por Fábio Christian
Eu sou ateu! Premissa exposta, meus princípios de criação não se enquadram a denominadores tais: “o artista é um deus!”, “o artista e sua criação divina”, “ele tem o dom da criação”. Ou ainda, qualquer variante de origem cultural cristã onde “deus fez o homem sua imagem e semelhança”. Afirmações legitimadas filosófica, cultural e socialmente quando herdadas das relações europeias entre artistas e mecenas. Relação que se restringia a um rei/senhor que protegia um determinado homem prodígio em troca da exclusividade de sua arte genial somada a uma fração de seu status, parindo assim, um pequeno deus feudal.
Meus processos de criação são processos de construção artística onde o mundano, o caos, o amor, a raiva, as emoções e seus conflitos são arquitetados, fundamentados e erguidos através de técnicas e estratégias que as organizam e transformam em concreto comunicável e túrgido de sentidos (música, filme, livro, peça…). Não me convém criar ‘como deus sua imagem e semelhança’ à espera do descanso do sétimo dia. O que convém é importar-se com a continuidade do processo que é vital, como é vital a passagem da água através de nossas torneiras cotidianas. Com a clareza dessa contextualização, me dou o prazer de analisar e decupar meus processos de construção, e compartilhar aqui seus reflexos, escritos em uma imprecisa linha do tempo evolutiva de conhecimento.
CAOS E EMOÇÃO
O caos e a emoção são meus primeiros elementos de construção artística em qualquer projeto que me envolva. Ancestrais, ambos partem de um ponto concreto, lei, forma, padrão, regra gramatical ou axioma irredutível que por uma questão de criatividade, precisa ser quebrada, refeita, questionada, distorcida, desconstruída, reorganizada.
A fragmentação é o caos, a emoção é o reflexo dele. Sua interação estrutural é a ponte entre as linhas do abstrato e de novas possibilidades de concreto. A grosso modo, é como observar um redemoinho de folhas e dali imaginar uma coreografia, uma canção, uma outra conexa ideia qualquer, e, quanto pensamento, com possibilidades de existência.
Com precisão, esses elementos me vieram na infância com o manejo de uma câmera VHS. Na máquina, experimentava todas as possibilidades ao mesmo tempo que aprendia aleatoriamente sobre suas funções e possibilidades: zoom, íris, exposição, velocidade, ângulos, perspectivas e como cada função refletia nas imagens produzidas. A emoção guiava o rearranjo do caos gerado pela fragmentação, e dali, dezenas de fitas VHS de imagens aleatórias. Talvez a palavra que mais se aproxime da síntese desses elementos seja insight. Não há certeza.
MINIMALISMO
Na minha prática, antes de escolha artística, o Minimalismo se fez nascer pela escassez de recursos técnicos, estéticos. É um elemento de construção que uso de forma frequente, seja na poesia, música, vídeo, teatro ou dança. Dá a possibilidade de sintetizar um universo estético amplo em curto espaços de tempo, palavras, movimento, em tudo que for passível de ser minimal.
Com continuidade, a câmera VHS foi minha escola minimalista, sobretudo na produção de pequenos filmes editados na própria câmera. Há diferentes possibilidades nessa construção: em Maquetes Loucas (Poeirão/2002), o minimalismo é uma escolha estética consciente. A repetitiva letra de uma estrofe de quatro versos, contrasta com o significante (forma/corpo) de cada palavra, e na armadilha da imagem, carregam possibilidades de maior espaço.
Potência de existir!Essa mesma fórmula de uso minimalista na escrita poética se repetirá em “Zé Mané” (“Variações Sobre Um Tema de Maria”), do Eletrosilva, a diferença é o uso da apropriação de um trecho da letra da canção de Maria da Inglaterra como obra-prima, e no resultado final, adicionada a voz da própria Maria como sample. A canção foi regravada pelo Fábio Crazy & Os da Silva em 2019.
