por Aristides Oliveira
No volume 16 desta série, Fofão nos contou a sua versão sobre a história das movimentações anarconpunks pela cidade de Teresina, ampliando nossa compreensão de que o gênero não era apenas uma leitura sonora-estética da história, mas ação e posicionamento político de enfrentamento direto com a realidade. Agora, para finalizar este projeto, somos surpreendidos com esse papo gigantesco e revelador que os irmãos Dante e Demetrios Galvão trazem sobre a construção desse cenário a partir das suas experiências pessoais com o punk rock, bem como as suas participações no Grupo de Estudos Anarquistas. Após três anos e meio garimpando vozes que iluminassem o passado e o presente do underground piauiense, encerramos o Vozes do Punk com chave de ouro! Agora vamos transformar essa história em livro!
Aristides: Como vocês entraram em contato com o cenário rock de Teresina e com a cultura punk?
Demetrios: De modo geral, chegamos até o punk e o hardcore por conta do rock and roll. Começamos a ouvir som por volta de 94/95. Sempre curti mais metal, doom metal e algo que eu conseguia identificar dentro do rock fazendo pontes com a literatura, porque ao passo que fui sendo influenciado pela música as coisas também se aproximaram da literatura, e por dentro do rock a gente encontrava algumas bandas que abordavam temas melancólicos, góticos ou uma pegada social, nisso dava pra fazer a relação com alguns escritores e “escolas” literárias, com aquilo que também estávamos lendo na escola.
Essa relação foi sendo construída, pra mim, ao longo do processo. Música, literatura e algumas referências do tipo, mas num dado ponto tivemos um momento de virada. O Dante já ouvia mais as bandas punks e Ramones, Sex Pistols, sempre estavam tocando. Lá em casa, tivemos a sorte de sermos três irmãos que ouviam som, embora nossas preferências variassem um pouquinho. Às vezes eu estava no metal, o Dante no punk/ hardcore, o Dario costumava ficava no heavy metal e progressivo. No final das contas terminávamos nos auto-influenciando e isso foi muito importante para uma educação do ouvido.
Costumávamos trocar sons com alguns amigos nossos do Parque Piauí. Tinha também uma conexão com pessoas que vinham dos bairros vizinhos como Bela Vista, Promorar, Saci, mas o fato é que o Parque era esse espaço, pensando a geografia da cidade, que convergia a juventude da zona sul, assim como o Mocambinho tinha esse papel na zona norte.
Por volta de 1996/97 até 1999, aproximadamente, existia um circuito de shows no centro da cidade e o espaço principal era o bar Elis Regina, do João Vasconcelos. Nesse período, nos correspondíamos com pessoas de outros estados trocando zines e demo tapes, de certo modo, estávamos integrados a uma dinâmica de movimento, de se sentir fazendo parte de algo. Mas nesse momento a questão é basicamente som.
O Dante já cantava na Anarcóticos e o fato de ter uma banda no Parque ajudava a reunir uma galera, principalmente nos ensaios. Em dias de show juntava uma turma e descíamos de ônibus para o centro, era muita curtição. Nesses shows do Elis Regina costumava tocar a Anarcóticos, Obtus, Terra Podre, Scrok, Káfila… Que mais Dante?
Dante: Bandas de metal. Tinha a Zorates, Monasterium, Demolidor… Basicamente era isso em termos de show. E também, vez outra passavam por aqui bandas de Fortaleza e São Luís.
Demetrios: Um certo dia alguns amigos nossos da zona sul encontraram – acho que numa panfletagem no Centro, se não me engano, – o Carioca e o Bal divulgando material do GEA (Grupo de Estudos Anarquistas) e aí trouxeram a novidade: “galera, existe esse grupo chamado GEA e os caras são punks e anarquistas”. Ficamos curioso para entender o que era e como funcionava. Alguns amigos da zona sul começaram a participar das reuniões e não demorou muito pra mim e o Dante começar a frequentar também. Em pouco tempo nossa galera da zona sul estava quase toda no movimento.
O GEA funcionou como um grupo agregador que reunia ideias políticas, cultura punk/anarquista, sentimento de liberdade, cooperação, indignação social, dentre tantas outras coisas. Dessa forma, o contato com a cultura punk e anarquista se deu com o GEA, embora já ouvíssemos o som punk. Porém, nesse momento, estávamos ligados em outras bandas como Sin Dios, Execradores, Neurastenia, Detrito Humano, Última Marcha, Escato, Cuspe, Protesto Suburbano, etc. E tinham também as leituras do Bakunin, Malatesta, Emma Goldman. Foi um processo de formação.
Aristides: Primeiro vocês estavam ouvindo som e de repente tocando numa banda e em seguida participando de um grupo… Como se deu essa transição de uma coisa pela outra?
Dante: As coisas foram acontecendo de forma processual. A nossa história é de coletivo. São experiências individuais, que toca cada um, mas foi acontecendo num bojo de coletividade. Quando eu comecei a escutar rock, me identifiquei de pronto com o punk. A sonoridade punk me agradava mais. Ramones e Sex Pistols foi o que chegou primeiro. Dos amigos do Parque Piauí, alguns eram conhecidos desde a infância porque moravam por ali. A gente se via, sabia quem era uns aos outros, mas como esse circuito de ouvir rock era tão pequeno, a gente buscava saber quem escutava para poder se juntar.
Primeiro que procurávamos as pessoas que ouviam rock, então foi a nossa primeira chegada com os colegas do Parque Piauí. Dali começou a ter uma convivência para compartilhar som, se juntar para beber, ir a shows juntos. Eu lembro que o primeiro show que fomos foi no encerramento do Salão de Humor, que o Monasterium tocou, a gente ainda nem era muito amigo, mas a galera ia descer e fomos juntos. Daí foi criando esse laço. Isso em 1996.
Ali a galera curtia Ramones, Sexs Pistols, Nirvana, Sepultura, Ratos de Porão. Por volta de 1997, o Leandro (bateria) tem a ideia de montar uma banda com o Pádua, que hoje toca no Káfila e tal. E a gente encostava ali no dia dos ensaios, que era dia de bater papo, beber, ouvir música e ver a galera tocando. A banda ensaia, mas não vinga. Não fizeram shows, mas o Leandro permanece com a ideia e a gente dá uma rearrumada, basicamente só o Leandro sabia de alguma coisa de instrumento de maneira autodidata.
Ele chama o Nandinho e o Marcelo, colegas da vizinhança e ensina os meninos como tocar as músicas que, em geral, era ele que compunha as letras. Os caras sabiam manusear os instrumentos para tocar – o Eder fazia vocal – e assim rolaram os ensaios nessa mesma dinâmica. Em determinado momento, Eder sai da banda e o Leandro me chama pra cantar. Daí começa o Anarcóticos com a formação dos shows.
[Para saber sobre a história da banda, leia o volume 4 desta série disponível no site].
