Ser (PELO MAR DESERTO) Guilha.

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Daniel de Oliveira Gomes, doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor de Poesia Portuguesa na Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná, Brasil, e junto ao programa de Mestrado em Linguagem, Identidade e Subjetividade. Atualmente, encontra-se em estágio pós-doutoral em poesia pela Université Paris Nanterre.

Ilustração: Claustrofobia, 2019 – Escultura de Manuela Castro Martins – Trabalho em vidro, rede de alumínio e cromo níquel. / Fotografia de João Luz


I

DA EXUBERÂNCIA EM KALAHARI

“Não existe sentimento que transporte para exuberância com mais força que o sentimento do nada. Mas a exuberância não é de nenhuma forma o aniquilamento: é a superação da atitude aterrorizada, é a transgressão.”

Georges Bataille

Ainda mais que em Koa´e (2011), noto a maneira como Kalahari (2013) varre páginas em marcas distintivas extremas, espasmos, distensões, numa espécie de autoimunidade do poético serguilhano (porque o melhor alvo da transgressão parece ser o próprio corpus desta poética de Luis Serguilha que se dobra a si mesma). Pensando no conceito paradoxal de transgressão que Bataille propunha, observo que o mundo do discurso (e incluímos aqui, claro, o discurso poético) simula a transgressão como simplesmente a negação da interdição, mas de fato não o é… A transgressão (como desencadeadora de um tumulto) vem a ser um conceito mais complexo, ela possui um vínculo extremo com a existência legal da interdição, de modo que o sentimento da transgressão não condiz exatamente mais com a mera “liberdade” das leis, normas, etc. (ver: BATAILLE, “O Erotismo”: 101).

É assim que, neste ensaio, quero mostrar a peculiaridade da transgressão poética em Luis Serguilha, traçando de modo bataillano[1] ideias acerca de um autor contemporâneo português que, mesmo pretensamente transgredindo toda uma tradição sentimental e estilística lusitana, está, de fato, expressando, ao meu ver, a violência e o sacrifício dos limites não apenas em tal tradição no gênero poético (ainda o inserindo, o englobando). Mas, noto uma exuberância debelando toda a tradição do desejo da transcendência, inclusive até mesmo aquela que o torna possível como texto transgressor, toda representação na linguagem (como contraviolência à animalidade primordial que nos contém). A transgressão exuberante de Serguilha, assim, não é dada como, tão somente, o profano versus o sagrado; a vertigem versus a ordem. Ela está mais notável na contrariedade à paz utilitarista de qualquer discurso especializado do saber, evidenciando uma celebração autossacrificial em combate àquilo que propusemos, primitivamente, como o “dentro” objetivo do sentido moderno.

A escritura vive e morre ao adentrar-se nos itinerários dos confrontos da interrogação, no movimento instantâneo-ininterrupto, nas intensidades corpóreas-incorpóreas: uma instabilidade vertiginosa nas energias do corpo-em-exaltação onde o espelho desaparece noutro espelho e as improvisações, os gozos e os acasos cambiantes turvam-se nas distracções prismáticas do mundo: (vibrações intensas misturadoras de signos). (SERGUILHA, ESTÉTICA do LAHARISMO: 18)

Passo, assim, a tentar pensar no passado de tamanha estilização da vertigem, da “vibração intensa misturadora de signos”, de onde Serguilha herdaria este desejo transgressor… esta exigência de um olhar de leitor impossível, tão alucinado quanto o poeta. Tal eu-lírico que vaga pela noite com olhos animalescos, em alucinose incompreendida versus o seu entorno, não me é estranho, por mais que jamais tenha lido nada tão “instantâneo-ininterrupto”, que me fizesse “flutuar” tão galacticamente, quanto Kalahari (estranho que seja falar assim). E já me surge à lembrança, ainda antes do futurismo e/ou do surrealismo português e/ou do sensacionismo pessoano, como que por distração, a figura de um dos ídolos de Sá-Carneiro e Pessoa: Cesário Verde. Em sua época, Cesário não chamava positivamente a atenção dos literatos, jornalistas e cultos porque o que bancava em termos poéticos era uma obra transgressiva à tradição do seu tempo. Perturbadora alquimia, eu mesmo penso, a de Serguilha (como assentimento de toda fragmentação possível da pós-modernidade) remeter-me à conjuntura oposta de Cesário (como negação da fragmentação do sujeito moderno).

Não há semelhança alguma a iluminar, aparentemente. Mas, vislumbro uma tradição de tal olhar em desconcerto fulgurante do “sujeito-que-uiva” na poesia portuguesa, que advém desde o esgotamento do lirismo visto em “O Sentimento de um Ocidental” (para muitos, a principal poesia como pintura vertiginosa da modernidade lisboeta). Cesário Verde apresenta o olhar da “loba”, no sentido maior do “sangramento do uivo” no olhar (Kalahari: 25), olhar sangrento do poeta-animal castigado pelo seu tempo, que não encontra leitores para seu hipotético clã de lobos, onde o eu-lírico mina os propósitos burgueses cujas transformações urbanas, técnicas, etc, impunham ao séc. XIX. A loba já está lá, em 1880, por mais que houvesse uma ondulação emocional pastoril em seu uivo como uma flauta campesina no anoitecer, aonde de fato vemos que a Lisboa de novas vitrines e varinas não tem mais nenhum passado heroico quando fascinada por uma modernização enlatada de Londres e Paris (lembrando-me o olhar baudelariano contra todo luxo artificial ao louvar Constantin Guys).

No entanto, diferentemente de Cesário, onde o jogo das sensações (toda gama de odores, cores, sons…) mostra uma pintura movente, uma cinematografia emocional, uma cinemática (diria Horácio Costa analisando o estilo cesariano), Serguilha, por sua vez, busca uma poesia transgressiva de entusiasmo alucinado que amortiza o mundo linguístico ao pó de arroz, que afeta e prende a nossa desatenção e (des)sensibilidade propositadamente. A maquilagem é tanta que já não existe um rosto do “canis lupus” (do animal ocidental[2]). O rosto não existe, pois não vivemos em um tempo que se oferece após uma era chamada moderna e sim um tempo que é a apoteose convulsiva da modernidade, o suprassumo da fragmentação em purpurina metálica e da virtualização de qualquer conhecimento.

Kalahari mimetiza a própria hibridez imagética do presente, deflagrando-se em maquilagens virtuais verborrágicas, propondo uma “loba das cosmogonias” onde não há mais um “caos íntimo” nem um “caos social”. Há outro caos, aprimorado, a sede carnavalesca que sobreviveu à modernidade, um mundo bestial caótico em rede na própria elegância da artificialidade da imagem mestiça que já se tornou natural. A luz que afeta o olhar não é a dos combustores a gás da Lisboa de Cesário, nem a luz da querosene (de antes) nem mesmo a luz elétrica (de depois). Não há nem mesmo uma cidade, um tempo, a iluminar. Não mais o delírio do flâneur, mas sim o do dândi. No entanto, não mais a solaridade e o culto à morte genérica do dândi sá-carneirano, futurista, mas sim um dandismo sem solidão, sem ego, que enaltece o bios, especificidades da biociência, da botânica, da genética, a performance do caos, uma catástrofe global da palavra.