No videoclipe produzido para “De Volta Ao Pó” (Vol. 1/2017) do Eletrique Zamba), a escolha da linguagem minimalista foi determinada pela escassez financeira para a produção do filme, a partir disso, todo o processo foi baseado em escolhas minimalistas, fossem técnicas, fossem estéticas; escolha da música, locação única, uma câmera, preto e branco. A mesma estratégia se repete para o videoclipe de “Cerimonialista”, de Valciãn Calixto, ambos sob minha direção. Importante lembrar que minimalismo não significa baixa qualidade, mas um caminho que opera no pequeno.
APLICAÇÃO DE TÉCNICAS DE UMA LINGUAGEM EM OUTRA
Hoje, minha principal perspectiva de construção artística, mais do que o cruzamento de linguagens, é o cruzamento de suas técnicas, estratégias e pensamentos. De novo a grosso modo, é fazer uma canção como se fizesse uma peça de teatro. O teatro e a música foram minha primeira experiência com a prática. Com maior precisão, no álbum “Poeirão”. Que não se entenda, um álbum teatral ou que possua certa dose de teatralidade performática, mas se trata de aspectos de construção, estabelecendo estratégias, gatilhos usados na construção teatral aplicados na construção musical, ou melhor, na construção de um álbum.
Desenvolvido para experimentar de que maneira isso refletiria na qualidade artística do resultado final, a estratégia gerou um álbum que propositalmente, traz um recorte de um período cultural específico, onde a fusão das linguagens tradicionais e contemporâneas eram uma fonte disponível de possibilidades que no álbum, se unem dramaturgicamente através de um ônibus coletivo.
A dinâmica dramaturgica, a espacialidade e a imageticidade, também são resultados desse cruzamento e está presente de muitas formas, desde a elaboração do conceito tema, composição, passando pelas timbragens, até intenções de canto. Outro álbum que se pode observar também a presença dessa estratégia, é o “Vol. 1” do Eletrique Zamba, principalmente na sua linha dramaturgica e no seu conceito central. Essa prática é uma constante no meu trabalho cênico (teatro/dança), principalmente nas questões vinculadas a ritmo e dinâmica.
PESQUISA
A pesquisa me nasceu como modo consciente através de estudos de novas práticas de dança, teatro e música. Foi adquirida principalmente através do Núcleo de Criação do Dirceu e da Escola Superior de Artes de Amsterdam onde fui aluno residente no departamento de teatro/mime. A pesquisa, para mim, consiste na munição de subsídios, conhecimentos que tragam outras perspectivas ao caos e a emoção do princípio (insight/brainstorm).
Essas perspectivas podem ser de sentido, de estrutura, de forma, de contexto. Há muitas possibilidades desde o ponto de partida: textos filosóficos, literários, históricos, imagens, filmes, tudo que for possível se relacionar com a primeira ideia, independente das distâncias de relações entre elas, mas devem, no mínimo, tocar-se dedo a dedo.
O instinto é algo imprescindivel na minha relação entre pesquisa e primeira ideia, muitas das vezes, uma pesquisa me diz que o melhor é voltar para a ideia inicial. Trabalhos que tiveram uso imprescindível de pesquisa. Mefisto Brasileiro (dança/teatro), “O Circo das Palavras” (teatro infantil), “Vol. 1” (Eletrique Zamba), “MachinaCarne” (video/dança), “Catirina Soundscape” (trilha sonora para teatro), O personagem Djalma do curtametragem Bruma e todos os que trabalhei como intéprete criador com Marcelo Evelin.
DESLOCAMENTO
Esse artifício é bem comum e muito usado nos trabalhos que usam o cruzamento de linguagens distintas e distantes, como a mistura forró+rock, por exemplo. É quando se desloca um elemento estético por outro que não tenham aparente relação, mas se relacionam no campo da semiose, por exemplo. Está presente em “Presentim” (Poeirão) e “De Volta ao Pó” (Vol. 1). Na primeira, o discurso lírico é coerente ao ritmo embolada e de sua tradição ao citar elementos como “peça de fazenda”, “fulô de mandacaru” e “farinha para fazer beiju”.
