João Paulo é um amigo. Estou focado em entrevistar as pessoas ao meu redor para exercitar novos modos de escuta. Essa entrevista é a celebração de 10 anos de amizade, pois João Paulo me apresentou o universo indígena e me deu ferramentas para me posicionar em torno de questões importantes sobre o tema. Eu e João Paulo conversamos muito sobre o assunto, além de outros desafios compartilhados que a sala de aula nos coloca. Doutor em História Social pela Unicamp. Professor de História do Instituto Federal do Piauí em Uruçuí e do Mestrado Profissional em Ensino de História – PROFHISTÓRIA – da Universidade Estadual do Piauí em Parnaíba. É cearense e come cuscuz diariamente.
por Aristides Oliveira
A partir de que experiência você decidiu estudar os indígenas no Brasil?
Desde pequeno gostava de estudar culturas diferentes. Ganhei um atlas do meu tio-avô em uma viagem a Teresina com nove anos e fiquei tão fascinado que decorei o nome de todos os países do mundo. Fui amadurecendo e percebendo melhor a cara da minha cidade, Fortaleza: do nome dos bairros (como Parangaba – em cuja igreja me batizei –, Sapiranga, Itaoca, Passaré, Cambeba, Mondubim, Maraponga, Jacarecanga, Mucuripe, Papicu, Coaçu, Pirambu, Tauape, Paupina, Sabiaguaba…) aos fenótipos comuns da população mais pobre, tudo era muito indígena. Além disso, desde sempre passava férias e fins de semana no Icaraí, no município de Caucaia e onde meus pais tem uma casa de praia. No caminho passávamos pela aldeia da ponte dos índios Tapeba. Vê-los, tão próximos e distantes, tão semelhantes e diferentes, me fez despertar a curiosidade sobre a história dessas pessoas.
Você acredita que o espaço acadêmico está mais aberto para a compreensão das questões indígenas ou estamos engatinhando nesse sentido?
O distanciamento, o desconhecimento e a discriminação ainda existem. Tem uma trajetória longa a ser percorrida para a plena efetivação da lei 11.645, que obriga o estudo das temáticas afro-brasileiras, africanas e indígenas nas escolas, justamente porque a formação dos professores ainda tá longe de ser adequada. No caso do curso de História, ainda é difícil fazer com que os índios apareçam como protagonistas e agentes nos diferentes momentos da história do Brasil e no conteúdo das disciplinas que não sejam de “história indígena” (até ela enfrenta resistências em alguns departamentos). É preciso que se compreenda que, simplesmente, não existe história do Brasil sem índias e índios, inclusive nos períodos imperiais e republicanos.
Felizmente, a academia está bem mais aberta ao tema, às perspectivas indígenas e aos movimentos contemporâneos do que era há quinze anos atrás, quando entrei na graduação. No tempo do meu mestrado, em 2010, era consenso na universidade que os índios haviam sido exterminados no Piauí, e hoje os povos indígenas do estado já são convidados para eventos acadêmicos. Há muito mais produções, grupos de estudos e pesquisas e fontes de informação. A luta inicialmente de poucas pessoas rendeu bons frutos que tendem a se multiplicar.
No seu percurso de mestrado e doutorado, publicou duas obras voltadas para a temática no Ceará: “Disciplina e Invenção” (EDUFPI, 2015) e “Na lei e na guerra: políticas indígenas e indigenistas no Ceará” (EDUFPI, 2018) abordando o recorte temporal de 1798 a 1845). O que os leitores/leitoras podem encontrar nestes trabalhos para compreender o debate histórico sobre os indígenas no Brasil? Qual a diferença principal entre uma publicação e outra?
O foco comum das abordagens são as políticas indígenas. Não falo só das que eram voltadas para eles (indigenistas), mas as deles! Os índios tinham pensamento político e atuavam politicamente a partir de seus interesses, o que ainda surpreende muitas pessoas que corriqueiramente perguntam se “índio tem política?”. No primeiro livro analiso as ações indigenistas do governo de Manuel Ignácio de Sampaio no Ceará – fortemente voltadas para o controle da população, civilização dos índios e sua cooptação como força militar e mão de obra – e as heterogêneas atuações indígenas, com fugas e resistências, mas também negociações e movimentações político-administrativas.
No segundo, ampliei o contexto analisado para desde a crise do Antigo Regime até a formação do Estado nacional. A linha condutora foi a vigência no século XIX da lei setecentista do Diretório dos Índios, criada no tempo do marquês de Pombal e que visava a integração indígena à sociedade colonial por meio do trabalho forçado remunerado e da mudança dos costumes.