A sede do olhar vem das “luminosidades descentradas” (p.226), pó de neon fulgurante do saber dissipado. Anamorfoses fractais da palavra poética. As palavras já viradas em luminósforos: imperceptíveis cristais de fósforos de uma tela-papel que irradia excitação luminosa para distrair a ótica, a leitura. Eis a luz das fogueiras-dos-exílios (computacionais, acadêmicos, fragmentados, sismológicos, especializadores, especificadores, senhas do mundo ainda utópico e já pós-utópico) de quando o “(…) écran desflorado das naves enumera as histerias esclarecedoras dos diques meteorológicos (…)” (Koa´e, 2011: 265)      

O UIVO está na luz do acontecimento, do distante e da imagem/floresta que se expande e se recolhe dentro do inaudito. Os uivos estimulam os desvios dos vestígios e as multiplicidades interiores dos afluentes. Na errância resconstrói constelações de DANDANRANA-que-é-qrte-em-metamorfose-em-(des)-montagem (ENGUIA ELÉTRICA) e o uivo absorve as incisões para se soltar nos centros dos gigantescos violoncelos e liberta-se quase-incorporal porque é vida que incita vida, esquadrilha de ângulos histéricos: eis os chifres existenciais no naufrágio-que-é-construção ou dínamo desmanchado: tudo se desencadeia numa viagem experimental, no ventre do esgotamento, do impossível, da monstruosa devotação das casas centrífugas. O uivo cântico-dos-escritos a defrontar-se na autonomia-das-arraias-de-fogo, criando resistências, matérias e sensações onde o invisível-acústico se transforma no imperceptível-que-vem-da-diversidade-e-em-todos-os-liames-inexistentes como um espaço de movências gongóricas, de fendas respiratórias (núcleos dos idiomas vergados pela inércia). (Kalahari: 131)

Mas, se tudo isto, tão vibrantemente caleidoscópico neste uivo da loba já não é a poesia portuguesa como o deserto íntimo e cinemático de Cesário Verde; ou o sensacionismo de Álvaro de Campos; ou o futurismo sá-carneirano; ou o surrealismo de Cesariny ou  Helder; o que seria a poesia tentando ser agora? Lemos poesia portuguesa? Poesia? Leitura? O que é o uivo, em Serguilha, senão já nada a ver com o Portugal de ontem e de hoje, ou com qualquer topos, ou qualquer gênero literário, ou qualquer processo de leitura, nada que não seja o repotencializar virtual da sensação de um abandono original? Falo, então, da orfandade de qualquer pátria, a orfandade experimentada desde, por exemplo, a dramática imagem bíblica de Babel (“naufrágio-que-é-construção ou dínamo desmanchado”, diria o poeta).

Noto a poesia portuguesa – desde o séc. XIX, mesmo que seja impossível ler-lhe panoramicamente a partir do enlace (baudelariano) de Cesário – como uma poesia que sempre buscou chamar a atenção pelo inconformismo uivante e/ou pelo entusiasmo alucinado. O problema herdado desta autorreferência lírica de uma identidade colonialista, superlativa, de Portugal que vai se perdendo desde muito antes à modernização. A plasticidade excessiva, o cromatismo, a inadaptação ao mundo, e algumas outras características que podemos vislumbrar em Serguilha, podem ser sobrevindas da literatura portuguesa não apenas desde a Geração de Orfeu, mas desde a chamada geração de 70, onde os poetas passavam a denotar o próprio conservadorismo linguístico, tecnológico e cultural em relação à Europa e a toda sua tradicional identidade inspiradora. A reminiscência sinestésica simbolista e o mergulho alegórico da geração Orfeu devem sua eficácia de renovação a tal plasticidade e ao inconformismo revolucionário onde o caos íntimo e neurotizantemente individualista suplanta o passado coletivo. Assim o suplanta em prol de um entre-lugar expressionista-impressionista.

[E aqui, neste parágrafo, noto como estou pervertido pela leitura de Kalahari! Voutendendo a fazer ouvir uma prosa acadêmica interseccionista em sua hibridez máxima e também no nível semiológico que é possível captar babelicamente ali. Vou hipnotizado pelo olhar explosivo pliométrico que alonga ao máximo a musculatura linguística para recair na “sabedoria dos olhos de sangue-pliométricos” (Kalahari: 339)]. Noto que tal não-lugar (de Cesário) acabará evoluindo até o surrealismo (o delírio de olhos abertos desta estética). Porém, este delírio lúcido já promulgado por Cesário, aliado à sombria lucidez de Antero de Quental (seu transcendentalismo metafísico paradoxal) abrirá todo um caminho de excentricidade pós-metafísica na poesia portuguesa. Eis uma hipotética genealogia da excentricidade sentimental que resulta no holomovimento (des)sentimental de Serguilha, hoje.

Mas, nele, toda uma possibilidade ou impossibilidade de sincronização (harmônica e dissonante ao mesmo tempo) de expressões em fluxo que vão da mecânica quântica à qualquer maquinismo; da farmacologia à medicina; da botânica à zoologia; da astrofísica à bioquímica; da termodinâmica à meteorologia; da oceanografia à geoquímica… Enfim, o poeta especialista-em-caos (em nada) produz um acumulado cintilante de palavras unidirecionais antes adequadas de departamentalizações prévias, especificidades técnicas, porém retiradas de seus subcampos e amoldamentos, a fim de retransformar o fazer poético no ato de bordar uma ilimitada colcha de retalhos terminológicos, uma grande nuvem fractal. Retalhos terminológicos impossíveis, no caso. Muitas destas expressões estão ligadas com hífens, associadas a imagens descontínuas, deflagrando uma perturbação nervosa tanto no que poderíamos considerar propriamente poético quanto naquilo que poderíamos considerar propriamente científico. A linguagem moderna do especialista, do poeta, do literato, que confiamos sob uma geometria dada do discurso, a linguagem crível do perito, assim como qualquer palavra advinda de qualquer possível ordem do discurso, não passa de gaguejo incrível e atemporal. Invento sonoro-imagético-sensível.

O vocabulário do perito contemporâneo serve de alimento para a sede do olhar ultraprofanador. (“Cúpula-de-ciclos-epidérmicos”; “anéis-das-garras topográficas”; “diadema-de-arsênicos-funâmbulos”; “gigantescas chávenas-de-gelatina-granítica”; “cataventos-de-satélites”; “xadrez-dos-fósseis”; “tapeçarias-geológicas”; “guardador confidencial-magmático das artilharias-bilíngues”; “ruptura-zoológica-valvular-sanguínea”; “ABSINTOS GEOPOLÍTICOS na febre dos narradores-escorbúticos”; “estacas-ciclópicas: FISIOTERAPIA-BOTÂNICA”; “golpes-dos-archotes-do-patafísico”; “óvulos-das-estrebarias”; “placentários-devoradores-de-sermões-giratórios”; “punhos-dos-luxímetros”; etc…). Nisso tudo, nesta estética da avalanche (LAHARSISMO), ele cria sua própria mitologia sem mitos, ou melhor, seu próprio eco sistemático sem ecossistema. Tal como o poeta mesmo considera que: “(…) a loba-é-a-força-do-olhar-sem-ecossistema” (Kalahari, p.120).