Na paralela, eu e Demetrios sempre buscamos material e pesquisávamos bandas. Frequentávamos duas lojas de rock da época, a antiga Antro do Rock e a War Pigs, do Bernardo e Nelson Ned, geralmente pagávamos por gravações de cassete disponíveis no catálogo das lojas, essa era uma forma de conseguir material de som. Uma outra forma, era através dos contatos que pegávamos na revista Rock Brigade, na sessão de classificados, com a turma que trocava/vendia zines, fazia gravações e bandas undergrounds que vendiam suas demo-tapes. Comecei a ir atrás de bandas punks que anunciavam lá, comprei as fitas e comecei a ouvir, acho que uma das primeiras foi da banda Blind Pigs. Não sei em que momento as ideias punk/anarquistas me tocaram.
Tenho lembranças de coisas na minha vida que foram me aproximando de um pensamento de justiça social. Lembro de uma aula de História sobre Revolução Russa, que achei aquela dinâmica super louca, do comunismo e socialismo. Uma colega nossa, a professora Fabíola Lemos, lembro dela ministrando esse conteúdo e me encantou. Talvez seja a memória mais antiga que eu tenho da disciplina de História.
Outra coisa que me aproximou da causa social foi a experiência do grupo de jovens da comunidade. Isso coincide com o período que estávamos começando a ouvir rock – eu tinha entre 14/15 anos – e a mamãe pressionava para a gente fazer crisma, mas a dinâmica de fazer o sacramento era na participação do grupo de jovens e essa coisa de participar de grupo, que remete ao coletivo, fazer ações de caridade, aquilo ia me envolvendo.
Lembro de um fanzine que li em casa. O Demetrios lia mais fanzines. Era um fanzine punk e os textos me pegaram. As discussões contra o sistema e as desigualdades foram se somando à banda e à politização.
Demetrios: Querendo ou não, Dante, a gente já ouvia Ratos de Porão. Mas, tem um momento que é importante, foi quando escutamos o CD do Sub. Ele apareceu quando a loja Barulho Discos estava fechando e colocou um monte de CDs a preço barato e em dado momento, esse CD virou uma coisa.
Dante: Um amuleto, uma coisa emblemática. Um CD fundante na galera. Tinha o Cólera, Psicose, Fogo Cruzado, Ratos… Serviu de inspiração pra todo mundo.
Demetrios: Acho que foram as primeiras bandas que a gente ouviu com pegada social, saindo de um cenário com bandas cantando em inglês. Esse CD tem uma importância simbólica ali. Inclusive, quando vocês estavam fazendo as letras do Anarcóticos se espelharam nessas bandas para fazer um som com pegada social. Como é um CD coletânea, depois fomos atrás dos discos do Cólera e de cada uma daquelas bandas. Foi quando encontramos a sonoridade punk brasileira, já caindo para o underground, que era um cenário que a gente conhecia. O Anarcóticos estava dentro do underground.
Já nos correspondíamos e o Do It Yourself estava no princípio das coisas, de ir atrás de som, fanzine, mesmo num período que não existia internet. Essa busca, acho que tem uma atitude que marca muito essa trajetória das coisas, é a tentativa de sair do isolamento geográfico. Aos poucos fomos encontrando os nichos do universo fora daqui de troca de demo-tape.
Dante: Interessante que nesse cenário do punk, fomos meio que “autodidatas”. Quando começamos a ouvir rock de uma maneira geral, na linha do metal, teve quem guiasse a gente para indicar material, banda, revista. No punk não. Quem escuta punk sabe que o viés de contestação vem junto. E assim fomos construindo tudo isso. Nossa turma do Parque Piauí era muito difusa: todo mundo ouvia rock, mas não tinha uma consciência e sim um espírito que unia tudo isso.
Quando digo que é “autodidata”, porque, lá na frente, quando encontramos o pessoal do Mocambinho e Dirceu, que estavam organizados no GEA (Grupo de Estudos Anarquistas) rolou uma conexão de cara. O Eder faz a ponte.
Rola uma aproximação com o GEA, que tinha uns punks. Na época (1997) tinha de 14 para 15 anos e aquilo me deixava curioso e espantado, por causa daquele imaginário da galera de moicano, andando de turma como se fosse uma “gangue” e tal. Fiquei naquele sentimento: “como é que essa galera vai receber a gente?”
Até conhecer o GEA, a Anarcóticos estava tocando em shows, mas ainda não tinha entrado de cabeça na militância, não existia uma politização de maneira consciente, direcionada.
Aristides: Vocês saíram da condição de ouvinte para ativistas.
Demetrios: Quando tivemos contato com o GEA aconteceu um direcionamento da temática. A gente já sabia o que estava acontecendo no cenário underground e que existia a necessidade de trocar ideias e correspondências por meio dos contatos que conseguíamos material. Os desdobramentos ocorreram de forma natural. Já ouvíamos bandas que tocavam letras de protesto, só que encontramos um universo mais consciente, com a ideia de militância e um ideal, teorias e a dimensão utópica tocou a gente.
As reuniões do GEA para leitura e discussões de textos anarquistas aconteciam aos domingos à tarde, no Mocambinho e no final das reuniões ouvíamos música e tomávamos umas, rolava uma confraternização. Os encontros nos ajudavam a ter uma compreensão mais apurada entre a estética corporal, sonora e as ideias politizadas.
Foi um processo de aprendizado muito significativo. Começamos a nos conectar com zines e bandas anarco-punks (a-punks) de várias partes do Brasil, uma rede de contatos que nos informava sobre a atuação anarquista na guerra civil espanhola, do movimento zapatista mexicano e que naquele momento, em 1994, tinha ocorrido um levante em Chiapas, uma retomada do movimento zapatista. Aquelas ideias de revolução, utopia, transformação social, caiu como uma luva para um jovem em momento de afirmação identitária.
Pra mim, por exemplo, que não era um cara que gostava de estudar, de ler, o GEA foi um espaço de formação de leitura. Eu já era muito apegado aos fanzines, sempre um leitor de fanzines, a estética dos zines pra mim é muito forte na memória, eu saí de fanzines de metal para fazines a-punks.
Aristides: Lembro que fui a uma reunião do GEA em 1999, tu me chamou [referindo-se ao Demetrios] e a discussão era sobre Esperanto. O que vocês conversavam nas reuniões em geral? Como era a sistemática de leitura e debates?
Demetrios: Aqui na mesa nós temos um boletim anarcopunk de 1999. Alguns que estavam no GEA, no início, já tinham esses contatos e fomos pegando também. Às vezes chegava uma pauta de reunião, por exemplo: o Carioca ou Bal tinham recebido informações de que em São Paulo o movimento nazista estava crescendo, ou que houve a ocupação de uma casa em Curitiba por punks e lá eles iriam fazer um centro cultural. Nesse mesmo boletim havia a informações sobre as articulações para as manifestações relacionadas as comemorações dos 500 anos do Brasil.
