Por Denise Veras é Doutora em Literatura (UNB), Mestre em Letras (UFPI) e escritora.
2022 está acabando, mas ainda não acabou, e eu não queria encerrá-lo sem escrever sobre um dos cineastas que pensou a Sétima Arte como poucos, de forma crítica e anticonvencional, Jean-Luc Godard. A escolha desse cineasta se dá sobretudo porque este foi o ano de sua partida. Dia 03 de dezembro ele completaria 92 anos de vida e 37 de lançamento do filme que, a meu ver, é o mais incógnito de sua produção: Je Vous Salue, Marie, o longa que reconta a narrativa bíblica conhecida por Anunciação, a história da concepção e nascimento de Jesus Cristo.
Marie é uma jovem que se relaciona com o também jovem José, ambos de descendência humilde. Ela trabalha no posto de gasolina do pai, o rapaz é taxista. A vida parece seguir seu curso habitual, até ela descobrir que está grávida. Porém a moça afirma ser virgem, mas o namorado não acredita nela. Pensando ter sido traído, José considera deixá-la, todavia o anjo Gabriel tenta convencê-lo a aceitar a gravidez como parte dos planos de Deus.
Maria. Em seu nome está contido o verbo amar, é nessa certeza que ela segue.
A formulação das personagens é realizada através da desconstrução de caracteres tradicionalmente aceitos como parte dos seres em questão. Gabriel já não é angelical e seráfico, e sim um homem comum e prático cujas táticas encontradas para convencer José a aceitar o destino podem ser consideradas inusitadas, como na cena em que o anjo aparece xingando e esbofeteando José numa loja de roupas.
Godard nos apresenta um filme forte, polêmico e questionador, organizando as cenas da dupla narrativa. A construção cênica tece a trama na qual vive a protagonista: o caminhar entre corpo e alma, sagrado e profano, sublime e desejo, nos conduzindo pelas espinhosas trilhas que separam a carne do espírito.
A subversão apresentada na obra do cineasta franco-suíço escandalizou à época de seu lançamento, e o burburinho provocado por ele obscureceu o simbólico significado da narrativa. Transitando entre sacrílego, incompreensível e genial, o que Godard ousou fazer foi enviar uma audaciosa mensagem espiritual: é preciso encontrar poesia na brutalidade do dia a dia.
Em cenas de nudez, o peso da castidade posta à personagem é apresentado. Ardendo em desejo, ela se vê num duelo entre seus ímpetos humanos e a espiritualidade elevada. Seu corpo treme, sua carne arde, mas sua mente irrequieta recusa a masturbação, pois ela aceitou seu peso sem indignação ou revolta. Numa cena que pode ser considerada chocante, Godard coloca a protagonista cara a cara com a tentação de ser de carne e osso. Entretanto, se essas tentações chocam o espectador por tamanha ousadia, elas também elucidam a vitória de Maria, a vitória do espírito sobre a carne. Uma personagem humana, crível e insegura, mas que luta em combate e se eleva em relação aos outros.
Num dos últimos momentos da película, vemos a família anos após o nascimento do menino, um marido autoritário, uma criança aparentemente normal e uma zelosa dona de casa. Entretanto, o que nos parece é que ela já não é a virgem e pura. Nos minutos finais, o que se observa é uma presença vaidosa, moderna, que se maquia, se olha no espelho e se embeleza. Nesse ponto Godard nos conduz a uma reflexão sobre a materialidade dela. A missão para a qual foi designada e sobre a qual a menina que personaliza a Estrela Guia lhe alertou parece ter sido abandonada, como que trocada pelo cotidiano da vida comum. “Marie, seja pura, seja dura, não procure mais que seu caminho. […] Não se esqueça”. Pois não apenas esqueceu, como negligenciou a singela recomendação, e o que restou já não é a bendita entre as mulheres, mas uma mulher comum, material.
Ainda melancólica após o aceno do anjo, ela entra no carro, acende um cigarro e decide pintar-se. O vermelho do batom escolhido é simbólico. A moça morde e saboreia uma fruta, numa clara alusão ao pecado original que permeia o imaginário cristão.
O mundo em que vivemos hoje ainda é o mundo de Maria. Tal como ela, descuidamos das recomendações divinas, e o que nos resta é a dureza da solidão e a certeza de que já não somos o que éramos ou o que deveríamos ser.
Daqui a cerca de um mês celebraremos mais um Natal. O senso comum afirma que final de ano é época de reflexão, momento de pensar em nossas ações passadas e planejar as futuras. Sob a égide da obra de arte de Godard, e sob sua eterna memória, convido o leitor a refletir sobre o que nossa sociedade tem feito, não apenas em 2022, mas sobretudo ainda em 2022.