Em contrapartida, também garantia aos índios liberdade, propriedade, cargos políticos e igualdade aos demais súditos, apesar de considerá-los ainda incapazes, o que os obrigava a serem tutelados por um diretor. Nesse último estudo, priorizei as políticas indígenas e indigenistas no Ceará nos âmbitos legal e militar, e de que maneira se relacionaram em situações como o fim do período colonial, a independência do Brasil e no ciclo de revoltas liberais, indo até a Balaiada, que também atingiu o território cearense.
É muito comum a gente assistir novelas/filmes/séries abordando negros e indígenas de maneira estereotipada, sem aprofundamento nas suas particularidades. Como você explica a forma como a mídia retrata esses grupos? Fico lembrando o episódio em que a Xuxa “dança” com os índios na TV…
Penso que a mídia não quer se dar ao trabalho de aprofundar a compreensão sobre as populações tradicionais. Parece ser mais fácil falar “do índio”, como só se houvesse “um”, e da mesma forma “do negro”. O caso clássico da presença dos caciques xavante Celestino Tsorino e José Luís Tsereté no “Xou da Xuxa” em 1989 – em que a apresentadora, “fantasiada” do que era aproximadamente um indígena norte-americano, cantava um mau-português sobre “brincar de índio”, como se “ser indígena” fosse apenas uma diversão – é muito representativo porque ali parecia interessar mais a performance lúdico-pasteurizada sobre “o índio” (e poderia ser qualquer um) do que as vozes indígenas, suas particularidades, perspectivas, demandas.
Por outro lado, durante esse contexto imediatamente posterior à promulgação da Constituição de 1988 e luta pela consolidação de direitos recém garantidos, os xavantes e outros grupos não abriam mão de ocupar esses espaços na busca de visibilidade das suas causas, mesmo que em condições de estereotipagem e infantilização das imagens indígenas. Até aí podemos perceber o protagonismo dos índios.
Reverberar vozes indígenas é muito perigoso para diversos grupos econômicos com quem as grandes mídias têm rabo preso e que preferem índios silenciosos, colaboracionistas, carnavalescos e, se possível, em processo de “desindianização”. É bem mais trabalhoso e inconveniente falar que “o índio” e “o negro” não existem, e sim uma infinidade de povos, tradições, percepções e expectativas distintas; que há povos indígenas em zonas rurais e urbanas, em todas as profissões, em todas as categorias de atuação política e que evidentemente não precisam de tutela; que existem processos de emergência étnica, e que os povos indígenas no Nordeste têm histórias, particularidades e até fenótipos bem distantes dos estereótipos fáceis com os quais estamos acostumados.
Que avanços (ou não) você aponta sobre o modo que os indígenas são abordados nos livros de História do ensino fundamental/médio? Ainda é preciso pintar nossos alunos/alunas para dançar no pátio dia 19 de abril?
A escola tem que ser o principal espaço de quebra da sequência geracional que ensinou sobre os índios para os não-indígenas com formas pasteurizadas, reduzidas a um apego idílico à natureza e esteticamente semelhantes ao “índio do Pica-pau”. Os livros didáticos melhoraram muito de uns anos pra cá, mas as deficiências ainda são enormes, já que falar de diversidade étnica não é lá muito lucrativo.
Diante disso, a comunidade escolar tem a obrigação de utilizar os compêndios de forma crítica, se valer de outras ferramentas didáticas e, nas ações relacionadas aos povos indígenas (e não a “o índio”, no singular), propor atividades que aproximem @s estudantes das pessoas reais, em suas aldeias, bairros e comunidades, e abrindo o espaço escolar para que as vozes indígenas ecoem suas multiplicidades, particularidades, perspectivas e demandas.
É comum a gente ouvir a expressão que os indígenas foram “exterminados” nos tempos da colonização no Brasil. Até que ponto é necessário revisar essa afirmação?
Rever o “extermínio” é urgente, especialmente em lugares como o Piauí. Não se trata de negar o massacre e a violência, que devem ser sempre denunciados como marca de nossa formação: somos também filhos e filhas de escravizações, deslocamentos forçados, estupros e genocídios.
No entanto, “extermínio” ou “dizimação” – comumente associados ao fim absoluto físico ou étnico de um grupo ou de todos os índios de determinada região – foram utilizados politicamente desde, pelo menos, o século XIX para destruir organizações sociais e comunitárias indígenas e desmantelar suas prerrogativas, apropriar-se de suas terras e controlá-los como mão de obra.