Haviam temas como feminismo e anarquismo, questões sobre luta de classes, líamos textos da Emma Goldman, Errico Malatesta, José Oiticica, José Rodrigues. Existia uma formação ideológico conceitual anarquista, algo semelhante a um partido. Os informes era uma forma da gente se sentir parte do que estava acontecendo no Brasil.
Fazíamos discussões sobre temas das próximas manifestações, por exemplo: 1º de Maio. Como iriamos para as manifestações? Levaria cartaz? Que panfleto iria usar? Era preciso escrever um texto para aquela manifestação? Essas informações abriam a reunião, os encontros tinham um lado prático de ter uma ação política, mas também eram muito importantes pra gente socializar som e outros elementos da cultura punk.
Quando entramos no GEA, já estava rolando a ocupação da Vila Irmã Dulce (iniciada em junho de 1998) e as reuniões estavam sendo lá. Depois de um tempo voltou a ser no Mocambinho, na escola Pequena Rubim.
Dante: A chegada no GEA mudou completamente minha vida. Lá tinham pessoas que tocavam em banda engajadas, como Ingovernáveis e Evidência. O interessante desse processo do grupo de estudos é a formação dos jovens pelos próprios jovens. Não tinha um instrutor, alguém mais velho, professor, ninguém que organizasse um programa de estudo que nos ensinava. Um amigo mais velho ou outro teve passagem por um partido político, outro que vinha de movimento estudantil organizado. Tinha uma galera que era referência.
Na primeira reunião que cheguei no GEA, vi uma organização que nunca tinha visto: estabelecer uma pauta, definir o tempo que começa e termina a reunião, que iniciava na hora marcada. Tinha uma dinâmica de uma pessoa para controlar as falas, relatar, você levantava a mão para pedir a fala. Tudo isso pra mim era muito simbólico no processo de aprendizagem no coletivo.
Ora, você está num grupo anarquista, e o anarquismo pressupõe não ter um Estado, um controle centralizado, nada mais óbvio de que as pessoas consigam se auto-organizar. Isso é muito significativo porque começou a me ensinar sobre uma militância cotidiana.
Você ter uma perspectiva de utopia, pensar uma sociedade diferente que te faz mover dentro de uma militância e uma série de coisas que você traz para sua rotina. A gente discutia temas que pra mim eram novos. Na primeira vez que cheguei na Vila Irmã Dulce e fui conversar com o Makline [conheça a história de Makline no volume 8 desta série] e ele já era um punk conhecido da cidade. Makline solta uma pergunta na lata: “qual seu posicionamento sobre o voto nulo?” Eu não fazia ideia, porque voto nulo? Sabe. A gente foi aprendendo tudo isso no GEA.
Os squat, a história das ocupações das casas, que refletiu na Vila Irmã Dulce e a discussão sobre o voto nulo, o anti-militarismo e tantas outras pautas em voga hoje que aprendemos lá atrás: anti-racismo, anti-sexismo, anti-machismo, anti-xenofobia e a percepção de que a luta é internacional, a perspectiva do anarquismo internacionalista para a sociedade. A ideia de revolução… Tudo isso fomos estudando e aprendendo ali uns com os outros nas reuniões, confesso que pra mim, as minhas principais fontes de leitura e aprendizados estavam nos fanzines, boletins e jornais.
Não tinha hábito de leitura, nunca foi um hábito fomentado em casa e até então eu tinha preguiça de ler. Quando pegava um livro um pouco mais volumoso ou leitura mais densa, truncava na leitura. O fanzine tinha linguagem fácil e eram jovens escrevendo, aquilo vai formando…
Demetrios: Fizemos assinatura do jornal informativo Letra Livre, porque o GEA tinha assinatura de alguns boletins, que eram assinaturas coletivas. O material circulava na mão de todo mundo. Eu tô aqui, na mão, com o livro do José Oiticica, “A Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos” (1976) e ele tem um carimbo de uma biblioteca libertária de Belo Horizonte. Era comum as trocas de textos. Alguém que era do movimento de BH fez a cópia desse livro e mandou para o GEA e quando a gente conseguia algum material, fazíamos cópia. Não só existia a troca de demo-tapes e zines, mas de livros, referências de leitura. O GEA tinha uma organização como se fosse um partido, mas não tinha a hierarquia do partido e era algo mais livre.
Aristides: Como eram feitas essas conexões via correspondência? Alguém no grupo era responsável ou era uma atividade difusa?
Demetrios: Todos nós tínhamos contatos com pessoas de diferentes partes do Brasil, vivíamos uma internet analógica. O GEA tinha uma biblioteca que foi sendo formada a partir dessas conexões/trocas. Se não me engano, ela ficava na casa do Bal ou de alguns dos meninos no Mocambinho. O material não era de ninguém e ao mesmo era de todo mundo. Às vezes, alguém fazia uma viagem e trazia um livro e colocava na roda.
Dante: Todos nós no grupo já tinhamos a prática de se corresponder. O Demetrios fazia o zine Sintezine. Quando ele mandava pra alguém, às vezes ele mandava três ou quatro cópias. Essa pessoa que recebia, pegava o Sintezine e colocava em outra correspondência para outro cara de outro Estado. Essa era a rede social. A mesma coisa acontecia de lá pra cá. Isso tudo circulava. Por exemplo: quando fazíamos contato com uma banda, vinham os flyers, que eram cartõezinhos de banda ou fanzines que circulavam. Dali, a gente lia os releases e, se interessava, escrevia para o cara. Isso foi criando uma teia.
No GEA, quem estava há muito tempo em contato com partido político ou com o punk/anarquismo, como o Baiacú [conheça a história dele no volume 6 desta série], Makline [conheça a história dele no volume 8 desta série], Fofão [conheça a história dele no volume 16 desta série], Bal, Carioca, eles tinham uma pegada de correspondência com a galera punk e anarquista de fora. Quando chegamos no grupo entramos também nesse circuito com pessoas de quase todo o Nordeste e também do Sul e Sudeste. É você pensar no Instagram, Facebook analógico. A única diferença é que o Facebook e Instagram, por conta dos algoritmos, vão te sugerindo gente. Quando recebíamos os vários flyers e zines dentro de uma carta, era como se fosse uma espécie de algoritmo. Era uma rede anarcopunk e cabia a mim curtir ou não, no linguajar de hoje.
A maior surpresa foi quando recebi uma carta em inglês, com endereço da Holanda. Era comum chegar da escola e se deparar com uma pilha de cartas que havia chegado naquela tarde. Naquele dia tinha chegado uma tal carta da Holanda, de imediato corri na casa do Leandro para traduzir. Era um cara da Holanda dizendo que tinha recebido uma gravação da Anarcóticos, tinha pirado no som e perguntava se a gente topava sair numa coletânea com bandas da Europa, América Latina, carai de asa e tal. As conexões aconteciam muito espontaneamente.
Demetrios: A rede de contatos era muito rica e fazia a gente ter contato de fontes da Espanha, México… e uma coisa muito massa eram os boletins como o Libera, Resistência e Luta, também tínhamos acesso às revistas Letra Livre e Libertárias. Esse material foi riquíssimo para a formação de todo esse grupo como leitores.
