metal como do HC (hard core). Foi o tempo que eu me aproximei mais da política, no sentido das relações de poder. Participava de manifestações contra o aumento da passagem de ônibus, nos tempos da Universidade. Invadimos Reitoria. Era o tempo que as pessoas tinham vergonha na cara e iam e quebravam mesmo! “Vergonha na cara” no sentido de se indignar. Não tô condenando ninguém hoje não, mas as pessoas se indignavam e não eram tempos fáceis. Hoje as pessoas falam em Direitos Humanos, mas naquela época, a gente precisava demais dos Direitos Humanos, porque era baculejo, ameaça, se você tinha tatuagem, era um “drogado em potencial”. Rolava um lance legal entre a gente, porque tinha a galera que fumava maconha, eram poucos. A galera, quando queria fumar, saia da roda dos amigos pra evitar que tivesse problemas, não por conta dele usar, mas de colocar a gente numa situação de “sujar o movimento”, no sentido de atrapalhar as ações. É complicado eu explicar isso para o pessoal de hoje, mas era assim: éramos poucos, a gente tinha briga em casa, era estudante, não se sustentava, os pais da gente eram pobres. Tinha uma televisão, tomava café, almoço, jantava, merendava e cada um tinha a sua realidade, mas tinha uma ideia coletiva de que a gente fazia parte de um movimento.
Pra mim, “movimento” era a gente ouvir praticamente o mesmo estilo de música, se reunia no mesmo lugar para conversar sobre assuntos que a gente gostava. Não declamava poesia, mas gostava de música. Levava as cartas que a gente recebia. Era alegria quando o correio chegava. Não dava pra ser digital-virtual, tinha que ter disco, papel, cola, máquina de datilografar, alguém que tirasse xerox, pregar cartaz de madrugada, fazer corre com pastinha debaixo do braço, quem organizava show. Nem todo mundo era careta naquela época, tinham pessoas que apoiavam os shows. E o Verme Noise viveu esse período. Eu cantava na tora, o baterista foi aprendendo, o guitarrista estava na linha do do it yourself. Não tinha tutorial na internet. Primeiro ia para o violão, depois para guitarra. A Verminoise saiu numa publicação na [revista] Rock Brigade (1992) com a demotape. A gente mandou uma fitinha mal gravada. O cara faz o comentário dizendo “que tem um milhão de músicas lá” (risos). Teve gente com dor de cotovelo (risos). Teve uma boa aceitação. A banda era bem acolhida, pelo menos aparentemente.
Um belo dia eu tô em casa… gostava de tomar uma… gostava de sair. Na época do Verme, em 92 conheci um grupo de amigos na escola. Foi justamente em 92 que eu passei no vestibular para História. Tinha um grupo que a gente gostava de sair, não vou chamar de “balada” porque é coisa de playboy (risos), mas a gente ia para as festas americanas né?! Beber e comer e ir para um sítio de um colega da gente. Tinha uma galera que ouvia punk, passando pelo pop, que se de desavergonhou, mas na época era de vergonha. Nem falei das mulheres no movimento, eu acho que merece um estudo no sentido de pegar as pessoas que participaram e chegaram até a tocar e dar voz a essas pessoas.
Nos anos 80, andar com um roqueiro era igual andar com um doido da Colônia. Liso, cabeludo, feio. Tinha uns caba que era igual a você! (risos – Nota: o Chakal quis dizer que sou um entrevistador bonito, mas há controvérsias…) Os caba igual a mim, a tela já não ajudava. Eu tenho mania de me justificar, mas é porque estamos numa época que precisa ficar se policiando. A gente era uns freak, esquisitões. Enquanto o pessoal queria o Mastruz com Leite, um forrozão pé de serra. A gente era aquela galera que ia para a praça tomar cachaça, levar gravador de rolo e ficar escutando música que ninguém entendia porra nenhuma. Retrato meio bizarro, mas que funcionava assim. Só macho, tudo de preto. Vira e mexe, quem encostava não era mulher, era policial (risos) e mendigo pedindo dose. Tinha umas amigas que a gente considerava e considera gente boa, que se tornaram namoradas e esposas da gente. Com o passar do tempo o espaço foi se abrindo. Tem gente que diz que o rock é machista, mas eu percebo que o rock deu a vibe pra essa outra faceta que está surgindo agora.
