por Aristides Oliveira
Em 2024, tive a honra e alegria de participar de uma mesa redonda no “Quais Histórias conhecemos da África?” (evento realizado pela professora Dra. Alba Passos, na Universidade Federal do Piauí – Floriano) com Natália Regina. Ela trouxe para discussão o tema “Branquitude, racismo e a produção cultural do século XX e XXI”. Ela é doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande, área de concentração História da Literatura. Mestra em Literatura pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Professora de língua portuguesa do Instituto Federal do Maranhão (Campus Monte Castelo). Atualmente trabalha como coordenadora e pesquisadora do GEFLI – Grupo de Estudos e Pesquisa Fronteiras Literárias. Escopo de pesquisa: relações entre Brasil e África; negras grafias; memória; identidade; construção das subjetividades negras. Coordenadora do Núcleo de Cultura Afro e Indígena do IFMA-Campus Monte Castelo. Pesquisadora do NUA – Grupo de Pesquisa em Literatura e Crítica Feminista da Universidade Estadual do Maranhão.
No seu tempo de estudante de ensino médio, quais são suas recordações sobre as aulas de História? Como era a dinâmica de apresentação de conteúdo quando se falava na África e suas heranças?
Durante o ensino médio tive uma relação controversa com a disciplina História. Lembro que logo no primeiro ano fiquei encantada com a disciplina e também pela paixão que professor tinha por ela (por sinal o professor era um homem negro). No segundo ano tive um outro professor, com uma postura diferente em sala e também com a disciplina, acho que a maior parte da turma terminou o ano traumatizada. No último ano o professor que nos acompanhou no primeiro ano retomou a disciplina. Esse professor me inspirou tanto que o primeiro vestibular que fiz foi para história, acabei não passando no primeiro e no segundo tentei para Letras, mas o encantamento pela história permaneceu e no curso de letras acabei me aprofundando nos estudos literários. Eu fiz o ensino médio nos anos noventa e as discussões sobre África ainda eram raras e quando o continente era abordado nas aulas, inclusive nas de história, era uma discussão pautada na dor da escravização, então a noção que tínhamos de África era profundamente estereotipada.
Qual sua leitura sobre o impacto das cotas desde sua gestação aos dias atuais? Que mudanças você sente na prática?
Frequentei a Universidade quando ainda nem se falava em cotas no Brasil e posso afirmar hoje como professora de uma instituição de Ensino Federal que as cotas como reparação histórica, transformaram as universidades. Lembro que na minha turma eu era a única pessoa negra e uma das poucas oriundas de escola pública. Hoje a universidade é de fato um espaço diverso, não só em relação aos fenótipos, mas também em relação as pesquisas. O ingresso de alunos negros trouxe consigo a necessidade de ampliar os olhares sobre pesquisa, recontar e reescrever histórias.
Atualmente, temos três protagonistas negras nas novelas da Globo. É um fato histórico num contexto em que os brancos sempre foram a maioria dos personagens “principais” na teledramaturgia brasileira. Qual seria o ponto de virada desse processo? O fortalecimento do elenco negro na TV é uma realidade para você ou é algo que precisa avançar mais?
Se levarmos em consideração os dados estatísticos com certeza precisamos avançar. A TV, principalmente as TVs abertas, conhece melhor do que ninguém o seu público, sabe que para o espectador manter o pacto com o produto da emissora ele precisa se identificar de alguma forma com esse produto. Penso que é muito bom para essa garotada poder se ver na tv e saber que ser artista é uma possibilidade concreta para qualquer um, é bom pra galera da minha geração que não teve oportunidade de assistir uma novela com protagonista negros poder ver que a luta por direitos vale muito a pena. Entretanto eu tenho sempre cautela quando vejo esses movimentos da TV aberta e do streaming, isso porque o racismo é uma tecnologia que se transforma rápido demais e assim como as lutas avançam, as tecnologias do racismo também avançam. É importante ter em mente que a representação é tão importante quanto a representatividade, é importante não esvaziar as lutas transformando-as em slogans ou jargões.
