Quinta Maldita – Processo de Criação

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Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em Literatura (UFSC) e professor de roteiro no curso de Cinema da UNISUL. Músico, roteirista, poeta, escritor e idealizador do programa Quinta Maldita (na webrádio Desterro Cultural) e do PIPA Festival de Literatura (na companhia de Juliana Ben).  Tem vários livros publicados e “Cerzindo e Cozendo” [Butecanis Editora Cabocla, 2020, poemas] é sua publicação mais recente.


1 – Pré

Posso dizer, de modo simples, que o Quinta Maldita é uma resposta às minhas inquietações, no caso, uma das respostas ao enfadonho mundo que aí está. Óbvio que essas inquietações não são de hoje. Acompanham-me em forma de gritos. Muitos ganham o espaço e outros permanecem presos na garganta. Por isso, digo com frequência, acho que deveríamos gritar mais, que deveríamos berrar mais, bem mais do que as poucas vezes que berramos. É óbvio que se berrarmos juntos a ação se torna ainda mais pulsante. Assim, indo direto na jugular, afirmo que para organizar um projeto como esse não basta ser inquieto e gritar, foi necessário juntar a minha inquietude (os meus gritos) com outras tantas. O que me possibilita, sem exageros, afirmar que o Quinta Maldita é um programa que se mantém em plena atividade por conta da coletividade, no caso, pela quantidade de pessoas que se envolvem e que se dedicam a berrar juntas para que o programa siga a plenos pulmões. Há parcerias com blogs, sites, saraus, revistas, e coletivos de poesia. Já fizemos programas, por exemplo, em que a curadoria ficou a cargo de Ronald Augusto (A Voz Pública da Poesia – Porto Alegre-RS); Silvana Guimarães (Germina – Revista de Literatua & Arte – Belo-Horizonte-MG); Paulino Júnior, participante ativo dos programas e que montou três edições, duas delas do Palavras Revoltas I e II; Matheus Guménin Barreto também montou dois (Ruído Manifesto – Cuiabá-MT); Rodrigo Naranjo, que realizou uma leitura de Santiago–CL; Abrasabarca (um coletivo de mulheres de Florianópolis-SC, parceiras desde o começo); Deborah Garcia Boeira e Douglas Gomes Dos Santos (Sarau da Tainha – Balneário Camboriú-SC); Cristiano Moreira, amigo de longa data e parceiro em tantas ações (Tipografia Papel do Mato – Rodeio-SC); Alice Souto e Joana Golin (do Sarau Nuvem Colona – Chapecó-SC); José Inácio Vieira de Melo (Poesia na Boca da Noite – Jequié-BA); Everton Luiz Cidade (São Lepoldo-RS); além de outras contribuições realizadas pelos amigos Ricardo Rojas Ayrala (Buenos Aires-AR), Jorge Vicente (InComunidade, Lisboa-PT), Helena Barbagelata (Lisboa-PT), Eduardo Sinkevisque (São Paulo-SP), Carlos Henrique Schroeder (Jaraguá do Sul-SC); e de três saraus realizados em Porto Alegre-RS. E vêm outras tantas parcerias por aí, ou seja, espero que a “brincadeira” só aumente.

2 – Começo

Acho que mesmo assim é possível achar um momento em que tudo começa, sabendo que a vida é feita de começos e ao mesmo tempo de preâmbulos que, no final, remontam às histórias com as quais nos reinventamos. No caso do Quinta, o programa teve início com o convite que recebi do Marcio Fontoura, da Desterro Cultural, a partir de uma parceria que seria transmitida pela web rádio. O convite se deu por conta de uma leitura pública do meu livro Café Com Boceta (Butecanis Editora Cabocla), em junho de 2017, na Cervejaria Sambaqui, e que dei para a iniciativa o nome de Quinta Maldita, pois o evento estava marcado para às 23h50 de uma quarta-feira com o intuito que a apresentação transbordasse para o dia seguinte (na leitura, ainda, fui acompanhado ao pandeiro pelo músico Oswaldo Pomar). A partir do convite comecei a confabular o que e como fazer, ajustando a possibilidade do programa às demais atividades que desenvolvo. O ponto da partida, e esse é um ponto que demarca a situação toda, foi aquilo que me desagradava nos programas que ouvia. Assim, aos poucos a ideia foi ganhando corpo, focada na tentativa de montar algo que eliminasse as faltas de vontade que eu tinha de ouvir podcasts de literatura /poesia e ir, ver ou participar, em saraus.