Como não perceber a rixa que Serguilha assenta ante toda uma reminiscência nacional, vernácula, e que, ao mesmo tempo não deixa de ser, quer queira ou não, sempre o efeito de uma tradição, por mais que rarefeito? Refiro-me à tradição do “uivo sentimental”. Percebo, agora, em Serguilha, uma semelhante soberba suicida que ouvíamos em Mário de Sá Carneiro, mas em outro nível caótico, evidentemente, muito mais transestético (suicídio de toda voz) que subjetivado (suicídio do poeta em específico), menos “doirado”, futurista, solar, e mais policromático, transcósmico, pulverizado, dançarino… Aliás, Serguilha é mais sacro que profano, nada tem a ver com Sá Carneiro ou Pessoa, tal como nada teria a ver com Cesário. Serguilha se colocaria para cima de todos, gesto suicida, acima da Torre, para lançar-se com seu uivo lá de cima (junto com o leitor). Lança-se com o sentimento exuberante do NADA como marca da transgressão (remetendo a Bataille).

O eu-lírico – imaginemos que ele realmente existisse em Kalahari -, em sua hipersensibilidade bailarina, visaria despregar-se desta influência do uivo resultante de um delírio de olhos abertos, em redemoinho (“holomovente”) infinito em direção ao (in)existente. A LOBA/Serguilha sobeja o seu próprio “sentimento de um ocidental”, seu uivo-delírio de olhos abertos para dentro e para fora do artificialismo das heranças. Se o uivo cesariano era lúcido em seu delírio, era sábio de sua dissonância transgressiva, Serguilha nada tendo com isto, transborda um desvario de luz sem lucidez alguma, como cinemática do absurdo delirante universal, buscando arrogantemente escapar dos “flocos de pó de arroz que pairam sufocadores” (de Cesário) para tornar ainda mais abstrata, marmorizada e virtual toda textura e coloração do jogo do discurso sentimental desde sempre até sempre. O faz sobredivinizando a artificialidade pós-moderna, tornando efêmero o já efêmero, desfalcando o rosto-estátua de qualquer tradição, inclusive a lusitana, uma vez empastada de mais e mais abstração maquiadora.

Então, a minha pergunta baudelairiana (ou pós) seria: Conteremos aqui, escondido em Kalahari, um caloroso flaneur pós-utópico? (Explico melhor a questão: teremos um observador apaixonado, em tempos da pós-modernidade, seduzido em todo seu embaraço alucinante discursivo que maquia obsessivamente o mundo segmentado? Pois há uma louca contaminante paixão ardente pela palavra que a coloca no phatos do inacabamento, na doença do transitório, na deslustrada vitrine poética.) Ou, minha outra pergunta dissonantemente baudelairiana seria: ao contrário, teremos uma nova espécie de frieza dândi, metamorfoseiada em suas indumentárias pseudoelegantes-arrogantes? (Explico: teríamos, nesta transgressão dândi, a instauração de uma nova discursividade que só nos tira a atenção? A invenção de uma nova língua jamais operada por ninguém? Na arrogante – digo, nietzschiana – produção de sua própria Babel maquiada, esta maquiagem sobre a maquiagem já não seria apenas uma máscara da sociedade burguesa, aliás nunca é uma máscara realista de nada, sendo antes aquilo que desvela e desliza o próprio semblante de pó de arroz da linguagem[3]).

Como proferiu Nilson Oliveira: “Serguilha escreve como quem desliza na intensidade do estilo, ou seja, como quem gagueja em sua própria língua.” (OLIVEIRA, 2011: 1)

II

DO TEATRO BABÉLICO DE SERGUILHA

“Para reduzir o demônio – que é a imagem – e restabelecer o equilíbrio do terror aquém e além das fronteiras de tinta, as palavras embruxadas executam uma dança mágica semelhante, ao redor do feiticeiro mascarado, àquelas das tribos primitivas.

            Com armas iguais.

            Elas têm o peito e o rosto pintados nas cores das manhãs que as ovelhas banham com seu leite e os falcões, em seu amplo voo de rapina, com o sangue negro de sua caça.

            O fogo da cerimônia extinto, humildes vocábulos recolhidos a si mesmos, sua potência de uma hora fora à altura do disfarce com o qual se desfizeram suas almas.

            O poema é para amanhã.”

          (Edmond Jabès, “O possuído”)[4]

Será Luís Serguilha um autor que beira mais o teatro do que a poesia? Autor que faz drama com poesia, encenações poético-teatrais. Não é difícil notar que a poesia de Serguilha é uma contemplação teatral alucinada, que constitui uma “dança mágica” do olhar, uma alucinose babélica. O problema para mim está em prestar atenção nesta encenação poética, quando o pacto se estabelece no débito de igualmente alucinarmos os nossos olhos. Apenas os atores podem coparticipar da leitura. Alucinarmo-nos tanto quanto o poeta deslumbrou-se consigo mesmo ao escrever – um dever “com armas iguais” (Edmond Jabès). Leio tal alucinose teatral no gênero poético (a de um “feiticeiro mascarado”, feiticeiro maquiado), também, metalinguisticamente. “(…) Os olhos alucinados do poeta interseccionam-se nos ritmos transmutadores de Saturno, na reinauguração da metamorfose de Zeus (…)” (Koa´e, 2011, p.113). Uma alucinose enfeitiçadora, “saturnal”, catártica, voraz, que está viva, falando de si mesma, devorando seus leitores mal eles nascem… Expondo-se audaciosamente, parrésicamente, a fala confessional (porque metalinguística) se decompõe, vai virando outra coisa sempre. E assim vejo, de livro em livro de Serguilha, um cerimonial em metamorfose de como a mesma polissemia espiralizante se extravasa (por “labirintos voláteis”: os olhos do leitor).

Na apresentação crítica a Kalahari (2013) – última obra de Serguilha, lançada pela editora paulista Ofício das Palavras – Jane Tutikian lembra a transição da imagem do cavalo à do lobo. Ou melhor, a passagem dos “poetas-cavalos-sonâmbulos” e “cavalos-surfistas-mistérios” de Koa´e (2011) que oferecem vez à figuração, agora, da “loba”. Mesmo que Kalahari proponha uma mais satisfatória “invenção-da-clínica-dos-lobos” (p. 262), em verdade, a simbologia dos cavalos ainda permanece muito presente em “Kalahari”, neste galopar pomposo, tal como repercute de Koa´e muitas referências aos animais: “enguias elétricas”; “elefantes”; “minúsculos búfalos”; “hidras”; “medusas”; “pássaros-vibratórios”; “borboletas”; “lagartas luminiscentes”; etc…

Contudo, se há realmente uma transferência de imagens mais total (cavalos → lobo), pensá-la-ia como uma transferência mitológica do elemento rupestre ao elemento selvagem; do “estábulo” (Koa´e) ao “covil” (Kalahari). Em ambos, o mesmo nutrimento universal da tradição do intelecto é o que faz pulsar toda uma evasão dos animalescos preconceitos morais do discurso. Veja que o alimento dos vários CAVALOS de Koa´e, “(…) onde os tabuleiros dos fenos dos cavalos são eleitos pelos precursores dos partos dos olhares acerejados que iluminam as bibliotecas amuralhadas (…)” (Koa´e, p.352), exprime o ato parasitário primordial da linguagem, o drama da própria linguagem. A linguagem, o pensamento, a moralidade semântica, são apenas rastros virtuais no deserto de uma cavalgada perdida, onde a poesia já não pode mais ser poesia. O mesmo ocorre no alimento refratado pelos séculos ocidentais para a LOBA.

