Crédito da foto: Talita Rebello.
Gabriella Ane Dresch nasceu em Curitiba. É graduada em Ciências Sociais e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Participou das coletâneas As Coisas que as Mulheres Escrevem (Editora Desdêmona) e Banquete (Palco das Artes). Tem contos e poemas publicados no jornal O Plural (PR), na Folha Poética (RN) e no projeto Vivas!, do Mulherio das Letras.
Em 2024, publicou o seu primeiro livro: Cartografia das Miudezas, pela editora Patuá.
(https://www.editorapatua.com.br/cartografia-das-miudezas-poemas-de-gabriella-ane-dresch/p).
Cinco poemas
Chega um tempo em que
a memória borra
perde contornos
vira a lembrança
do relato da lembrança
Para resgatá-la
é preciso escrevê-la
transformar
causo em
conto
voz
em traço
passado
em prosa
***
Lourdes
Lourdes se lembra
das toalhas bordadas da casa da mãe
da receita de agnolini com frango
da voz veludo do finado marido
do carro verde oliva da vizinha
financiado em 1973
Esqueceu
que a idosa ao lado é sua filha
que a neta entrou na faculdade
e que não pode mais beber vinho
toda noite antes de dormir
Dona Lourdes não sabe
quantos anos tem
onde mora hoje
ou quem a visitou ontem
Mas ontem
Dona Lourdes se lembrou
do meu nome
***
Salete
Aos 13 anos
Salete se levantou
sangrando entre as pernas
Correu para a mãe
acuda, acuda!
Que doença era aquela?
Talvez tivesse chegado
a sua hora de partir
Nada disso
revelou a mãe
agora tu é mulher
as regras vêm todo mês
é melhor tu se acostumar
E cuidado!
A partir de hoje
encostou,
engravidou
Salete permaneceu imóvel
já que a mãe não lhe disse
onde
***
Osmar
Ainda moço
Osmar se tornou pescador
mergulhava no Rio das Flores
em busca de sorrisos naufragados
Resgatava as dentaduras perdidas
dos colonos de folga
***
Sérgio
Sérgio tem um vício
ele não resiste
às garrafas de plástico
jogadas na sarjeta
seu tipo preferido
é o corote azul
ele corre
descontrolado
agarra e lambe
em êxtase
primeiro a tampa
depois do resto
temo que um dia
ele se engasgue
ou pare de respirar
afogado na própria saliva
Sérgio,
para o seu bem
amanhã
vamos ao veterinário

Cartografia das miudezas nos apresenta um microcosmo de poemas inspirados em histórias reais, entrelaçadas em diferentes tempos e espaços. O livro traz uma coleção de momentos precisos que subvertem as expectativas de quem os lê, contados a partir de uma experiência marcada pela oralidade. As perspectivas, majoritariamente de mulheres, exploram a beleza das miudezas do cotidiano. Embora possa parecer um projeto despretensioso, aos poucos o que se revela é uma teia narrativa de versos que visitam macro questões, como gênero, migração, o urbano e o rural, desigualdades sociais e de classe, conflitos geracionais e violências. Esta rede vai cartografando a história, as suas relações internas, tensões, vínculos, estranhamentos e distanciamentos. Assim, do particular, recolhido ao convívio familiar, as lembranças se tornam não mais parte de um relato da autora, e sim um relato capaz de se conectar com todas as pessoas.
nossa , me encantei e ri muito com esses poemas .