Contar Histórias, parar o Tempo e Ativar Memórias – O Processo de Criação de Liv Malcher

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Nascido em Belém (PA), Livando atualmente se ocupa em atividades ligadas à criatividade, design e arte, se movimentando em redes colaborativas, agindo através da Ingá, estúdio criativo que conduz. Com formação em Design, tem ampla experiência com criação no campo do design gráfico e ilustrações. Atuando principalmente com projetos na área cultural, social e ambiental. Sua produção artística pode ser encontrada em diversas cidades pelo Brasil e em outros países, como Uruguai, França e Inglaterra. Já expôs coletivamente ou individualmente em espaços culturais e galerias.


Reconheço-me natureza. Zelador do mundo de mim mesmo. De tudo que está supostamente fora, nada é meu, mas tenho tudo em minhas mãos. De fato, não existe fora. Tudo está em mim e de mim tudo sai. Escavo, procuro e o ouro me acha. Sou natureza. Das folhas aos animais, os quatro elementos em todas as direções. Carrego todas as histórias de quem veio antes de mim. O que olho ganha vida e no escuro tudo vejo. Meu olhar é como a mão que colhe o fruto maduro caído no chão e a fome é o que me move. Alimento-me de tudo que está ao meu redor. No seu lixo me faço urubu, vôo alto com o sol nas asas. Vejo todos/as e ninguém me vê.

Contar histórias, parar o tempo e ativar memórias.

Mesmo que no campo da imaginação o passado, o presente e o futuro sejam um só, no campo do tempo-ação conceber tem data e local de nascimento. Quando vem ao mundo físico, passa pelo filtro da minha memória. Por mais que represente meu campo subjetivo, toda criação é coletiva, pois tudo que espelho em uma obra, foi alguém que me trouxe.

O ar livre, a rua e o céu aberto são laboratório da alquimia da criação, onde todos os elementos estão ao dispor para serem usados (e não abusados), combinados e recombinados. Esse lugar suspenso na imaginação, assim como o campo físico, é território de disputa de espaço em uma guerrilha de informação. Tudo que já foi e ainda será pensado existe nele, alimentado por todas as mentes. Uma fonte incessante de criatividade.

Neste oceano criativo, a grande mídia é responsável por formatar um conjunto de imagens que tem sido identificado como senso comum, que ela constrói como sendo a parte mais rasa, a beirada da praia − como se a beira da praia não sustentasse o mar inteiro e suas ondas. Nesta disputa por um lugar na memória, ela possui uma força desproporcional, visto seu alcance. Por isso conhecida como o 4º poder. Por trás da formação dessas imagens há um interesse claro: dar satisfação aos anunciantes que alimentam seus bolsos, reduzindo a/o leitor/a da mensagem a mero potencial consumidor/a.

Nas criações que emergem de mim, a escolha por determinados elementos é fundamental para reforçar na memória coletiva o que vai permanecer e ser lembrado, ampliando a margem do universo visual não como uma ponte que leva ao mero consumo ou status quo, mas a uma reflexão sobre o que tem valor no espaço que lhe rodeia. O que traz mais saúde? Tomar banho de igarapé ou passear no shopping? Em contraponto a mídia hegemônica, que vende um ideal de realidade de “comercial de margarina”, busco uma realidade ao mesmo tempo palpável, mais próxima do cotidiano, levando em consideração que o principal público que tem contato com meu trabalho (suponho) são meus parentes amazônidas suburbanos e da floresta.

Dos temas que costumo abordar, muitos são simples e universais, como a contemplação, a reclusão para dentro de si ou mesmo para o universo onírico, indicando que há uma saída para dentro. Um universo inteiro a ser navegado. Entre tantas possibilidades de representação imagética, a escolha por um sujeito social, ou uma prática, significa, entre outras coisas, que este foi notado por alguém, ganhou lugar de destaque, tornou-se uma ilustre figura. Mesmo se olharmos de perto, todas/os somos ilustres para alguém, mas nem sempre ganhamos esse reconhecimento.

Expressar uma visão de mundo para o público, não atravessa apenas meus anseios individuais de comunicar meus sentimentos e emoções, mas abrange uma responsabilidade de dar visibilidade para o que tem grande valor, embora receba pouca atenção, como o fluxo natural dos acontecimentos, ou seja, os ciclos naturais. Em uma sociedade consumista e hiper-informada, o silêncio ou o vazio é um desperdício.

Observando os abusos resultantes desta sociedade egocêntrica, individualista e patrimonialista, como a exploração desenfreada da natureza e da vida, é possível apontar um caminho na direção de uma sociedade coletiva, pública e consciente do cuidado com o bem comum. Onde cooperar se faça mais eficiente do que competir. Esse aprendizado pode vir, por exemplo, com a observação da inteligência dos povos da floresta, que conseguiram permanecer ao longo de milênios sem autodestruir-se. Pode vir, ainda, com a sabedoria popular, quando nos ensina que “uma andorinha só não faz verão”. Por mais que alguns/algumas tenham nascido na cidade, todos/as somos descendentes da floresta e isto está guardado em nosso DNA, esse território onde nossa ancestralidade habita. Criar imagens é também produzir conexões com nossa ancestralidade.

Os elementos gráficos vistos são importantes e os não vistos também são. Quando mostro uma peça artesanal, como uma canoa ou um vaso, ali está representado todo o processo por trás de sua criação, as pessoas envolvidas, a percepção de valor do tempo, os materiais, a ética. Em contraponto ao trabalho artesanal, todos os objetos industrializados e seus processos abusivos somem. Neste ciclo infinito de se alimentar de imagens e a partir delas agir, busco em mim escutar aquilo que tem fome de viver, criando imagens que, por fim, são espelhos, onde o reflexo dá a possibilidade de nos recriar em um contínuo fluxo criativo.


Revisão: José Sena



“sereia”

2 comentários em “Contar Histórias, parar o Tempo e Ativar Memórias – O Processo de Criação de Liv Malcher”

  1. Parabéns por esse conteúdo, também estou trabalhando Memórias com os meus alunos e compartilhei o link dessa página para que eles possam conhecer. Muito Obrigada!

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