Existe algum sintoma político na instituição que você trabalha que precisa ser problematizada quando falamos de racismo?
Sim, no meu caso eu trabalho em uma instituição de ensino federal, o IFMA. É preciso ter em mente que as ações afirmativas em forma de cotas possibilitam o acesso de muitos, mas precisamos pensar efetivamente o depois, ou seja, precisamos pensar em políticas que garantam a permanência desses alunos. Uma outra questão importante é pensar a prática docente, ou melhor, é importante que o docente racialize seu olhar em relação a seus alunos, a suas práticas e aos conteúdos trabalhados em sala. No nosso país racismo é crime, e diga-se de passagem, um crime onde a vítima tem que provar que é vítima. Nesse sentido, precisamos de um protocolo concreto de como lidar com as situações de racismo no ambiente escolar, em todas as relações que se estabelecem no ambiente escolar, na relação professor alunos, nas relações entre os alunos e nas relações entre servidores.
Como você avalia a situação das profissionais negras no mercado de trabalho no Brasil? Tivemos avanços no que se refere a maior presença dessas profissionais em cargos de liderança ou mal chegamos lá?
O que os dados nos mostram é que mal chegamos lá. Os anos sessenta e setenta do século passado nos trouxeram grandes avanços, mas as recentes ondas de conservadorismo mundial nos mostra que a luta precisa ser constante. O racismo aliado ao capitalismo moldou o mundo que vivemos (inclusive não consigo pensar o fim de um sem o outro). As grandes empresas que lucram com o capitalismo sabem que o mundo mudou e na tentativa de acompanhar as mudanças e manter os seus lucros elas esvaziaram conceitos importantes como os de diversidade e representatividade. Acho que nenhum negro quer ser o único representante do sucesso, ou ser um negro líder num cargo de chefia e continuar ganhando menos que os brancos na mesma empresa.
Em 2024, o tema da redação do ENEM movimentou o debate público e as redes sociais em torno da relevância temática sobre a herança e cultura africana. Você acredita que as escolas estão abordando o assunto com a dedicação que ele merece?
Foi um domingo lindo, ver a juventude de todo país pensando e escrevendo sobre as nossas heranças africanas. Ver os alunos no dia seguinte contando que citaram autores negros como Djamila Ribeiro, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Silvio Almeida, Karla Akotirene. Na escola que eu trabalho esses temas integram o currículo, temos NEABI (Núcleo de Estudos Afrobrasileiro e indígena), mas sei que essa não é a realidade da maioria das escolas de nosso país, umas privadas por serem muito elitistas e outras públicas por serem o extremo oposto. A grandiosidade do Enem, além de oportunizar o acesso ao ensino superior, é provocar a sociedade como um todo e acho, como diz a galera jovem, que o tema de 2024 “entregou muito” no quesito provocação.
Qual seu posicionamento sobre a gestão de Anielle Franco no Ministério da Igualdade Racial do Brasil? Avançamos, estagnamos, retrocedemos?
Minha resposta vai falar sobre a ministra, e não sobre a Anielle Franco, mulher negra, militante. Primeiro é preciso pontuar que ela assume o ministério que vai tratar de políticas para mais da metade da população brasileira, uma vez que no último Censo mais da metade da população se autodeclarou negra. Segundo, ela assume o cargo depois de quatro anos de uma gestão que declaradamente normalizava o genocídio da população negra. Dito isto, eu devo dizer que esperava mais desse ministério, mas entendo que o ministério que ela ocupa é só parte da engrenagem do governo e que muito do que a população negra luta precisa também passa por outros ministérios. Tais como o ministério da justiça para pensar como manter a juventude negra viva, o ministério do desenvolvimento agrário e a titulação de terras a remanescentes quilombolas. Acho que apesar de tudo e todos nós avançamos, mas no Brasil que queremos não dá para nos contentar com pouco.