A nossa formação na organização dessas leituras, inclusive até assimilando melhor o que estudávamos. Muitas vezes, esses informativos mostravam o que estava acontecendo no movimento punk em geral e dentro deles vinham textos fragmentados dos clássicos. Por exemplo: o Libera (2001) fala sobre o “Anarquismo e projetos para o caminho político, ou Sociedade civil abandonada”, “A propriedade é um direito?”
Esses temas e discussões passavam por esses jornais/boletins/revistas e não se discutia estritamente a questão política, mas na Libertárias tem uma edição de 1997 que fala da Revolução Russa, mas tem outra de 1998 com uma pegada mais cultural, relacionando anarquismo e dadaísmo ou aos escritores beat americanos. Esses outros temas associados nos ajudaram a expandir nossa bagagem cultural associada ao universo libertário. Chegou a um ponto que tinham outras coisas nos interessando além do punk.
Nós estávamos tanto na formação política, quanto na formação cultural, que era politizada. Isso foi formando um modo de ver o mundo e uma atitude relacionada à política, cultura, musicalidade e uma inserção social que estão rolando ao mesmo tempo e muito intenso. Ainda tinham os espaços de shows e a sociabilidade de juntar essa galera para tomar cachaça. A gente entendia que essa formação política passava por esse todo. Não era propriamente uma formação política dura. Era uma formação política dentro de uma liberdade muito grande.
Nossa vivência com a Vila Irmã Dulce foi à forma de pôr em prática a coisa. Eu e o Dante entramos na Vila depois. A galera vinha de uma formação de mais tempo e a Vila foi o momento de ir para a prática. Quando entramos o bonde estava andando e a gente foi tomando pé da situação e foi seguindo.
Dante: Eu diria, no meu caso, a ocupação da Vila foi o marco de contato inicial com o GEA. Conhecemos o GEA no momento da ocupação, porque os meninos estavam mobilizados na ocupação e eles tinham feito parte do processo de organização das famílias, do planejamento da ocupação, assentamento e a resistência por permanência.
O GEA teve esse papel. Eu e Demetrios chegamos muito jovens, se aproximando do grupo sem essa condição de ficar lá dentro, como os outros colegas estavam diariamente no processo de construção da ocupação. A gente ia para a vila, geralmente nos finais de semana. Estudávamos e tinha uma relação familiar que, enfim, não permitia essa liberdade de sair a qualquer momento e tinha resistência dentro de casa mesmo para ir aos fins de semana, mas foi lá que se deu a aproximação do GEA como grupo de estudo, mas numa prática de militância.
Estávamos nos relacionando com os amigos dentro daquele cotidiano. A Vila acabou se tornando esse marco histórico e simbólico para a luta social em Teresina, para o GEA e pra gente em particular. A Vila é esse elo de ligação com o GEA no processo que você vai experimentando as coisas, estudando e entendendo como tudo se dá.
Demetrios: Tanto eu quanto o Dante não estivemos na mobilização, mas o GEA era algo inspirador. Nos empolgava o envolvimento com o social. Ali tem uma formação humana muito interessante que era, no nosso caso, se deparar com pessoas de realidades muito diferentes da nossa e de entender o outro. Então, por mais que não tivéssemos participado do processo de mobilização inicial, do momento de desmatar o terreno, dividir as quadras, etc. estivemos presentes no momento da resistência, das manifestações, das articulações posteriores. Lembro que a primeira manifestação que fui, acho que o Dante também, foi no 7 de setembro 1998.
Dante: Eu não fui nessa manifestação.
Demetrios: Dessa manifestação saiu uma foto do GEA em um jornal da cidade e depois fizemos o recorte da foto e ela circulou… no final das contas, estampou o boletim anarcopunk Nordeste (1999). Na foto estou com o Carioca, Júnior, Makline, Bal e mais outros amigos. Nessa manifestação o GEA levou uma faixa escita “Onde está a Independência?” e nesse dia, o Fofão me deu um lenço vermelho com o A de anarquia que a gente colocava no rosto. Tenho esse lenço até hoje guardado e essa manifestação é um marco. Nesse momento colocamos o pé dentro da coisa, foi à primeira manifestação, como afirmação desse movimento envolvido na ocupação. No 7 de setembro acontecia o Grito dos Excluídos e lá tinha o fortalecimento da luta pela Vila. Nesse ano, o Grito dos Excluídos foi muito forte e em todos esses momentos tinha a galera da Vila Irmã Dulce. Nesse contexto, entre 1998/1999 aconteceu um encontro anarcopunks no Nordeste e na Vila.
Dante: Na dinâmica do GEA existiam os encontros. Quando aconteceu a ocupação da Vila, a gente se reunia lá porque estava rolando um processo de ocupação. Fazendo um parêntese e falando desse aprendizado no GEA, aprendemos que não era uma invasão, mas uma ocupação.
Aristides: A imprensa chamava de “invasão”.
Dante: Isso é conceitual, entender o sentido das palavras faz parte da militância. Não está invadindo, estamos ocupando uma terra que está em especulação, enquanto, no caso, mais de três mil famílias não tinham moradia e havia um movimento das entidades comunitárias muito forte, FAMCC (Federação das Associações de Moradores e Conselhos Comunitários do Piauí), FAMEP (Federação das Associações de Moradores de Bairro do Piauí). Era uma luta por moradia e condições dignas de vida. Estava presente a campanha de combate à fome, iniciado com Betinho no final dos anos 80, mas ainda se respirava nos anos 90. As ocupações em áreas urbanas foram intensas. Não estamos tomando as coisas, primeiro tomou quem cercou o pedaço de terra e disse que era seu.
Ora, se a terra é um bem natural e finito, como é que você vai partir do pressuposto de quem tem terra sem uso, sem produtividade, sem qualquer tipo de uso social está no direito de ter isso? E as pessoas que não tem? Essa compreensão, nós adquirimos lá dentro.
Nas reuniões do GEA, além da parte conceitual, existia o planejamento de ações concretas. Foram inúmeras manifestações, tanto as que estavam no calendário anual, como o Grito dos Excluídos, 7 de Setembro, 1º de Maio, puxada pelos sindicatos e as manifestações que a gente fazia, como ações de colagem de cartaz ou panfletagem. Fizemos uma ação em 1998, no segundo mandato do Fernando Henrique. O Brasil passava por uma crise e o SBT lançou uma campanha chamada Com Crise se Cresce, um bordão que o SBT lançava para apaziguar a população.
Aristides: Uma versão retrô da campanha Não Pense em Crise, Trabalhe, do Temer.
Dante: É tipo isso. A colagem que fizemos trazia: “Com crise se cresce: fome, desemprego, miséria…”
Tínhamos as ações de boicote. E, talvez, uma das ações mais ousadas que fizemos foi fazer uma panfletagem contra o Mc Donalds dentro do Teresina Shopping. Planejamos esse dia. Vai ser o seguinte: “a gente se divide, entra pelas diferentes portas e sai panfletando”, mas com pouco tempo, obviamente, os seguranças chegaram e fomos levados para a sala da Segurança intocada lá no shopping. Nesse dia nós estávamos em uma boa quantidade, talvez uns dez, por aí. Fizemos também panfletagem no Natal, criticando o consumismo.