Rebobinando: tô em casa e a frase do momento era “vamo tomar uma!’ Chegou um colega, meu amigo Pardal, amigo de andança, viagem e birita, principalmente. Ele falou: “Chakal, tem uma galera que tem uma banda, a Obtus. Estão começando, tão lá na Sinhá [Bar], eles te conhecem. Tu não tá afim de dar uma sacada não?” Talvez ele não tenha dito nada do que eu disse agora, mas foi tipo assim. Cheguei lá tava o Neto, guitarrista, Assis, o baterista, e o Erivelto (baixista). Quando eu cheguei os cumprimentei: “porra, legal conhecer vocês”. O pessoal já me conhecia. Nessa época tinha o Terra Podre, que era uma banda de hardcore também que fez uma dobradinha. No tempo do Verminoise tinha uma dobradinha com o Farenheit. Geralmente quando tocava um, tocava o outro. Não necessariamente que a gente combinasse, mas como a gente era banda que tava começando… Eu me sentei, os meninos falaram, perguntaram. Estávamos em 96. A gente estava num ambiente familiar. Me falaram de um show que eles iam tocar pela primeira vez no bar Roots, antigo Cabaré da Pretinha. Me ofereci pra cantar uns covers. Perguntei se poderia e eles aceitaram. Deu certo e rolou esse primeiro show. Esse show eu não me lembro direito, acho que foi em setembro de 96, com a banda Terror-Terror (São Luís), que o Terra Podre trouxe. Eles já estavam em atividade. Assim foram acontecendo as coisas, a banda foi tocando. Timidamente foram aparecendo os shows em Teresina. Tocamos com algumas bandas de metal e fomos criando um público. Em 90 teve o boom do grunge, mas o estilo preferido da galera era Ratos de Porão, Garotos Podres. E eu entrei com minhas influências e os meninos ouviam muito Ramones, tanto é que no começo eles tiravam cover do Nirvana e outras bandas.
Com o passar do tempo, a gente foi ensaiando na casa do baterista. A gente não tinha grana para ensaiar em estúdio, então ensaiava onde deixavam a gente ensaiar. A família do Assis foi muito compreensiva e sempre receptiva. Tinha esse lado família, bem recebido, bem tratado, Fomos ensaiando e compondo músicas novas. Fazíamos muitos shows, mas tinha período que a gente praticamente não tocou. Fez dois shows no ano… mas teve um período que a coisa foi andando e veio a questão de tocar fora. Partiu do pessoal do Terra Podre fazer um evento chamado Chapada Rock. Pelo menos uma vez no ano a gente juntava nossas economias e se organizava para trazer uma banda de fora pra tocar. Começou o contato com as bandas de São Luís, como a Tanatron, Terror-Terror veio primeiro. O Káfila deu uma força nesse sentido de chamar a gente pra tocar com bandas grandes, como o DFC (Brasília-DF) na época. O principal local que fazíamos evento era o [bar] Elis Regina. O espaço era cuidado pelo João Vasconcelos e acabou virando espaço para outras bandas e quase todo fim de semana tinha show: Scrok, Monasteruim e outros bandas, bem como outros espaços foram surgindo para as bandas tocarem.
Quais os percursos para produzir a primeira Demo da Obtus?
A gente tinha um material gravado de ensaio, mas a gente só veio gravar mesmo em 2002 (entre setembro e outubro) o Sangue no Olho em estúdio, foram seis músicas e foi o Eduardo (baixista) que tomou a frente. A gente já tinha tocado fora de Teresina. Se não me engano, nosso primeiro show foi em São Luís no bar do Bento. Não foi um show que rendeu como a gente queria, mas foi um bom show.
A foto da capa foi tirada pelo Assis (baterista) e era um galo que tá preso porque era de rinha. E aí foi nosso primeiro momento. A gente tocou no Encontro Nacional de História e levou esse material pra divulgar lá. Em 2003, a gente finalizou um vídeo clipe da música “Sangue no Olho” e pela primeira vez na vida a banda ganhou dois prêmios no IX FESTIVIDEO (Teresina-PI): primeiro lugar na categoria experimental e o prêmio de melhor vídeo piauiense.
Recebemos uma grana e investimos na banda. Foi muito bom para o ego da gente. Cachorro que vive levando chute, que pela primeira vez come uma carnezinha é bom né… é bom! (risos) A gente recebeu dinheiro pela premiação, não foi “tapinha nas costas”. Foi o Eduardo [Crispim] que se empenhou nessa produção e em 2004 fizemos o “Tiros na Noite”, que também é uma música do CD. Começamos a tocar em eventos grandes. A primeira vez que a gente tocou no “Boca da Noite” (Teresina-PI) fizemos duas horas de show. Só tocava meia hora e foi do caralho porque foi um dia que lotou. Tinha gente pra caralho. Tocamos em Picos (PI), Floriano (PI), Campo Maior (PI), Parnaíba (PI), Demerval Lobão (PI), Fortaleza (CE), São Luís (MA). A gente fez uma turnê uns 3 anos atrás pra Recife (PE), João Pessoa (PB) e Natal (RN). Posteriormente fizemos um show em Belém (PA), Castanhal (PA) e Aninindeua (PA).