Já ao apresentar referências como “filme do bruce lee” e “roupa de kung fu”, há um deslocamento de sentidos (ou da falta dele), onde a imagem formada é hilária e distópica, e ao mesmo tempo que preenche a falta desse sentido, ela constrói outro. Na segunda, “De Volta Ao Pó”, também há certa comicidade no deslocamento quando coerentemente o discurso lírico se pauta no ritmo samba, dor de cotovelo, niilismo de amores baratos profundos, mas se desloca quando o agente daquele universo é um punk e sua guitarra.
Gerando aí a continuidade de uma dor que vem dos sambas-canção de outrora para atingir o peito de novas tribos/gerações. Diferente da primeira, aqui o deslocamento provoca uma imagem mais aceitável, pois pra dor não há idade, estilo ou geração. Também é possível usá-lo em performances cênicas e em arranjos musicais.
PROCESSOS PARA O EFÊMERO E PARA O CONCRETO
O Teatro e a dança são linguagens, em parte, efêmeras. Seu resultado final finda-se a cada vez que se encerra uma apresentação. Na próxima, será o novo do mesmo, considerando que para o performer, nunca será a mesma energia da mesma peça. O que garante ao teatro uma certa perenidade é o texto (no teatro de texto). Através dele, do texto, ou de uma peça musical como Sacre Du Printemps, composta para uma peça coreográfica, por exemplo, é que essas linguagens se tornam renovavéis. É como a Fênix!
A música, o vídeo e o cinema, são linguagens perenes. Não morrem em decorrência de princípios que possibilitam seu registro em mídias físicas, e diferente do teatro e da dança, suas performances são únicas. Esses fatores determinam diferentes processos de construção para cada um. No teatro/dança, independente da estratégia de construção escolhida, há a necessidade de uma imersão mais profunda no caos e na emoção (meus elementos primários).
A disponibilidade física intensifica o mergulho nos temas centrais e objetos de pesquisa, e geralmente, a intensidade de sentimentos provocados durante o processo como um todo, sempre marca profundamente. Outro aspecto acerca desses processos, notado durante a última apresentação da peça Matadouro de Marcelo Evelin em 2019 em Viena, depois de sete anos sem apresentar, é que o processo de uma peça de teatro/dança nunca se encerra!
No cinema e vídeo, me dedico a desenvolver processos que evoquem o efêmero para registrá-los em registros perenes. Na música, sigo um estrito caminho, que se inicia na composição e teor lírico, passando pelos arranjos que atualmente, prefiro sempre que estejam frouxos, passíveis de mudança e de colaborações, assim foi o processo de arranjos do Vol.1 (Eletrique Zamba).
Estabelecemos que os músicos acompanhantes só tivessem contato com o repertório no momento da gravação. Uma estratégia desenvolvida para possibilitar o registro do frescor da criatividade e a eclosão de ideias que nós não teríamos. A expansão da qualidade artística resulta positivo quando não cerceada por estéticas segmentadas e pré estabelecidas. Não considero apenas técnicas as fases de mixagem e masterização, levo em conta que há uma rica paleta dramaturgica e de sentidos em diferenças de volume, aplicações de efeitos e manipulação de frequências, portanto…
SAMPLES E APROPRIAÇÕES
Samples têm uma presença constante nos meus processos. Considero-os tanto no sentido conceitual original da palavra: uma amostra de algo. Quanto no sentido apropriado pela cultura Hip Hop ao usar trechos de músicas, áudios de filme, etc. É um elemento caro pra mim, pois ao escolher um sample, existe em uma única ação, a revisitação de uma obra, uma citação e o reconhecimento direto de uma influência, portanto, sua grande importância.
No álbum “Narguilé Hidromecânico”/1997, o conceito do uso de samples é visual (conceitual). As vinhetas entre as músicas, apesar de autorais, foram “sampleadas na forma de uso, inspirado pelo álbum “A Sociedade da Grã Ordem Kavernista apresenta Sessão das Dez”. A capa, uma imagem sampleada de uma enciclopédia sobre drogas, as imagens do encarte de quadrinhos underground.