Aristides: Lembro de uma ação que Demetrios me chamou nos 500 anos do Brasil e não esqueço do Bal subindo na estátua na Igreja São Benedito (risos).
Dante: Aconteceram várias manifestações articuladas contra as comemorações dos 500 anos de invasão no Brasil, ações conjuntas pelo país inteiro do movimento anarcopunk. Nessa época já era uma discussão que problematizava a forma de contar a história do Brasil o que nos dias de hoje chamamos de decolonialidade. Fizeram uma comemoração com tom de elogio da colonização, algo terrível e justo no governo de um cara que tinha a reputação se ser um sociólogo importante do pensamento social brasileiro.
Aristides: Quem recebeu vocês no GEA?
Demetrios: Lembro de algumas pessoas que já eram referências pra gente como o Bal e Carioca, mas estavam alí o Baiacú, Fofão, Makline, Elanderson, Pitanga, Cleiton, Marquin, Bruno, Sociedade, Demir, Paulo. Tinha uma galera bem comprometida e nesse momento, quando entramos, tinha também alguns amigos da zona sul como o Júnior, Eder e Robson. Era basicamente isso, mas tinha também algumas pessoas que apareciam esporadicamente.
Dante: O Gilsão, que tinha um pé no hip hop e no GEA.
Demetrios: Tinha outras pessoas que apareciam como curiosos na reunião querendo entender o que era. Vinha duas ou três reuniões e depois não vinha mais e de algum modo estavam ligados no que estava rolando. Tinha a Lidiane e Carla e as namoradas dos caras que sempre estavam por ali. As meninas às vezes faziam reunião para discutir anarco-feminismo.
Tem um momento interessante no GEA quando a gente conhece o Mariano Deni. Ele fez mestrado fora e quando soube do GEA colou no grupo. Era um cara mais velho e professor. Fui aluno dele quando entrei na Universidade.
Dentro do GEA tinham três bandas: Evidência, ligado ao Fofão e Dionísio, Ingovernáveis e o Anarcóticos ficou meio lá, meio cá. O Dante era da Anarcóticos e ficou dentro do GEA, os outros meninos faziam parte da galera flutuante.
Rolava show com as bandas do grupo. Isso era muito forte. Existiam outras bandas em Teresina que se colocavam como punks, mas não eram militantes, tipo Obtus, Káfila. Qualquer que tenha existido até antes, era por uma questão estética e da ação punk, mas não eram anarcopunks. O GEA instaura um negócio em Teresina que é uma novidade: o anarcopunk.
E no GEA – acho que isso é uma ressalva – tinham aqueles que eram punks, como o Baiacú, Carioca, Sociedade, Demir e Makline, que tinham uma vivência, pulsação punk e existia outra parte da galera da zona sul que não foi um típico punk. A gente era mais anarquista, curtia som punk, tocava em banda, mas a gente não tinha uma existência punk. O grupo não era uniforme. Alguns sequer visual tinha. Rolavam tendências diferentes, alguns que se dedicavam só ao anarquismo, embora ouvisse som punk, outro já tinham um visual de moicano, de viver de forma mais punk. Eu e Dante, por exemplo, a gente tocava, eu e o Dante passamos por banda. Atuávamos na imprensa anarcopunk, mas a relação era – no meu caso e do Dante também – de curtir a música punk, de atuar na imprensa anarcopunk e se identificar muito com o anarquismo.
Dante: Sobre a história das bandas. Quando a gente faz o Anarcóticos no Parque Piauí, éramos um único grupo de jovens. Era um coletivo ali. Toda nossa experiência, desde o Parque Piauí em torno do Anarcóticos, em torno do rock and roll que saiu o Anarcóticos e depois o GEA foi todo um processo de construção de sociabilidade de jovens que estavam se formando enquanto sujeitos e procurando grupos para compartilhar isso.
O Robson, o Eder e o Júnior foram os primeiros que chegaram ao GEA. Quando eles chegam lá e voltam, eles trazem essa mensagem pra cá. Depois vai eu e Demetrios mais firme e houve uma junção dessa galera e a gente acabou sendo uma mesma galera. Os meninos do Anarcóticos podiam não ser militantes, de estar nas reuniões do GEA com frequência, quando rolavam as manifestações iam também, podiam até não se dizer militantes anarquistas, mas todo mundo estava na órbita.
A gente desceu para o Mocambinho para bebedeira, tinha festa, quando faziam os shows estava todo mundo junto. A galera descia do Mocambinho e ia para o Parque Piauí. Virou uma galera só.
Aristides: O Anarcóticos era uma banda do GEA?
Dante: Não necessariamente, porque nem todo mundo era militante. Mas essa aproximação com o GEA mudou a pegada e postura da banda, porque a gente passou a ser mais consciente do que a fazíamos. Nos shows, desde o início, eu passei a fazer discursos políticos.
Toda música nossa tinha um tema que estava relacionado à crítica ao nacionalismo, combate ao imperialismo, letras antimilitaristas. Então sempre fazia um discurso sobre aquele tema.
As correspondências que eu fazia direcionadas às bandas anarcopunks colocou o Anarcóticos no circuito. Na banda, quem fazia a correspondência e os contatos fora era eu. Se eu estava na trilha do anarcopunk engajado, eu botava o Anarcóticos também. Os meninos não se opunham, muito pelo contrário, a gente entrou na vibe de fazer.
Nem todo mundo era militante dentro da banda, mas todo mundo estava na mesma vibe, na mesma pegada e tal. Depois do GEA, o que antes a gente fazia os shows e não deixamos de fazer com Obtus, Káfila, Scrok, Demolidor, Zorates e com aquela galera toda que estava lá, sempre misturado com metal, mas agora a gente tinha pegada que era fazer os shows anarcopunks junto com Ingovernáveis, Evidência ou com o Última Marcha, que veio de São Luis pra cá e tocamos com eles. Não é muita coisa dentro de Teresina, quando falo em relação a circuito, mas estávamos mais identificados com o movimento.
Demetrios: Agora é a produção de shows de bandas engajadas. Não era mais um show por ser show, porque o show com as bandas engajadas tinha discurso. Uma banda que influenciou todo mundo foi a banda espanhola de hardcore Sin Dios[1]. Os caras faziam um discurso sobre o tema daquela música. As bandas aqui começaram a fazer a mesma coisa.
O Dante fazia uma fala antes de “tal” música do Anarcóticos, o Bal fazia na música dos Ingovernáveis, o Fofão também. Então, aquilo era um show de bandas politizadas. Era diversão, curtição e aí insere-se um elemento novo.