A LOBA CONTAMINA-SE por V(i)RGÍLIO que se contamina por Homero e leva no dorso as tragédias de Eurípedes porque quis avivar as tragédias de SÉNECA entre os ENÓFILOS.  Suas PATAS são Aristófanes e Meandro que atingem a jubilação da comédia de PLANTO e TERÊNCIO. Ela enfrenta os mitos gregos quando absorve as metamorforses de OVÍDIO. (SERGUILHA, Kalahari, 136).

 O centauro (homem-cavalo) dá vez, nos melhores extratos de Kalahari, à loba em vigília (com seus “olhos alucinados”, disse Serguilha). Olhos alucinados, castigados, em hallucinatio, ensandecidos, tão fascinados pela luz do não-sentido a ponto de fantasiarem sensações da fera… eles caracterizam miticamente o lado-lobo do homem, lupus hominen, o lobisomem que amedronta o significado poético. Refiro-me ao animalesco que – deflagrando semelhante “hipnose de desatenção” ao leitor – não é mais o fantástico puro-sangue do cavalo (equus caballus), mas sim o sangrento e enérgico olhar do lobo. Olhar-relâmpago que, segundo as crendices míticas, reside no homem castigado por um poder animal, que vaga pela noite (lobisomem inspirado pela luz da velha lua). Esta noite lunática, em Serguilha, é o próprio satélite da humanidade girando em torno dos sentidos terrenos. A LOBA, neste novo livro, parece-me uma simbiose ainda mais feroz que os cavalos, pois ela é projeção de tudo, desalojamento em toda sedução verbal, moral, igualmente, “nietzscheana porque é partitura de WAGNER” (Id. Ibid, p.136).

“Humanidade”. – nós não consideramos os animais seres morais. Mas vocês acham que os animais nos consideram seres morais? – Um animal que podia falar afirmou: “Humanidade é um preconceito de que pelo menos nós, animais, não sofremos” (NIETZSCHE, p.197)

Kalahari[5], na remissão às línguas extintas (akuryo; ugarítica; korana; lepôntica; sami de akkala; bactriana; acádia; etc…), torna-se arquétipo vivo do desastre babélico como sustentáculo de toda poiesis. Os nomes de línguas extintas ou semiextintas reenviam a um retrato de impotência, de linguajares abandonados, anônimos, fragmentados por uma memória mais genética e punitiva que, aqui, já não assume o obsoleto significado universal. Todas juntas traduzem uma mesma agonia do menor, do que foi deixado em cacos, cactos, caos, do sem-nome, do anonimato, do deserto da tradução. Professora Leda Tenório da Mota falará do “efeito vertiginoso de um choque, de uma telescopagem da enunciação e do enunciado. Assistimos a uma espécie de mise-en-abîme.” (MOTA, 2013, p.2).

Logo, lembremos o mito bíblico da mise-en-abîme, da tradução impossível, o mito de Babel: a grande torre, elevada pela tribo de Shem (Derrida nos lembrará curiosamente, em “Torres de Babel”, que Shem é nome próprio que redundantemente significa “nome”). A torre, como nosso maior símbolo de esperança de poder, acaba desmoronada por Theós, para que os homens confusos fossem obrigados a traduzirem-se a si mesmos. Os homens foram condenados ao trabalho forçado de se reaprender a ouvir o uivo do sentido.

É quando nasce a LOBA. Por mais que se tente recapturar esta música, agora é impossível, não há transparência em Serguilha, não há a mínima similitude aceitável da palavra com as coisas, posto que sua poética expeça a uma dimensão atemporal e transmítica onde toda transparência e representação já se abismaram, assim como diria Foucault em “As Palavras e as Coisas”:

Sob sua forma primeira, quando foi dada aos homens pelo próprio Deus, a linguagem era um signo das coisas absolutamente certo e transparente, porque se lhes assemelhava. Os nomes eram depositados sobre aquilo que designavam, assim como a força está escrita no corpo do leão, a realeza no olhar da águia, como a influência dos planetas está marcada na fronte dos homens: pela forma da similitude. Essa transparência foi destruída em Babel para punição dos homens.  (FOUCAULT, 1995, p.52.)

 Eis a desaprovação divina de um abandono cósmico que o homem buscava ao edificar a torre. Verticalidade: parágrafo a parágrafo, pedra a pedra, imagem em imagem, em direção aos céus. Ou seja, abandono da linguagem na linearidade do sentido, a orfandade absoluta da palavra, que, por sua vez, é o desamparo da inteligência, quer dizer, do próprio pensamento. Lembro, também, por outro lado, quando o crítico de Foucault, Jean Baudrillard, disse em “Tela Total”: “(…) a única vez em que os homens rivalizaram realmente com Deus, no episódio da Torre de Babel, ele imediatamente cortou-lhes o necessário à sobrevivência, isto é, a linguagem e a compreensão recíproca (ou seja, a inteligência).” (BAUDRILLARD, 1999, p. 134). Em outras palavras, a linguagem – seja ela poética ou não (a astúcia da palavra – seja ela metafórica ou não), jaz exclusivamente na expressão da rivalidade, do abandono, do drama sensacional contra o cosmos.

(…) As escadarias vibráteis dos vigilantes alvejam
O cerúmen das viseiras da babel
Com o gorgolão da roda-piranha das fotografias
Que guinam velocíssimas
Sobre as fábulas-azougues enfiadas nos parágrafos (…) (Koa´e, p. 324)

Somos frutos de um erro, de uma desatenção do olhar. Somos crias do “cerúmen das viseiras de babel”. E estamos, em Serguilha, representando/atuando o que realmente somos: personagens desatentos, surdos dos olhos, destruídos (por uma tentativa equivocada de suicídio que queria destruir o próprio auctor, este que aspirava se desapossar de sua obra, inventar uma obra tão livre que já não seria sua. Mas agora já não é de ninguém). O leitor de Kalahari está ante um anfiteatro de cacos de espelhos quebrados. O leitor de Kalahari precisa ter a arrogância babélica que o próprio autor possui, a alucinação babélica. Prontamente, permanecemos vigiando o vazio nessas “escadarias vibráteis” da torre, na amarração dos versos, frases, sentenças, linguagens, remissões, etc, a distorção em queda do reflexo/palavra. Tudo é repercussão da imagem babélica, profética, em que a poesia como eco é ressonância de cosmogonias como pensamento castigado. Pensamento retumbado dissonantemente nas fissuras desses espelhos linguísticos punitórios, em quebrantamento, que nos reenviam a um aparecimento quiçá “mântrico” da linguagem poética. Uivo mântrico tendo como guia um livro que se diz do gênero de poesia, mas na verdade, se torna um “japamala” poético (uma obra exaustiva que busca esvaziar a mente pela repetição e pelo pacto de devoção do orador).