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3 – O que é

É um sarau-programa-de-rádio-podcast em que o foco está na oralidade, ou seja, em poemas sendo ditos, lidos, falados, gritados, gaguejados. Já estamos beirando os cem programas, somando os eventos, e todos eles temáticos. Sempre tenho mais que um tema na manga e outros surgem e vão fazendo parte dessa lista. Muitas vezes compartilho essas ideias com amigos próximos e procuro identificar quem possa participar. A proposta, desde o começo, era com o intuito de realizarmos programas editados e ao vivo. Os ao vivos, em dois formatos diferentes: um deles, uma leitura de poemas em um espaço público, com transmissão pela web rádio e com um número pré-determinado de participantes; o outro, um sarau com convidados e microfone aberto (os saraus duram em torno de três a quatro horas). Em relação aos editados, o tema é acompanhado por um pequeno texto com algumas referências de escritores e escritoras, filmes, canções… a que chamo de dispositivo de escrita. Depois parto para os convites considerando o estilo das autoras e dos autores?. que conheço, e conto com a contribuição preciosa das amigas e dos amigos que sugerem outros nomes para compor cada programa. Convido, normalmente, entre dezesseis e vinte autores?. Quando recebo os áudios, monto um corpo de vozes. Penso em uma narrativa possível. O que permite esse jogo narrativo é a definição do tema. A ideia principal dos programas, ainda, é fugir dos protocolos e dar força para os textos. Por conta disso, os créditos desses, na maioria das edições, é dado no texto de descrição que acompanha esses registros nas diversas plataformas.

4 – Preâmbulo do começo

Quando era adolescente, isso lá na década de 1980, em Chapecó-SC, uma cidade do interior do estado e que, à época, oferecia poucas opções artísticas, culturais e de lazer, perguntava-me a respeito da inanição do poder público em oferecer eventos que pudessem dar uma resposta aos jovens, para além das opções que tínhamos: se reunir nas sextas pra fazer churrasco e beber; aos sábados, jogar futebol, fazer churrasco e beber (no restante da semana as opções eram praticamente as mesmas). Todavia, o maior conflito se dava aos domingos, quando passava pela avenida principal da cidade e via as pessoas sentadas nos carros, reproduzindo (numa disputa ruidosa para ver quem tinha o melhor alto-falante) os modismos musicais e bebendo: a sensação que ficava pulsando no corpo, ao ver essa cena se repetir, era de um marasmo propositalmente compactuado entre a mídia e o poder público. Comento isso pois a minha primeira resposta foi com a música, com uma canção que fiz perambulando pela cidade e observando as faltas de possibilidades (link: https://open.spotify.com/artist/4A9V7oy50EBT0h0xyZlxeV) (foi e continua sendo).

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Ao mesmo tempo, quando via um evento promovido pela prefeitura, e que nele se apresentavam os “artistas da cidade”, chegava a ficar nauseado, afinal, eram de uma cordialidade com o poder público, que chamá-los de puxa-sacos seria quase um elogio. Sem contar a ladainha protocolar que movia esses eventos, em que tínhamos que ouvir mais sobre a suposta importância do artista do que perceber naquilo que o artista fazia algo que fosse realmente relevante. As apresentações eram medonhas ou impregnadas de um ranço que já estava exposto na grande mídia. De fato, uma corruptela local da merda que circulava no cenário nacional.