A maioria dos shows aconteciam no bar Elis Regina, mas teve no DCE da UFPI e na rádio 1º de Maio. Lembro de dois a três shows na Vila Irma Dulce, em encontros anarcopunks na vila. Nessa movimentação de bandas e contatos a-punks, vez outra passava alguém de fora por aqui. Foram mais frequentes amigos de São Luís e Fortaleza, mas também vieram pessoas de outros lugares, inclusive 2 americanos.
Existia um circuito de gente passando por aqui e nós também viajamos para fora. Não ficamos apenas nas correspondências. O próprio Baiacú e o Makline, nas entrevistas deles para este projeto falaram das suas viagens.
Dante: Eu queria sistematizar aqui alguns fatos que faz a gente entender isso. Em junho de 98 foi a ocupação da vila. Ali, todo aquele pós-ocupação dá uma dimensão para o GEA. Saiu uma matéria na Folha de São Paulo feito pelo Xico Sá, em novembro de 98.
Demetrios: A matéria saiu em Teresina pelo jornal Meio Norte, mas foi originalmente feita pela Folha e publicada simultaneamente num domingo, lá e aqui.
Dante: Em 98 rola isso. No ano pós-ocupação acontecem várias manifestações da população da vila. Fechamento de BR por conta dos acidentes que aconteciam, crianças foram acidentadas, trabalhadores foram atropelados por andar de bicicleta. Rolaram várias manifestações na porta do Palácio do Karnac [sede do governo do Estado] e na prefeitura também. Foram manifestações para pressionar pelo processo de assentamento dessas famílias.
No segundo semestre essas manifestações foram muito intensas em torno da Vila. No 7 de Setembro acontece o Grito dos Excluídos, um ano de grande manifestação. Essa marcha é organizada, acho que até hoje, pela Igreja Católica, mas em parceria com vários movimentos sindicais e o GEA sempre esteve junto.
Em 1999 a manifestação do 1º de maio foi enorme. A concentração foi na praça do Liceu, desceu pela rua Rui Barbosa e terminou na Igreja São Benedito. Acho que foi a última grande manifestação de público e volume de gente que aconteceu desde aquela época. A galera ia fechando o comércio por onde passava, baixando as portas e chamava o trabalhador para a rua.
Para essa manifestação vieram várias pessoas de São Luís, inclusive o pessoal da Última Marcha, o Bruno e o Glésio de Petrolina, veio a Karina, o Leo e o Rafael (irmãos) de Salvador. A Karina trouxe uma caixa de livros anarquistas, xerox de livro. A galera vinha no sentido de fortalecer o grupo. A experiência da ocupação da Vila Irmã Dulce tinha ganhado uma dimensão significativa na rede anarcopunk e muita gente tinha curiosidade de conhecer o nosso cenário, o que estava acontecendo por aqui.
Ao longo de 1999 lembro dos shows na rádio 1º de Maio. Foi o ano mais intenso de vivência com o GEA. Reuniões aos fins de semana, shows com as três bandas juntas (Anarcóticos, Evidência, Ingovernáveis), o contato com o pessoal de São Luís, Fortaleza, Bahia. Quando foi em dezembro, o Demetrios e o Bal foram para um encontro anarcopunk…
Demetrios: Em Salvador no final de 1999. Eu e o Bal terminamos as provas do vestibular e viajamos dois a três dias depois. Ficamos cerca de duas semanas em Salvador em uma vivência punk.
Dante: Se não me falha a memória, de julho de 1998 ao final de 1999 – período que eu e Demetrios ingressamos na cena anarcopunk – não me recordo se alguns dos meninos já tinha dado rolê nesse período. O movimento tinha uma dinâmica de fazer um encontro a cada ano ou dois encontros a cada ano, um de pegada cultural e outro de deliberação, que discutia linhas de ações dos vários movimentos.
Nos encontros eram onde se davam uma certa “liga” num movimento que era totalmente fragmentado. Não tinha unidade nacional a não ser no sentido da pauta, da militância. Não tinha uma hierarquia, embora existissem pessoas de referência que existia um respeito e admiração.
O evento anterior tinha sido em Belém e o Bal esteve lá com o Elanderson.
Demetrios: Foi o evento em que dois representantes do Exército Zapatista de Libertação Nacional tinham estado. Foi aquele momento de propagação zapatista e a galera trouxe informações. Naquele momento se construiu um movimento pró-subcomandante Marcos. Ele emergiu como uma figura dos movimentos. Esses acontecimentos e informações que vinham de fora nos empolgava bastante.
Dante: Em 1999 o Encontro foi em Salvador. O Demetrios pode falar como foi a experiência, mas o que ficou é que a deliberação é que o encontro seguinte seria em Teresina.
Demetrios: Nos correspondíamos há algum tempo e tinha uma galera que tínhamos muita vontade conhecer. Nesse momento eu estava engajado na poesia, na dinâmica da literatura, que para mim funciona tudo ao mesmo tempo. Eram as leituras e os sons anarcopunks que estava curtindo naquele momento e percebi que dentro do movimento punk e anarcopunk se criou uma espécie de seguimento que era anarquista-literário.
Tinha uma galera de São Paulo, principalmente do interior como Campinas e Birigui. A rapaziada criou a Livre Associação de Poetas Marginais (L@POEMAS), tinha o Walter Alves, Japão, Boca e outros tantos caras. Essa rapaziada toda fazia uma militância anarcopunk com poesia. Quando encontrei com alguns deles foi uma conexão direta…
A poesia foi um elemento a mais nesse cenário cultural em que a música estava. Quando fui para esse evento tinha alguns caras da L@POEMAS e pude conhecer pessoalmente o Japão e o Boca. Conseguimos constituir um espaço de memória disso, dos fanzines, informativos, revistas.
Quando cheguei com o Bal (o Rafa foi pegar a gente na rodoviária), ficamos num espaço com 15 a 20 punks numa casa de dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Dormíamos igual sardinha na lata porque era muita gente em um espaço pequeno, porém, acolhedor, intenso. Era um espaço central em Salvador e facilitava bastante para os rolês. Dessa experiência, me marcou muito um cara chamado Grito, que trabalhava nos Direitos Humanos, e de um espaço no Pelourinho onde a galera se reunia, além das vivências na casa com a galera punk, as trocas coletivas, o cotidiano das atividades domésticas e os intercâmbios.
Lembro também de um cara que editava o Libera, um informativo que a gente tinha assinatura. Um camarada de Santos (SP). Esse foi um momento que tivemos contato com uma galera que se conhecia apenas por carta. Foi uma conexão massa. Voltamos com tudo isso na bagagem para fazer coisas em Teresina.
Depois, acho que em 2001, que eu, Dante e Bal e Baiacu fomos para outro evento em Fortaleza, na Ação Global dos Povos. Depois voltei a Salvador para um evento acadêmico de Filosofia, mas era desculpa. Os eventos acadêmicos de curso viraram desculpa para visitar os amigos a-punks em outros Estados.