A poesia de Serguilha, com seus temas elementais, distribuída em versos heterométricos entremeados por vazios lacunares, invoca para além de meras alegorias um espaço original, intemporal que se desenvolve por meio da própria leitura. Ao leitor é dado o impulso para um deslocamento nômade ao longo dos versos, que se desdobram num processo autógeno, um verso repercutindo o próximo como numa ampla sala de espelhos. As palavras, por sua vez, apresentam uma concretude que as desnuda de simbolismos usuais e particulares (já desgastados), mostrando-as em toda sua plenitude semântica: são bocas, rochas, florestas, pátrias, estações, cornucópias, que apresentam a força inerente a uma fala mântrica. Nesse contexto, a poesia de Serguilha equipara-se à linguagem profética, uma vez que retira o presente e se volta para fora (devir) ao instituir uma fala errante e interminável que se opõe a toda estabilidade e todo repouso, recusando a tentação de um mundo estático e fechado.” (RAMIRO, 2011, p.3)

Ao prender a desatenção do leitor, Serguilha-BUDA faz do texto uma máquina de resgate. De quê? Resgate de nossos desábitos de memórias; uma máquina de sondar o insondável e de lançar o leitor em “labirintos barrocos”, tal como disse Ana Maria Ramiro. Mas são os labirintos barrocos de nossas próprias memórias, ou dos lapsos de memórias. O leitor é alocado no “branco” da memória pelo mantra poético. Talvez perguntem por que, afinal, digo que tal máquina foi feita para prender a “desatenção” e não prender a “atenção”, como uma boa literatura o faria? É que todo este desmoronamento caótico como poiesis, para mim, conduz o leitor ao reino do sonambulismo, da desatenção, do branco (do exagerado pó de arroz), do não-poder-ler, da ineficácia da leitura, da má leitura, da incompreensão do uivo, ou, ao menos, do “não-cortejo” da leitura.

Temos uma poesia-teatral que vai contra a própria relação teatral de toda poesia – lembrando que “teatro” advém de “theaomai” (do grego: “ver com atenção”; “contemplar com cuidado”). Quantas e quantas vezes, a atuação de Serguilha não nos possibilita ver NADA com atenção alguma. Quantas e quantas vezes, temos que parar de ler Serguilha para surfar por nossa própria memória, para tentar lembrar-inventar com o poeta esta língua morta que já esquecemos. Porque quem sabe a mente não está acompanhando o texto, temos de consultar dicionários ou um livro de mitologia, desobstruir os chakras, temos que repensar o que é ler poesia (será toda poesia uma atuação absurda?), temos que refletir se compensa compreender o que lemos, para só então retornar à frase que paramos, se é que foi nela mesmo que paramos… Ler e reler para se acostumar com o deserto em que ninguém se habitua… Kalahari.

Queremos que algo nos prenda a atenção, estamos acostumados com o apaziguamento sem alucinações da leitura, mas quem está interpretando vem a ser Serguilha, pondo-se como leitor-autor (logo morto). E nos constituímos apenas como testemunhas de seus delírios, assim sendo, fantasmas de seu teatro, esta poesia nos prende apenas a desatenção. A máquina que vem a ser o texto condiz com uma inoperância do fluxo de ler, só pode ser isto.

O texto vai mais rápido que o leitor? Os parágrafos são relâmpagos que não podem ser capturados pelo olhar, ou, ao contrário, são estranhas lentidões de uma língua outra que releva o quanto somos relampejantes ao perquirir sentidos… Cosmogonia hipnótica em língua portuguesa… Ou: “anestesias dos círculos sobre os esmaltes dos labirintos” (Kalahari, p. 198), sempre o decodificando metalinguisticamente (nada a decifrar). Texto proliferativo que ouvimos como quem, órfão do próprio pensamento, empresta-se a si próprio como a caixa sonora para que a reverberação zen se faça. Não se trata de ler, se trata de se emprestar à leitura. A palavra se pulveriza em migração galopante ou uivante de autorreferências e, então, a literatura que temos em Serguilha é uma literatura que lida com a desatenção. Ela “prende” o leitor na sua desatenção. Ela “prende” a desatenção da leitura. Ela acopla-se em um lado geralmente sombrio do leitor, para iluminá-lo e mostrar que apenas permanece a vontade de decodificar. O desejo é frustrado porque o leitor reside na ética da distração, o leitor se infantiliza (perigo Kafka?) diante da grande torre de brinquedo. O leitor revê sua língua mãe, sua LOBA.

Há toda uma técnica de operação deste fazer poético iluminador que visa a pulverização da atenção do leitor. Posso mencionar o uso do negrito de algumas frases que criam não apenas uma relevância a mais de parágrafos, porém sim, uma mudança de tom, de gradação, um escurecimento da atenção naquilo que já estava escuro, que já vinha obscuro. Como se, dentro de uma caverna, totalmente escura, encontrássemos o que Blanchot chamaria de “a outra noite” e ao mesmo tempo encontrássemos a saída da caverna de Platão. É um teatro do absoluto atemporal. E, nesta caverna escura que é a própria poesia, por vezes pudéssemos nos enterrar ainda na simulação de outra noite, de momentos outros de importância, de captação da atenção impossível e sombria naquilo que ainda nem entendemos tão bem. Jamais entenderíamos. Não há metáforas, nada há a decifrar. Não podemos desemaranhar nada. É um relâmpago no deserto. Sentimo-nos enfraquecidos diante deste arrogante relâmpago poético que não acaba e que assusta, acuados como o pequeno guará na toca. Quando não há mistério na noite, temos apenas os frisos do mistério. De modo que esses efeitos estilísticos brilhosos que frequentemente são para chamar a atenção do corpo do texto, em Serguilha, chamam apenas a sua (a nossa) DESATENÇÃO. E nos perguntamos sobre o porquê de tal trecho estar frisado em negrito e outro não? Para apenas reolharmos a pergunta refletida no espelho partido de nossa desatenção?

E o próprio texto é, em si, extasiante e esvaziante. Ou, como diria Juan Krus Igerabide, temos uma sucessão de “descontinuidades abruptas”, momentos em que se operam “saltos” do próprio texto para textualmente propor outras associações de imagens. Nisso, o leitor se perde, submerge, nisso, o leitor perde a velha confiança na leitura unidimensional em que, aparentemente, o texto se apresenta e se apresentava o esquema de atenção pré-formado de leitura. O leitor é colocado de ponta cabeça, é reduzido à angustia invertida de portar uma percepção menor, uma angústia menor, diante do relâmpago que destrói sua torre (lembro da carta da Torre do “Tarot de Marseille”). Somos, agora, meras testemunhas do castigo, o poeta não se interessa por “nós-leitores”, somos obrigados a aceitar a solidão, a compartilhar a solidão do “eu-lírico” que está no alto da torre em forma de LUZ. E tanto faz estar acima ou abaixo, o corretivo divinal é o mesmo.