Vale lembrar que nós entramos em duas coletâneas lançadas pela Microfonia (PB). Tributo ao Câmbio Negro (PE), que foi uma banda dos anos 80 que influenciou muitas bandas de Hard Core. Participamos com a versão da música “A Ordem” e o outro projeto foi o Ponto de Ignição, também pela Microfonia, com as canções Ver Ouvir Calar, Horror Contra Todos, Escória, Lider Comunitário e as Forças Maiores e Campo Minado. Estamos envolvidos na participação de uma nova coletânea que seria um tributo à banda Rotten Flies (PB). Ver – Ouvir – Calar foi um CD produzido em 2014 através da ajuda de amigos e amigas que contribuíram com financiamento colaborativo.
“Só os piores conseguem fazer o rock malvado”.
O que a Obtus representa pra ti?
A banda virou uma espécie de família. Um casamento. Eu posso até dizer sem medo de ser feliz. Somos uma das poucas bandas, quase a única a ter praticamente a mesma formação desde o começo. O Eduardo entrou em 2000, o Guilherme também entrou, não lembro o ano, mas a formação básica dos quatro permaneceu. Vivemos muitas histórias juntos, até antes da Obtus e depois que entrei na banda. Eu passei por três bandas e tocar em banda é química. Tem dois elementos que entram em banda: um é relacionamento e o outro é dinheiro. Tem banda que em 1 ano grava CD e vai pra televisão e acaba. Tem banda que toca no exterior e acaba. E aí eu faço um pergunta nietzschiana: “o que faz da felicidade, felicidade?” Será que é uma felicidade vivida uma vez intensamente, ou aquela felicidade que você vai vivendo aos poucos? Se eu te disser que nós temos um relacionamento tipo “Miga” é mentira. Às vezes a gente se estressa com a gente mesmo. Se desentende, às vezes a gente conta os problemas pessoais para o outro, se abre. Então a banda representa pra mim uma segunda família.
Bicho, e esse momento atual é barra pesada porque muita gente sumiu, muita gente se foi. Muita gente boa, mas muita gente ruim ficou. Pra mim, a Obtus se tornou maior do que os quatro integrantes. Ela tem uma dimensão muito maior porque às vezes as pessoas falam comigo, e elas não falam com o Athayde Pedreira do Nascimento, elas falam com o Chakal, da Obtus. Houve um tempo que eu dei autógrafo e era vontade da pessoa que eu colocasse o nome lá. Eu tive tanta vontade de ser um vocalista de banda. Quando a gente sobe no palco, a gente canta, grita, xinga e faz aquilo que a gente quer fazer. Não tem script. Não é glamour, é aquele tempo que você passa não sei quantas horas apertado dentro de um carro pra chegar numa cidade pra tocar! Às vezes as coisas se tornam maiores do que você participa.
No momento atual, onde estamos vivendo o Brasil Inverso, continuamos tendo respeito de pessoas que sabem o que a gente fala e mostra. A gente combate um sistema de opressão, babaquice, que é anti-pensamento, aproveitador. Não precisa dizer de que lado nós estamos, basta olhar as letras.
Em tempos de bolsonarismo, vocês lançaram o clipe Inominável…
O clipe foi gravado quando estavam se aproximando as eleições para presidente em 2018. A ideia de gravar veio através do nosso baterista (Assis). Fizemos em praticamente uma semana. E a música faz parte do single Nokku (2013).
A gente conseguiu um bando de anti-adeptos. Tirou do buraco um monte de gente que se dizia, não mostrava ser o que era. E é assim mesmo, são escrotos! Defendem a tortura, pena de morte. Sem meias palavras é isso. Ter raiva de preto, pobre. Não tô dizendo que a gente é uma banda que levanta uma bandeira. Somos uma banda que toca hardcore. Somos quatro caras com pensamentos diferentes, mas que se afina em determinado ponto quando chega na banda. É meter bala! A gente inventou a banda pra gritar, xingar, meter o dedo na cara e dizer: você é um escroto e todo sabe o que você faz! Você é um canalha! Um maldito desgraçado! E é isso que é a banda. E é disso que me orgulho da Obtus. E é isso que a banda representa pra quem realmente gosta da gente. Não é xinga por xingar não, é porque a gente sabe da putaria, de tudo! Todo mundo sabe!
Se eu sou a favor que diminua a pobreza, de escola, se eu sou a favor de que esses bandidos de terno e gravata parem de ganhar o que eles ganham. Se é pra ser “esquerdopata” por causa disso, que seja! Se é pra ser “poser”, eu sou “poser”. Tenho vergonha de ver pessoas que cresceram ouvindo rock and roll defendendo essa porra.
A Obtus é isso e pode ser muito mais!
Aristides Oliveira é professor, pesquisador independente e Editor da Acrobata.
[1] Ainda sobre o Teatro 4 de Setembro.
[2] Serginho Café.