5 – Tradição

Das tantas façanhas que o famigerado mundo moderno produz, talvez nada seja mais escroto e contraditório que aquilo que conseguimos enquadrar como tradição. Contraditório, pois a ideia de moderno quando surge se justificava por um combate à tradição e não por aquilo que hoje não passa, se não estou sendo apressado demais nas minhas considerações, de um alimento. O fato é que na esteira da dita cuja tradição, essas cidades interioranas criam os seus artistas/poetas de estimação. No caso, o açougueiro é o açougueiro pelo fato de comercializar a carne, o padeiro o pão, o leiteiro é o que lida ou entrega o leite, e o poeta, com raras exceções, é aquele que publicou um livro pra bajular o prefeito, o poder público, a cidade, os artistas locais, e é um jogo de troca que a palavra hipocrisia é capaz de passar vergonha. Ou seja, a referência se dá pelo simples fato de passarem a impressão de serem os únicos que o fazem naquela localidade e, como consequência, são os únicos que o fazem por respeitarem o jogo sórdido dos poderes públicos instituídos. Rapá, vou te dizer, isso é de enjaular louco em galinheiro. Afinal, na maioria dos casos, essa “poesia” escrita nesses nichos não vem como combate crítico da putaria generalizada que rege a estrutura, mas como validação daquilo que é o cuscuz com leite do dia a dia de uma cidade provinciana. Em menos palavras, ver os (que se chamam de) artistas/poetas babando o ovo de um reacionário do caralho é algo do mau hábito do dia a dia que impera no vasto sertão brasileiro, um espelho desmiolado do litoral, onde o moderno é sempre cupincha da retrógada tradição.

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6 – O Quinta

Assim, o Quinta surgiu pra ser um espaço democrático, crítico e de diálogo com a escrita poética contemporânea, independente de onde esteja sendo realizada. Um programa que é produzido a partir de Florianópolis-SC, que dialoga com a cena local, estadual, mas que se coloca para além das famigeradas fantasias locais. Um espaço para que as pessoas gritem contra essa podridão do mundo ao invés de praticar o famigerado verso autoimune. Ainda surgem, para que abandonássemos (ou ao menos tentássemos) , os vários protocolos existentes, inclusive os acadêmicos (universitários e das academias poéticas que se espalham pelas cidades brasileiras). Tendo isso claro, não sou eu quem exclui alguém de participar do programa, mas o próprio evento se coloca acima dessa necessidade de bajular os poetas de merda da cidade/estado/país que compõem o histórico da poesia do “baixo meretríssimo”, unindo os gritos numa saudável histeria coletiva contra aquilo que nos deixa profundamente indignados. (Considerem, por favor, que vivemos em um país em que a mídia – ou o conglomerado midiático, ou a mídia e seus eternos parceiros, historicamente aliados dos poderes públicos que se mantêm alheios às manifestações culturais populares como modo de referendar aquilo que a mesma mídia emite como culturalmente brasileiro e, ainda, o modo como as próprias universidades, ou parte delas, aceita essa imposição – não é de hoje que diz o que culturalmente devemos consumir) .

7 – Na Prática

Assim, o programa se mantém a partir de quem topa se movimentar junto. É basicamente isso.
Não é pra menos que a pergunta se repete:

– Demétrio, posso participar?
– Claro que pode, o tema é tal, topa?
– Mas…
– É simples. Deu de inanição. É pra jogar, na ponta do verso, pedra nessa porra que tá aí…

8 – No front

Quinta Ibérico, com poetas portugueses espanhóis; Quinta Distância, com poetas angolanos e moçambicanos; Quinta Babel, com versos em várias línguas; Quinta Brasil e Argentina, uma espécie de bate-bola com nove poetas de cada país; Quinta América Latina II; Quinta Caio Fernando Abreu; Quinta Lorca; além das já tradicionais parcerias com o Coletivo Abrasabarca, Paulino Júnior, Ronald Augusto, Silvana Guimarães, Daniel Rosa dos Santos e por aí vai… Ah, já ia me esquecendo, e o Quinta Acrobata, Demetrios Galvão, topa?

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