Percorrer o caminho traçado por Serguilha (…) significa desabituar os sentidos, procurar o insondável, o impossível, assim como o capinador que singra mares (de palavras), é perseguir uma dissonância intrínseca a cada verso (a cada voz), especialmente em Hangares do vendaval, pelo uso de letras em caixa-alta e fontes de tamanhos diversos sinalizando graficamente uma alteração na força sonora imaginada para algumas palavras e sintagmas, é aceitar o pacto e perder-se em labirintos barrocos e, sobretudo, dar movimento às roldanas libertando o vendaval de seus hangares. (RAMIRO, 2011, p.4)

Estes usos de letras em caixa-alta também não passam de outras técnicas da máquina de desatenção, tal como quero chamar. É tanto um processo de fixação autorreferencial, para chamar a DESATENÇÃO para certas propagações de termos, quanto, também, algo que ali nos mostra aquilo que sobra onde não se postula o “atentar para”… O que sobra, nesta abundância, é todo um “mar de palavras” (como afirmou E. M. de Melo e Castro acerca de sua transgressividade[6]), e na nau à deriva, a vontade de ler em voz alta para aliviar a náusea, para ouvir o que se dispersa liquidamente, no Serguilha que embarcamos (o que se atomiza em refregas de distração, redemoinhos de desatenção, esvaziamento da atenção). E o que ouviremos, então, é a nossa própria voz. Logo, o que é a atenção, em geral? É a prudência, a vigília, a cautela, a prevenção, a pré-visão. Mas será possível que, em Serguilha, a voz não prevê, ela profetiza (como poria Blanchot)? Em Serguilha, não nos acautelaremos jamais em qualquer coisa que já esteja ali, somos cobrados por uma coragem tal como quando o esquizofrênico precisa aceitar sua doença, em meio ao medo; qualquer coisa íntima sobre nós mesmos, sobre a capacidade de associar sentidos, de mentalizar o mundo, que já se abanque como sentido associado ao real. A palavra é o real, é o mar (mar deserto). Logo, sobra o esvaziamento que se dá no acúmulo de versos-sentenças em curto circuito viageiro. O louco, o leitor-esquizofrênico, digamos, precisa ser colocado de ponta-cabeça para poder tocar o chão, para ver que aquilo que interrompe o real é a sua realidade, sua loucura simbólica, mas que jamais é verdadeira, apenas uma realidade possível. Não é uma simples questão de aceitar a loucura da poesia, outrossim, de aceitar a loucura da realidade, o louco-que-sou. Vamos para o raio que o parta, para Babel, vamos para Kalahari.

Trata-se de um experimento químico, alquímico, corrosivo, rizomático e “catártico”, tendo palavras como rudimentos capturados para uma experiência sensacionista. E, de tal modo, há uma grande dificuldade em classificar isto tudo. Segolin, em introdução crítica ao Kalahari, nos diz:

Se ficarmos, porém, amordaçados nos adjetivos (excessivo, neobarroco, verborrágico, transbordante, vulcânico, redemoinhante, processual, rizomático, holográfico, desconstrutivo, fractal etc) ou fascinados por tudo que nela é anti, em relação a um centro de referência consagrado pela tradição (estética, poética, lírica, monológica, dialógica, romântica, idealista, política, histórica, social etc.), permaneceremos sempre muito aquém, ao meu ver, do que o poeta, no caso, pretende nos propor: uma espécie de catarse, via verbo, de todos os complexos, de toda a nossa boa ou má consciência de críticos superciliosos, de todos os nossos ismos, bem como de todos os nossos medos, escrúpulos, interrogações, limites, leis, princípios, valores, dogmas, certezas e incertezas com relação à poesia e também à arte, à vida e ao homem (SEGOLIN, 2013, p.13)

Estamos, por vezes, em delírio/Serguilha, situados como testemunhas no milagre perceptivo: toda palavra e todo pensamento (que é sempre palavra), toda consciência, digo, se por um lado não passam de pequenos resíduos, efeitos, de uma floresta verbal que já reside grandiloquentemente mesmo antes de qualquer expressão; por outro lado, são paradoxalmente as genealogias desta mesma floresta.

Apesar do “academicismo simbólico”, assim digamos, que esta poética sedenta de Luis Serguilha propõe (transbordando imagens como conceitos, quase como uma alucinada fenomenologia conceitual própria, qual uma ciência poética exclusiva) ela lembra-nos a caça pessoana da autoconsciência ampliada pela decomposição das sensações que vai reverberada em Serguilha como sensacionista. Tutikian dirá:

Serguilha é o sensacionista do século XXI. Na sua concepção de criação poética, a arte não deve ser uma coisa determinada, seu fim não é ser compreensível – na acepção rasa do termo -, pois não é propaganda de nada. A arte É, como no melhor ideário sensacionista. A arte produz determinado artista para um fim que este próprio artista desconhece (…). Em Serguilha, a decomposição das sensações emerge em colagens de imagens poéticas fortes e o ‘jogo dos instrumentos repica na demonstração de uma viagem desconhecida’, trazendo sentimentos e conceitos da natureza complexa, porque o contrário seria traição à viagem empreendida. Ela, a viagem, não se submete à sequencia tradicional do verso, ao eixo de acontecimentos de causa-efeito, à passagem de um equilíbrio a um outro equilíbrio, à, enfim, ação canonizada.  (Jane Tutikian, 2013, p.19)

Como dizíamos, se a potência do sentido não tem lugar no olhar sedento de Serguilha, isto se dá do mesmo modo como, para ele, o sentido é sempre atemporal e não captável. Nesta atopia, onde somos tão pequenos e animalescos, onde nos vemos insignificantes, anãos, tal como somos, abre-se o horizonte (oposto?) da grandiloquente máquina que nos produz e reproduz na coincidência do ser consigo mesmo: saber-se repousar o sentido justamente naquilo que somos, unicamente e sempre pela atemporalidade da linguagem. Logo, a poesia é sem tempo, tudo em confusão, pois poesia não vem a ser apenas um gênero distinto de outros gêneros literários, ou apenas um meio de libertação, (liberação pelo canal da palavra) seja filosófica, seja vanguardista, experimentalista, etc, mas, sim está em todo e qualquer acordo com a existência (sempre confuso e teatral acordo). A ficção/fricção de Serguilha repete e repete e repete a confusão abismal do olhar, a irrepresentatividade irreversível, no afã sedento de expandir a noção de poesia como sendo o próprio incompreensível do mundo, o “drama maior”. A poesia é confusão, atrito, é desordem da origem, pois é visão babélica.

E acaso, os homens prestaram atenção nas consequências, nos castigos babélicos, quando edificavam a Torre? Eis a mimetização do primeiro passo errante que demos desde Babel (cujo significado, lembra-nos Derrida, vem a ser justamente “confusão”). O passo no deserto de Kalahari – “a grande sede”. Como bem disse Segolin:

Serguilha assume mais uma vez, e ainda desta vez de forma destemida e estranhamente teimosa e reiterativa, o impasse primordial que preside à gestação e parto de toda linguagem humana: o da impotência definitiva da palavra, ou de qualquer outro signo, diante da irrepresentatividade irreversível do real. Mais uma vez, lembrando Lacan, o real é o impossível, pois nunca se deixa prender nas malhas do simbólico. Talvez – não o sabemos, mas alimentamos alguma desconfiança -, seja esse real cegante o paraíso perdido ou o Absoluto, enfim o Grande Outro, cuja presença ausente persiste em espicaçar nossa indisfarçável inessencialidade diante da inquietante indiferença do cosmos face ao humano. A impotência a que me refiro tem, a meu ver, grandiosas proporções, porque me recuso a aceitar, e nisto sou acompanhado pelos testemunhos da arte, da filosofia, da ciência e da religião, testemunhos enfim das grandes conquistas e realizações humanas, que o homem se reduza a um bicho-da-terra, frágil e diminuto. Há, na nossa pequenez, uma incontestável grandiosidade. E o poeta, neste caso, como sempre o faz, dedica-se a esculpir, movido por titânica persistência, máscaras linguageiras destinadas a esconder/revelar essa inevitável e incurável impotência do verbo. (SEGOLIN, 2013, pp.9,10)

III

O SURFISTA LAHAR EM ALTO MAR

“Os cavalos-poetas-surfistas entregam-se à geografia dos fluxos do invisível, do desassossego poético aliado aos mistérios da natureza” (Koa´e, p.102)