Para fugir da perseguição, muitos grupos silenciaram suas identidades para o mundo exterior, e, principalmente a partir da Constituição de 1988, vêm passando pelo que chamamos de “emergência étnica”, quando publicamente se assumem indígenas e demandam direitos específicos à saúde, à educação e à terra. Como resultado, muitos dados como “extintos” aparecem reivindicando o reconhecimento de sua existência.
O extermínio dos índios no Piauí, mais decretado no papel do que ocorrido na realidade, não passa de uma farsa a cada dia mais desmascarada pelo próprio movimento indígena do estado, composto pelos tabajara e tapuio de Piripiri e Lagoa de São Francisco, pelos gueguê do Sangue de Uruçuí, pelos kariri de Queimada Nova, pelos gamela de Baixa Grande do Ribeiro, Bom Jesus, Santa Filomena e Currais e tantos outros grupos étnicos que ainda podem aparecer. Como me disse dona Raimunda, indígena gueguê do Sangue, quando a perguntei se os índios no Piauí haviam sido exterminados: “num pode, porque eu tô viva”!
Atualmente é visível o destaque na mídia, eventos literários e no campo editorial a presença de pensadores/pensadoras indígenas se posicionando e construindo pensamento. Como você analisa este protagonismo?
É fundamental porque se trata de índi@s ocupando mais lugares de atuação para difundir suas próprias perspectivas, tradições, formas de ver a si e ao mundo, como acontece nas universidades. Os povos indígenas precisam ser conhecidos, e, para isso, devemos escutá-los e que sejam criados espaços para reverberar suas vozes plurais.
Necessita-se cautela com, pelo menos, duas coisas. Em primeiro lugar, a ideia proferida por um(a) autor(a) indígena é a ótica de um indivíduo, que não necessariamente fala por sua comunidade, pelo movimento e certamente não representa toda a população indígena. Além disso, é preciso atenção para muitas figuras que, sem nenhuma ligação com o povo supostamente de origem ou mesmo sem seu reconhecimento, se utilizam do etnônimo nos seus nomes com fins mercadológicos.
Aquela pessoa que atua diariamente na comunidade fala muito melhor sobre ela do que um(a) literat@ renomad@ ostentando um cocar. Já vi ocorrer muitas vezes o absurdo de algumas dessas personalidades serem referenciadas enquanto lideranças, quando nem sequer pisam nas aldeias.
No Brazil (com Z) de Bolsonaro, o que dizer da política devastadora do estimado Ministro Sales? Qual sua posição sobre a atuação da FUNAI no Brazil distópico?
O atual governo brasileiro é genocida. Bolsonaro, um idólatra de torturadores, é um genocida. Não há termo melhor para classificá-lo. Já havia a promessa de interromper por completo as demarcações de terra ainda na campanha presidencial. Eleito, nomeou um ministro condenado por improbidade e comprometido com os lucros de latifundiários e mineradores e com a exploração devastadora das reservas ambientais e indígenas.
Nesse projeto, o movimento indígena, a conservação das áreas de proteção e a demarcação de novos territórios não passam de entraves que precisam ser atropelados pela boiada a qualquer custo, mesmo que de forma infralegal durante uma pandemia. Como resultado, os mecanismos de proteção às populações indígenas nas reservas foram desmantelados, ocasionando assassinatos e contaminações provocados por invasores.
Já a FUNAI, sucateada desde o governo Temer, é cada vez menos dos índios. Sob as asas da tresloucada e mentirosa Damares, liderada por um presidente de conhecida trajetória anti-indígena, com um missionário coordenando o órgão para povos isolados, não protege as populações quando preciso e não fornece os alimentos e materiais de saúde demandados, apesar de contar com funcionári@s de carreira seriamente dedicados às causas das comunidades.
Neste governo, a FUNAI é pensada como uma instituição em prol do objetivo de “integrar” os índios, como se suas culturas “ainda não fossem evoluídas como a nossa”. Parece que retrocedemos aos tempos do império, quando índio bom era índio “misturado na massa geral da população” e desfeito de suas características étnicas e comunitárias. Ou morto.
O que anda escrevendo? O que vem por aí aos interessados/interessadas no debate indígena?
Estou muito interessado por uma das criações mais inusitadas do Diretório dos Índios. Pela lei, as antigas aldeias religiosas foram extintas e algumas transformadas em “vilas de índios”, contanto com câmaras municipais e cargos reservados a lideranças indígenas. É um tema bastante surpreendente para a maioria das pessoas que nunca ouviu falar de “índios vereadores” na passagem dos períodos colonial e imperial.
