Tieta: o alter ego da mulher do agreste

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por Clefra Vieira Guedelho
Assistente social do IFPI, Mestra em Avaliação de Políticas Públicas.
Escritora do Blog pensamentos-escritos55.webnode.comúblicas


Se por um lado tornou-se comum ouvir “não assisto a novelas” como forma de assumir uma dignidade cultural e, por isso, repulsiva ao entretenimento televisivo direcionado às massas, por outro, desde que me entendo por gente, ouço dizerem que as novelas mais antigas eram bem melhores do que as produzidas atualmente. Sem entrar no mérito desse embate, posso falar especificamente da riqueza de uma telenovela que escolhi recentemente para assistir, dentre diversas disponíveis para reprises em plataforma de streaming. Trata-se de Tieta, adaptação da obra de Jorge Amado (1977), que ganhou grande repercussão nacional à época de sua primeira exibição em 1989.

A referida telenovela seduz o telespectador com o seu forte regionalismo e apelo sensual. É possível lembrar de alguma pequena cidade nordestina como a fictícia Santana do Agreste, onde se passa a trama protagonizada por uma jovem pastora de cabras, Tieta, personagem erotizada, que vive sua sexualidade de forma instintiva e natural, sem se deter a normas socialmente postas. Nos primeiros capítulos, Tieta é duramente censurada por seu pai, homem rude que a expulsa violentamente da cidade com o seu cajado, ao descobrir suas aventuras noturnas denunciadas por sua irmã mais velha e puritana. Assim o drama se mistura ao clima de comédia formatando uma combinação tão envolvente quanto singular. O modo de vida do interior é retratado de forma hilária por personagens que figuram desde o poder do coronelismo até o costume de “falar da vida alheia” como hábito das pessoas simples para se distraírem da monotonia do lugar. Habitam a cidade: pescadores, criadores de caprinos, pequenos comerciantes, donas de casa, beatas e prostitutas. A maioria das pessoas acomodada com a vida de poucos recursos vê a cidade aos poucos mudar com a possibilidade do “progresso” trazida com a chegada da energia elétrica e instalação de uma grande indústria na região. Mas é o retorno de Tieta para se reconciliar com o seu passado que impulsiona tais mudanças.

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Livre das convenções, madura e rica, ela se envolve em um caso amoroso com o sobrinho seminarista e traz a luz para a cidade por meio de sua influência no meio político, fruto da sua trajetória de prostituta e cafetina que lhe rendeu grande fortuna. A imagem de Tieta contrasta com a realidade das mulheres da pequena cidade, por suas vestes e seus modos de falar e se portar, sempre elas dependentes de uma figura masculina, enquanto a protagonista é uma mulher dona de si, apesar do sobrenome falso de viúva de comendador que carregou consigo para forjar sua boa reputação.

Tieta representa o novo trazido pelo contexto da redemocratização do país, à época da exibição da novela. Por outro lado, as mulheres de Santana do Agreste representam o papel da tradição, em que a dona de casa, as viúvas e as solteiras são guardiãs da moral e dos bons costumes. No entanto, este estereótipo caricaturado pela teledramaturgia revela o quão reprimidas por uma sociedade machista vivem estas mulheres. A moral predominante não permite a liberdade sexual feminina e, por isso, qualquer atitude fora do padrão é posta à juízo em praça pública ou vira falatório geral.

Preconceito à donzela encalhada e naturalização do homem proprietário de cabritas (são assim designadas as moças na novela) compõem o imaginário coletivo sobre a sexualidade. Sexualidade opressora para as mulheres. Em uma cena – isso me chamou atenção exatamente por vê-la como um agravante dessa questão – uma mulher, condenada a jamais sentir prazer na cama, aceita que o marido tenha uma teúda-e-manteúda para desfrutar, tornando-se assim uma esposa desobrigada do ato sexual e concentrada em ser exímia dona de casa e mãe. Mas, como de tudo podemos encontrar na trama e esta sempre traz fortemente seu viés cômico, existe uma assombração em Santana do Agreste, que é mais que uma lenda popular.

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 A aparição conhecida como “mulher de branco” se aproveita da escuridão noturna para atacar qualquer homem descuidado que passeie por alí e que, após o ataque, aparece sem as calças e com um semblante de satisfação orgástica. Talvez seja o alter ego da mulher do agreste fadada a uma vida sem prazer, que se manifesta enquanto um segundo eu, ora de forma fantasmagórica, ora personificado na protagonista da trama. Aos defensores da pobreza intelectual das novelas, eu afirmo: existe um vasto e rico material para investigação sociológica em Tieta.  

Crédito imagem de abertura: TV Globo. Disponível em www.gshow.globo.com

2 comentários em “Tieta: o alter ego da mulher do agreste”

  1. Parabéns, uma maravilha você representar o nosso nordeste e escolher uma novela que realmente ficou para a história, retrata a cultura de antes, e que mesmo nos dias de hoje a mulher ainda sofrem preconceitos, muitas vivem sobre as redias dos maridos . Como você frizou em suas palavras existe um rico material de investigação sociológica em Tieta, pois vai além dos pensamento de Jorge Amado.

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