Tenho defendido que há uma “ética da desatenção” criada nas braçadas lahars do surfista (Luís Serguilha) e que seria próprio de uma técnica-avalanche entre o fazer e o não fazer poesia. Isto faz resultar, imediatamente, um estar-leitor-surfista no entre-lugar (do ler e do não ler poesia). O que se está a ler, então, senão poesia? Não importa. Coisa que o poeta descobre com o leitor e que ambos vêm apurando com o tempo: a descapitalização do significado, o contrassenso envelhecido do leitor (o outro lado) da estrutura comunicacional atendendo ainda esperançoso a alguma concessão fantasma, alguma “moeda de troca” (ANDRADE, Paulo, 2014, p.2). Técnica de produção de um texto capilar-fractal, filomático-rizomático, vale dizer: célere, remoto, terremoto, quase impraticável como leitura, pois difícil de ser absorvido com a devida atenção, como se se tivesse de lê-lo blocos por blocos, ondas por ondas, e não mais palavras por palavras, frases por frases. Tal técnica “holomovente”[7], se o poeta assim a avoca, ela possibilita a escritura como uma máquina de resgate de nossos desábitos de memórias perdidos no mar de nós mesmos. Uma máquina textual descristalizadora de sondar o insondável, lançando o leitor naquilo que Ana Maria Ramiro chamará de novos “labirintos barrocos”. Pelo mantra poético do surfar em ondas de mar profundo, o leitor é colocado no labirinto oceânico de suas próprias memórias, isto é, obrigado, do mesmo modo, a imaginar o poeta-surfista ali onde ele possivelmente não está. (Porque o poeta está, por sua vez, imaginando o leitor ali onde ele não estaria). O esquecimento torna-se mais importante que a lembrança, para poder vivenciar uma translinguagem dispersiva tamanha. Como os livros-poemas são muito longos, de repente, notamos que, na verdade, vivemos muito mais de lapsos de memória do que de nossas lembranças, e esta máquina meta-discursiva de prender a “desatenção” do leitor é, claro está, um empenho de malescrevência proposital. O alvo: um leitor mais “leve”, superficial, ao contrário do que aparentemente possa dar a entender, um leitor “pesado” que quer aprofundar-se. Tal empenho objetiva assentar-nos em um estado de vigilância deslizante com relação ao seu nosso próprio sonambulismo, incompreensão, inoperância. Não mais atento, iluminado, e sim em leve vigília na escuridão da leitura.

Assim, o público literário que se considerava sempre atento à boa obra não saberá deslizar nestas ondas e acabará descartado do surfing lahar, abandonando a prancha na areia. Neste mar deserto, o escrever bem (estagnada e limpidamente) não é mais tão relevante quanto inventariar “latitudes dos coreógrafos-dançarinos a pique” (Kalahari, p.47). A beleza não é mais insurgida da profundidade metafórica. Em Image I mémoire, Giorgio Agamben tece uma notável metáfora: “Beauté qui tombe”. Ocorreria um momento em que toda imagem de beleza, toda poesia, em sua elevação, repentinamente sofre uma queda, é imantada, magnetizada, por uma inversão vertical que Agamben chamará de um momento de “décréation”, uma quase suspensão entre o fazer e o não-fazer. Associo Serguilha a esta imagem, posto que sua textualidade explore tal suspensão de todo poema, sendo a caça extrema desta suspensão, advinda do imperativo de uma ultravelocidade de prender a desatenção do outro. Não mais “prender a atenção”, e sim “prender a desatenção” do outro. Não “largar”, mas prender a desatenção. Assim fazendo, o desatento, o outro, o deixa livre (ao poeta) em sua invisibilidade, em sua solidão de trovador de detritos sonoros, em seu surfar ilusionista-subterrâneo para si. “(…) amêndoas subterrâneas a esgotarem o magma embrionário da possível claridade: as garras-místicas e as queimaduras dos seixos recuam até a garganta estéril dos asteriscos (…)” (Kalahari, p.324). “Será esta meta-imagem primitiva uma espécie do catastrofismo-hipnótico de uma língua que tenta cicatrizar-se entre a memória náutica e as bibliotecas sibilantes para cartografar a elementaridade do abismo? (…)” (KOA´e, p. 99)

Penso que a transformação essencial para Serguilha seja a do poeta para si mesmo, o poeta infuncional que desliza sem parar pela superfície das ondas até quando não conseguimos mais o acompanhar, até quando ele mesmo se perde, porque então, significa que escreveu seus textos para a própria espuma do sentido, para que jamais o capturássemos e não o contrário, para que o fizéssemos seu poeta. “Os LAHARS dos poemas-surfistas vascularizam e devoram as coordenadas das secretas fecundidades, das translações dos fulgores das moradas, das tresloucadas totalizações, onde se reconciliam as línguas, as lunações, os jogos de luz (…)” (Koa´e, p.100). A ética da recusa, de não ser este poeta iluminado em um espaço (no sentido mitológico do bien écrire fisgado pela luz do leitor). Deste modo, estar perdido em alto-mar. O poeta recusado, resignado sob a liquefação da vida moderna, na transitoriedade surfante de um espaço vazio (naquela acepção trabalhada por Bauman em “Modernidade Líquida”, o espaço não-visto, atemorizante, onde não há com quem negociar nada, espaços que são resíduos que sobram perante espaços elegantes, enormes lugares não-vistos, oceânicos, que, em verdade, são os lugares das grandes margens negligenciadas). O surfista longe da costa, onde já não tem mais ondas, onde transborda a tempestade do alto-mar, como cavalo-surfista apocalíptico. Compulsivamente caleidoscópico, gritando socorro para os surdos.

Serguilha, de tal modo, um fenômeno natural do presente – não propriamente a ambição de representar o mar absoluto da dicção (pretensão de universalidade, como observam alguns) – mas sim, o buscar intervir em um acidente geológico que abata a si mesmo como eu-lírico-surfista fazendo deslocar a crosta do mar de delírios da linguagem, instituindo, assim, um maremoto erigido pelo transe das sismologias experimentais: maremoto poético. E, portanto, o outro está excluído – quem eu penso ser o outro está excluído do cânone – ou melhor, o próprio poeta está abandonado em alto-mar, uma vez que não é possível explicar de modo teorético ou de qualquer modo terreno (a não ser ciclônico e mimético) aquilo que um fazer poético totalmente solitário se propõe. “(…) As radiações do poema expulsam as ideias explicativas, interpretativas, teoréticas porque os seus elementos regressam da pulsação do delírio, do não-lugar, das bibliotecas visionárias, da fertilização originária, do vazio relampejante, das ascendências mágicas-alquímicas, da espontaneidade da fecundação da matéria, da solidão antropofágica, dos rituais secretos da linguagem” (Koa´e, p.117). O alto-mar e o poeta são lutadores e irmãos, paradoxalmente, os lutadores do indomado, são implacáveis, o lugar de profundezas insondáveis e de riquezas infinitas sempre em dinamismo, como diria Baudelaire, em L´homme et la mer: “ô lutteurs éternels, ô frères implacables”. E, desta luta fraternal, o que se pinta não é mais o universo da palavra sangrada pelo esforço, tal como na tradição da arquitetura cabralina ou do canto nerudiano, e sim, como afirmaria o texto “Quando a metáfora rebenta o céu da linguagem”, um “(…) novo universo encharcado de cores e formas insuspeitadas” (BAJO, Beatriz, p.2).