Em “Poeirão”, o uso do samples é usado de forma tradicional a do Hip Hop, e ao mesmo tempo que amplia e legitima uma discussão, ela faz uma ponte temporal entre duas culturas distantes entre gerações, como em “Jumento Bom” e a intervenção da voz de Luiz Gonzaga. Em “Vol. 1”, o uso dos samples é imprescindível para a estética do álbum e é usado de diferentes formas.
Em “Preta Vambora” com intervenção da voz de Jorge Ben, segue a mesma estratégia usada em “Jumento Bom”. Em “De Volta Ao Pó”, com a voz de Pete Thousand, amplia o discurso, dando-lhe um viés insólito e multicultural também encontrado em “Cínica”, onde os samples usados são trechos do filme “Laberinto de Pasiones” de Pedro Almodóvar e o tango “Loca” de Manuel Jovés e interpretada por Juan Darienzo y su Orquestra Típica , onde além do teor multicultural, esses samples intensificam a sexualidade da faixa.
A trilha sonora teatral “Catirina Soudscape”, foi construída com 70% de sua arquitetura baseada em samples, tanto para ampliar e construir sentidos quanto para criar beats. Os outros 30% são sintetizadores. O resultado foi incomparável em produção de atmosferas e paisagens sonoras. Atualmente, também componho a partir de samples. Por exemplo, quando ouço um trecho de um potencial sample, toda a letra, harmonia, discurso estético, é desenvolvido a partir dele, como é o exemplo de “Feminícidio”, single do Eletrique Zamba, lançado recentemente.
PROCESSOS COLETIVOS
Considere agora que toda a minha abordagem reflexiva acerca de processos de construção artística são vinculadas ao coletivo (banda, álbum, peça, filme), portanto, o cruzamento de processos é fator que deve-se, além de lidar com, usá-lo como uma possibilidade positiva. Também muda a forma do processo, dependente da função que se exerce dentro do projeto, se diretor, músico ou performer.
Meus processos como diretor cinematográfico e teatral é catalisar na equipe, uma ramificação de processos que se converjam em direção ao resultado final. Como produtor musical, função que desenvolvo no selo Solar6Voltz Discos com meu parceiro Levi Nunes, eu construo meus processos em razão do conceito do álbum que estou produzindo no momento, onde o segredo particular é, antes de tudo, compreender a linguagem e identidade de cada álbum/banda.
Em “Tempo Inflamado”, de Daniel Felipe, o processo se baseou bastante em discussões filosóficas que linkassem timbres, instrumentos, dinâmicas e frequências ao discurso político/poético do álbum; em “O Caminho é Pra Frente” do PhunkBuda, procurei catalisar, principalmente no vocal, maneiras de preencher os espaços harmônicos com mais coerência. Em “Ruas Que Sangram”, do BxDxRx, foi desenvolver estratégias simples de captação e execução para registrar a rudeza da banda; e em “Carnawood”, processo mais sofisticado, com objetivo de ampliar o discurso político da banda com adição de elementos em estúdio, sobre os excelentes arranjos já desenvolvidos.
A MATÉRIA PRIMA
Acredito que não há possibilidades de processar um devir artístico sem repertório cultural ou de conhecimento. Claro, há um longo alcance nessa premissa. Se compararmos Mestre Dezinho e Ai Wei Wei, um autodidata, o outro, acadêmico, mas ambos têm dentro do seu próprio uniiverso, cargas culturais e de conhecimento necessário para que cada um expresse suas questões vitais em suas obras.
Minha matéria prima principal são as que me fundamentaram na infância e adolescência. O punk, nos seus princípios éticos, estéticos e subversivos, a literatura e o cinema. Somado a isso, acompanha-se a carga cultural que adquire-se cotidianamente através da curiosidade de novas formas e conceitos. Provavelmente, todos interesses que têm alguma ligação afetiva com aquilo que o define como um ser existente. Não acredito “no artista e sua obra”, para mim, “o artista é sua obra”. São indissociáveis.
No mais, processar um devir artístico deve ser olhado com o olhar da liberdade, com compromisso, mas sem dar-lhe tanta importância e com aberturas de possibilidades de fracasso. Pois “não pode ser obra de arte, se não tiver tendências ao fracasso!”
Crédito da foto de abertura: Lunara Marques