Estudo a atuação política e institucional das lideranças nas câmaras das vilas de índios no Ceará – que eram Soure (atual Caucaia), Arronches (bairro da Parangaba, em Fortaleza), Messejana (bairro em Fortaleza), Monte-mor Novo (Baturité) e Vila Viçosa (Viçosa do Ceará) –, suas produções escritas por meio das atas de vereação e requerimentos, as transformações de sua cultura política com o advento do liberalismo e o fim dessas instituições nos primeiros anos do Brasil independente.
Foram abolidas por obra das autoridades imperiais e provinciais que ambicionavam suas terras, inconvenientemente protegidas pelos vereadores indígenas por meios das câmaras municipais. Estudá-las comprova que não existe história política e institucional do Brasil sem os índios, que a formação do nosso Estado nação foi construída sob a subalternização dessas pessoas, que nunca prestamos conta com nosso passado e que qualquer semelhança com o tempo presente não é mera coincidência.
[Participação: Jaislan Monteiro] Qual a leitura que você faz sobre a obra do Gilberto Freyre sobre o papel do indígena na constituição do povo e da identidade brasileira? Gilberto é pioneiro nesse sentido ou carrega um perspectiva reducionista sobre essa questão?
Em “Casa-Grande e Senzala”, sua obra mais conhecida, Gilberto Freire se refere aos indígenas como “crianças grandes”. É muito controverso que tantas pessoas ligadas a movimentos e a estudos étnicos, que o consideram uma figura importante para o reconhecimento da presença africana e afro-descendente na formação do Brasil, não se atentem para essa passagem. Em Freire, os povos indígenas são abertamente negligenciados, como se sua atuação social, cultural e política nunca tivesse tido importância.
No entanto, essa perspectiva é muito antiga: o grande Varnhagen, no final do século XIX, já falava a mesma coisa para defender sua ideia de que o melhor a fazer com os índios era destruí-los, e durante todo o período colonial foram considerados indolentes, inconstantes e incapazes. Essas imputações alimentadas por séculos partiam, na verdade, de grupos e autoridade que não se conformavam com a obstinação indígena em resistir às situações de dominação e se posicionar em diferentes contextos a partir de seus interesses particulares.
Infelizmente, discriminações reducionistas, negligências e silenciamentos em relação aos índios ainda existem, como já falei sobre academia ou mesmo – e incrivelmente – em grupos que estudam e trabalham com relações étnico-raciais. Os povos ciganos sofrem do mesmo problema. Até nas discussões e produções científicas sobre a aplicação da lei 11.645, as reflexões sobre a presença das histórias e culturas indígenas são bem mais raras em detrimento das afro-brasileiras e africanas, quando, ao contrário, todas elas deveriam ser objeto de igual preocupação.
Mas a historiografia vem lutando no sentido contrário ao de Gilberto Freire e provando com cada vez mais consistência que os índios sempre foram protagonistas de suas histórias, cuja ausência impossibilita a compreensão da formação do Brasil. Além disso, o movimento indígena e seus aliados em diferentes setores vêm com valentia adquirindo valiosas conquistas, construindo cada vez mais espaços, selando novas parcerias e quebrando desconhecimentos em busca de algo imprescindível em uma sociedade multicultural como a nossa: respeito.
Hehehehe a Xuxa é muito ridícula, né? Naquela época ela representava muito bem essa alienação coletiva. A humildade de não saber sobre índio, blz. A insanidade de se propor a falar do assunto e sequer ler algo sobre que é triste, mas midiático. Ótima entrevista!
Entrevista maravilhosa! Muito enriquecedora e esclarecedora! “É na luta que a gente se encontra”!!! 💪🏼
muito boa a entrevista
👏👏👏
é bizarro a reação dos índios no vídeo da xuxa, notório o constrangimento
Infelizmente boa parte da população continua com olhos vendados em relação aos povos indígenas, infelizmente em nossa sociedade está cheia de Xuxas, de Sales, e outras figuras que ignora a importância dos povos indígenas em nossa sociedade. Muito se tem dito sobre os povos indígenas, mas pouco se tem feito, suas terras por direitos tem sido negadas, indígenas tem sido assinados constantemente por lutarem por direitos já garantidos pela constituinte de 1988. O que se espera que a educação por meio dos professores/as, e outros que estão enganchados com a causa nobre deses povos, possam contribuir pra mudar esse preconceito sistêmico que insiste negar a existência de povos originários em todo território Brasileiro.
Muito bom! Excelente entrevista. Fiquei horrorizada com a Xuxa e os indígenas, pois não conhecia o vídeo; o tempo passou e acho que avançamos; ou será que a Globo faria um horror desse novamente?🤔
Muito bom! Parabéns pela entrevista, prof. João Paulo, precisamos continuar publicando e discutindo a participação indígena nos processos históricos.