Dante: Quando o Demetrios foi para Salvador com o Bal, nós (Dante e Demetrios) estamos tão engajados no GEA de forma orgânica, envolvido no processo de formação, organização, preparação, tudo. Nas viagens, ia uma comissão com a responsabilidade de trazer pautas para cá. Tínhamos deliberado para trazer o evento (Encontro) para Teresina.
Demetrios: Íamos ao evento com a obrigação de levar informações daqui e trazer as informações de fora. E o que foi mais louco nisso tudo é que nada disso passa por uma instituição. Não tinha estatuto, hierarquia. É só a vontade de fazer a coisa. Era o engajamento sem obrigação.
Dante: Eu fico sempre marcando nossos anos e idades (17 a 20 anos) porque é muito fundamental. A minha formação enquanto sujeito no mundo acontece entre 1997, quando começamos a ouvir música, até 2001, quando fizemos essas conexões por conta da Universidade. O GEA está ali agindo.
Os encontros eram momentos de socialização com a galera dos movimentos de outros Estados e que rolava uma unidade, reconhecimento enquanto movimento anarquista/ anarco-punk. Íamos tomando essas identidades (anarquista, punk, anarcopunk, punk niilista) nesses encontros, porque a gente ia encontrando a galera e isso não é formulado em nenhum dicionário, verbete ou um livro teórico que organiza tudo isso. Você vai se reconhecendo no fazer, baseado em leitura. A gente se formava enquanto grupo e identificava quem era o inimigo.
Em 2000, eu e o Demetrios estávamos na universidade, um pouco mais livres dentro da estrutura familiar para poder trabalhar e circular numa organização de evento. Estávamos desobrigados de escola, com pressão de pai, horário e vestibular para fazer. O ano de 1999 foi super-tenso dentro da família por causa do vestibular… 1999 foi um ano decisivo para mim e o Demetrios se meter no GEA.
Demetrios: Todo mundo, quando entrou na universidade, nós nos dividimos em cursos como Ciências Sociais, Filosofia, História e Letras. Até 2002, mais da metade do GEA entrou na universidade e começamos a militar na cena anarquista dentro da universidade, no movimento estudantil.
Dante: A experiência no GEA foi decisiva para estudar História e Ciências Sociais por conta da ligação com o que eu vinha me interessando.
Quando rolou o Encontro (Anarquista), o GEA estava na ativa, mas começava a dar sinais de atritos internos. Alguns amigos estavam em outra pegada de pensamento, numa linha de espiritualidade, com viés mais esotérico. Isso foi impactando dentro do grupo. Alguns que assumiram mais tarefas de fazer as coisas foram ficando mais distantes.
Quando foi se aproximando o período para fazer o Encontro pouca gente se comprometeu a cumprir as tarefas e viabilizar o evento. Acabou pesando muito para mim e Demetrios e alguns poucos.
Nós tivemos presença do Amapá, Pará, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Petrolina, Salvador, Juazeiro, acho que veio gente de Alagoas ou Sergipe. Não imaginava a quantidade de gente que aportou aqui.
Demetrios: Ainda rolou uns shows dentro na Vila Irmã Dulce.
Dante: Havia um movimento anticapitalista que acontecia no mundo no final dos anos 90, início de 2000. Rolou o Fórum Social Mundial e o movimento da Ação Global dos Povos. Em Fortaleza tinha um núcleo de articulação disso. Quando rola o evento, vem gente ligada a esse movimento, não necessariamente anarcopunk, como também veio gente anarquista, como vieram os niilistas, da região do Amapá e Pará. Tinha uma galera de tendências diversas.
Demetrios: No caso dos niilistas do Amapá e Pará eram tranquilos. De outras regiões não eram porque tinha conflito. Quando fui em Salvador teve conflito com os niilistas que estavam passando por lá, briga mesmo.
Dante: A hospedagem para a galera foi bem precária, dificuldade de comida, mas foi a experiência que ficou. A banda Última Marcha veio, os meninos da Bahia (Leo e Rafa) fizeram uma zoada também, Anarcóticos também tocou e o Evidência [sem o Demetrios, até o momento].
Demetrios: As pautas do evento foram questões anticapitalistas, informações sobre o exército zapatista, discussões sobre elementos culturais. Lembro de um debate: como, dentro do Nordeste, criar uma distro (distribuidora de material anarcopunk: demo-tapes, camisetas, fanzines, etc.) que pudesse ter material de diferentes lugares e distribuir. Conversamos sobre como aprender a se organizar. Que ações interligadas poderíamos fazer numa mesma data? A manutenção do Boletim Anarcopunk Nordeste. O Boletim foi rotativo. Eram pautas de organização, reflexão, discussão, leitura de conjuntura e vivência.
Importante destacar a tentativa de criar uma sede para o GEA, pois precisávamos de um espaço na Vila. Conseguimos tomar na marra uma casa construída para especulação, com apoio do Fofão, que ficou como liderança na Vila. Ele colocou a gente a prova: “eu tô aqui lutando, se vocês quiserem alguma coisa, venham lutar também”. A localização da casa era ótima, na primeira rua, do lado da escolinha “4 de junho”, que é a data da ocupação.
Passamos para dentro. Eu e o Bal dormíamos lá. Quando entramos na casa, apareceram os donos. Ele (“dono” do imóvel) colocou os pais para morar lá. Era um negócio constrangedor. Eu e o Bal com o senhor e a senhora lá dentro. Até que eles não aguentaram. Nós pagamos o valor do material (com o caixa que arrecadamos no GEA) de construção para o “dono” da casa (uns R$ 150,00 a R$ 170,00 na época) para ele não ficar no prejuízo e ficamos com a casa.
Só que todo mundo tinha atividade e não conseguimos transformar aquele espaço num centro nosso como queríamos, fazer biblioteca e espaço para as reuniões. A gente sonhava com isso. Como não conseguimos manter o espaço, em dado momento o Fofão passou aquele lugar para o Dionísio morar. Esse espaço é significativo na Vila porque a gente não teve o centro como imaginávamos, mas a casa do Dionísio funcionou nesse sentido. O Dionísio trabalhava ou ainda trabalha com som e tocava no Evidência, montou um estúdio nessa casa onde rolavam alguns ensaios.
Em 2000/2001, o Dionísio me chamou para entrar no Evidência e eu era o único da banda que não morava na Vila. A formação da época tinha o Fofão no baixo-vocal, Dionísio na bateria, David na guitarra e eu no vocal. Com essa formação fizemos uns quatro shows entre Clube dos Diários, Bohemia, Coisa de Negro. Nesse momento a Ingovernáveis e a Anarcóticos não estavam mais em atividade.
Aristides: Quem do GEA morava na Vila?
Demetrios: Fofão morava lá embaixo, perto do pé de pequi, com a família dele. O Carioca morava no morro do Chacal, um lugar bem alto que tinha uma vista da Vila toda. A casa do Dionísio ficava no início da ocupação e abrigou a galera no evento (Encontro do GEA) e parte das discussões rolavam nesse espaço dele. Além de ensaios. Alguns de nós criaram um laço de pertencimento com a Vila mais profundos.
Aristides: Como foi o ponto de virada do GEA para a Universidade?
Dante: Importante destacar a presença do professor Mariano Deni, porque ele faz essa ligação do GEA com a Universidade. É um cara formado em Filosofia e que fez mestrado no Rio de Janeiro. Quando ele voltou, acho que em 1999, ele sabe do GEA e fica super interessado. Ele soube de uma reunião e foi assistir. Criamos uma boa relação com ele. Se tornou um amigo da família. Mariano não era assumidamente anarquista, mas tinha uma pegada libertária. Ele é nossa conexão acadêmica.
Demetrios: Ele foi meu professor de Introdução à Filosofia na Universidade. O GEA era novidade no cenário acadêmico daquela época.
Dante: Depois do Encontro do GEA, em 2001, veio a Ação Global dos Povos em Fortaleza. Fomos convidados para o encontro que rolou lá, numa articulação maior dos movimentos sociais anticapitalistas. Não era um encontro anarcopunk. 2001 ainda está rolando o GEA, ativo, mas com fragmentações. Eu, Demetrios e Bal fomos para lá. Ficamos uns 15 dias em Fortaleza, cerca de uma semana após o evento, na casa do Pastel, um punk do movimento de lá.
O Encontro foi num sítio em Messejana. Tinham professores universitários, membro de sindicato, movimento social agrário… Ali foi uma conexão que abriu para uma compreensão maior.
Demetrios: Mantivemos contato com a galera de Fortaleza por muito tempo.
Dante: Em 2001 fomos a encontros universitários com o propósito de fazer conexões com a galera do movimento de outros Estados. Na semana santa de 2001, fui para Natal e encontrei a galera que esteve aqui e conheci mais gente lá. Depois fui em João Pessoa e conheci a turma anarcopunk da cidade. Encontrei o Baiacú nesse rolê, quando cheguei em Natal, ele tinha passado por lá e quando cheguei em João Pessoa, ele estava lá. Ele me recepciona e faz as conexões.
Mas qual é essa de rompimento com o GEA e a Universidade? Eu, particularmente, não digo que fiz uma militância anarquista dentro do movimento estudantil na Universidade.
Demetrios: Cara, a gente fez! Vou discordar.
Dante: Vou dizer minha parte. A gente era anarquista e estava imbuído disso, mas dentro da institucionalidade do Centro Acadêmico e DCE (Diretório Central dos Estudantes), nem cheguei a participar de direção de DCE, mas de Centro Acadêmico, estávamos agregados com mais gente. E lá tinha movimento organizado por partido político: PSTU, PT, PSB com influência nas Ciências Sociais, meu setor, e a LBI (Liga Bolchevique Internacionalista). Quando eu digo que não era [anarquista] é porque a gente não encampou, por exemplo, como esses partidos encamparam formação de chapa no Centro Acadêmico. A gente atuou junto ali dentro, mas não disputava força e se identificava como quem estava ali. Você identificava esses grupos organizados, e nós não. Éramos vários anarquistas, mas dentro daquela dinâmica política.
Demetrios: Mas nós divulgamos outro conjunto de ideias que não era igual dos outros e que muita gente conheceu. Fomos referência no Centro Acadêmico de Filosofia.
Dante: Na Filosofia teve um pouco mais disso.
Demetrios: O negócio encorpa. De 2002 para 2003 – porque a gente manteve o C.A. de Filosofia por muito tempo com a mesma galera, por uns 4 ou 5 anos – lá virou um foco que tinha uma orientação anarquista. Tinha uma presença teórica, mas nem todo mundo tinha o espírito anarquista.
Estávamos imbuídos do voto nulo e não queríamos nos institucionalizar. No máximo, a gente conseguiu os CAs. E na militância dos CAs demos a nossa contribuição e divulgamos o nosso pensamento. Dentro do CCHL, com três ou quatro anos, tínhamos mais gente que aderiram às ideias anarquistas do que a LBI, por exemplo, ou até mesmo alguns outros partidos.
Tanto é que os anarquistas tinham uma representatividade. Nas manifestações, os anarquistas estavam sempre na frente.
Eu lembro da invasão da Reitoria, não sei se em 2001, a galera do PSTU e DCE, em cima de um carro de som diziam: “vamos tirar uma comissão para falar com o Reitor”, e a gente: “vamos invadir essa porra!” Enquanto um gritava “vamos tirar uma comissão”, a galera meteu o pé por cima da porta e invadiu. Foi tão maluco que ninguém botava fé que dava para invadir a Reitoria.
Enquanto estávamos lá dentro, o PSTU ficou pensando na comissão.
Só que ninguém tinha se organizado para sentar cara a cara com o Reitor. E a gente ficou: “e agora?” Não tinha uma ideia que, naquela manifestação (não era um negócio tão grande assim), a gente conseguiria, mas quem meteu o pé foram os anarquistas.
Dante: Tenho uma coisa a considerar. Estamos falando de uma coisa que não era mais GEA. Tu fala de uma galera ligada a ideias anarquistas. Em 2001, a gente não mantinha aquela constância de reunião, encontro e debate. Nós tínhamos a referência do GEA, porque todos nós estávamos perto e éramos anarquistas. Mas não era um GEA organizado, aquele da Vila Irmã Dulce.
Demetrios: De certo modo era uma espécie de “GEA”, de movimento estudantil. Foi um outro momento de experiência, porque já tinha acumulado a experiência da Vila. Mas tu tem razão, Dante, não existiam mais reuniões do GEA por 2001/2002, quando eu estava no Evidência. Lembro de ir pra Vila Irmão Dulce quando ninguém ia mais, só que eu ia pelos ensaios da banda.
Dante: O que levou o fim do GEA foi a desintegração das pessoas de referência. Depois entramos na Universidade, a galera foi trabalhar, o Fofão estava com família. Isso foi desmobilizando. Quando entramos na Universidade, encontramos outro espaço de sociabilidade e construímos outras relações ali dentro. Isso foi distanciando. A gente não se reunia mais, não tinha a dinâmica de militar organicamente e isso foi contribuindo para se esfacelar.
Demetrios: De fato, Dante, o GEA acabou, mas pra gente surgiram outras coisas, não paramos de atuar… Tu foi se dedicar a discussão e ao movimento agrário, eu fui atuar no movimento cultural/literário. Não paramos de lá para cá. Diferente de outros que abandonaram a causa e o engajamento, ou até mesmo passaram a negar o que fizeram na época do GEA.
[1] Sin Dios foi uma banda hardcore punk formada em 1988 na Espanha. Suas letras tratam da difusão dos ideais anarquistas/libertários, assim como das lutas da guerra civil espanhola. Todos os cds são editados em formato de livro que contém as letras das canções, explicações, textos e desenhos relacionados, incluindo também informações das atividades de grupos revolucionários.
Que entrevista massa, gostei de conhecer o movimento punk de Teresina, pena não ser desse tempo pra ter vivido isso.