O que faz o poeta vagal, encharcado em seu uniforme de borracha impermeável, distante e tagarela, acima de qualquer suspeita, então, vem a ser esse surfar só seu pela tábua da palavra (em alucinose babélica). Espetáculo alucinado em mar profundo (que é sempre superfície), tsunami sublime para os curiosos que também navegam em “alto-mar”, cientes da perdição da bússola, do norte, onde para qualquer lado que se olhe se estará em perigo oceânico (afundando, no pântano delicado que é o próprio mar indômito e sem fundo). O objetivo de suster uma assinatura perdeu a razão ante o deleite das manobras radicais. Talvez não se queira fixar – como assinatura – fortuitamente na diferença, busca-la: sobretudo, se fazer a diferença estética for convencer o outro, abdicar dos rituais secretos da linguagem, dos lugares indizíveis que podem ser apenas pistas poéticas do navegante. Em território obscuro-transgressivo, fixar-se no adiamento (diferer) do sentido. (“Differance”, justamente para Derrida, termo anti-fenomenológico já do início dos anos sessenta, pois pos-estruturalisticamente o significado não está pressuposto ao significante. Todo mapa fenomênico é inviável). Para o surf lahar nada se representa, há apenas intervenção nas ondas que já estão lá, a sua espera.

E nesse navegar versus qualquer estrutura convencional, neste sulcar o mar, atravessamento também magmático, químico, alquímico, etc, nesta viagem atrevida (já feita por outros portugueses) – estando embora nas margens e em “alto-mar” ao mesmo tempo – rasurando fenomenologias, a poesia como poesia repulsa, rechaça, obviamente, as condições de sentido dos “surfistas rasos” de seu tempo, os de pequenas ondas.

Levanta-se, de repente, uma voz cética: Até que ponto o desejo secreto não é, precisamente, mera utopia? A utopia de abalar os equilibristas do poetar atual que buscam sempre agradar a plateia do momento, aquela que se encontra vigilante em terra firme? Poesia simples para os atentos a ser totalmente transfigurada por um ciclone devorador de energias de desatenção. Serguilha levanta-se febril, sem simplicidade, contra a fração de poetas acomodados da agoridade que, mesmo após toda uma tradição de devastações metafísica na poesia europeia, sobretudo lusitana, optam pela crença na representação e escolhem metáforas acessíveis e belas, elegendo o protótipo da segurança aos leitores-fãs, poesias de encomenda, conforme as demandas editoriais assim desejem, em um mundo de controle microfísico do belo e do rebanho desde Cesário Verde, desde antes. Estamos, ao contrário, ante uma coreografia-dançarina autônoma dos “cavalos-surfistas-mistérios” de Koa´e (2011), ou ainda na “loba hidrodinâmica e planetária” de Kalahari. Seja no mar ou no deserto, tudo se passa de igual modo, em turbulência e solidão, maremoto em alto-mar, potência extrema do enigma ratificando acepções pós-estruturais, rizomáticas, de que convivemos em arquipélagos de sentido onde o sentido em si não existe, ou não passa de um iceberg presumível afundando numa anamorfose infinita, pois o fato, qualquer fato, está sempre em variação violenta e não passa de trans-geometria efervescente da representação. Captá-la, para o poeta-surfista não é simular coisa nenhuma, não é lembrar nada, é, apenas, deslizar na superfície do profundo não a captando, ao sabor do holomovimento em desenhar melódico envolto em uma neblina que nunca se dissipa, “secreta por não ter nenhum segredo” (BLANCHOT, 2013, p.34), condensando um falível cântico da velocidade mitografada e já pré-conservada no sal do esquecimento. Por isto, o autoflagelo ante a história, ante qualquer referência possível. Inversão radical: não é preciso impressionar o leitor. A poesia acontece.

Não se quer fazer parte de uma versão universalizada, porque o palimpsesto não existe. Se localizarmos esse poeta surfista em algum momento, se vermos o seu rastro e pistas de sua memória, se o avocarmos “Serguilha”, apenas localizaremos as espáduas criativas que surfam para a própria morte, uma sombra cintilando no grande oceano da linguagem que jamais comporia uma manobra impressionante. As ondas em fúria tiraram a atenção do surfista e de todos. Um poeta que renuncia ao instinto do próprio poeta, portanto, e que reivindica um leitor que renuncie ao instinto do próprio leitor. O trovador “atlântico” que não pode ser hospedeiro, não pode ser parasitado (Jonathan Culler), que não pode ser “Pacífico”. Poeta que aceita o risco da própria morte para levar a cabo sua inspiração incipiente. Inspiração em nada impressionante porque nem mesmo podemos prestar atenção no que realmente é, no processo dinâmico em que diz. Seria o surfista lahar um Poeta mascarado?

Saramago (interessante convoca-lo aqui, sem motivos) tem um artigo acerca de Fernando Pessoa, publicado no Jornal Lisboa logo após “Ano da Morte de Ricardo Reis”. Para Saramago, não poderíamos definir um Pessoa unificado, sob mascaras, sentidos: Define Pessoa como “homem de máscaras que olham máscaras”. Só as máscaras podem porventura abranger o rosto de Pessoa. Assim sendo, como ramificar Pessoa em heterônimos, vozes-existências outras? É a própria pluralidade quem fala, colada, grudada, no mascaramento em si e não no autor com sua solidão. Penso que este ensinamento heteronímico de Pessoa não é, cabalmente, esquecido por poetas como Serguilha, conscientes de que seus rostos de poetas se constituem como mascaramento em desassossego, invisibilidades identitárias, ao seu modo. Embora tenham biografia, não são poetas de Portugal, não são universais nem locais, estão além da costa, livres da nação, nas margens do sistema, compartilhando o êxtase daquele profundo anonimato de que falava Blanchot. Máscaras que olham máscaras, que, no egocultivo plural, acendem a dissonância nas expectativas e na impossível memória do caos. Culler, em um ensaio teórico bem conhecido entre universitários de Letras, perguntaria, mais decisivamente, sobre a literatura como a erva daninha da linguagem. Este parasitismo, este movimento da erva daninha é algo que se destaca, no duplo sentido, para ele. É difícil diferenciar até mesmo o que é poesia ou ficção, assim como o que é uma erva daninha num jardim, como diferenciar então o que é a poesia laharsista se ela mesma é, a todo tempo, mascaramento de todos os discursos (embaralhamento babélico). Serguilha é aquela erva daninha difícil de arrancar. Eagleton e Paz falavam da estranheza da literatura equivalente a um discurso não-pragmático, mas no caso do surfista lahar não é apenas o fato de se sustentar ou não um discurso literário ou não-pragmático. O que temos no laharsismo é uma proposta de provocação daninha ao próprio logos tomado como mascaramento infinito expansivo, proposta de colocá-lo em pantanosas emboscadas melódicas e imagéticas, bem como fazer a acusação da criatividade deslizante como sendo a, histórica, erva maléfica do pensamento. Se Serguilha, como tendência excessiva e obsessiva de poeta-surfista, é um parasita do pântano, uma sanguessuga de um conglomerado de modalidades de discursos, utilizando de terminologias dos mais diversos corpus científicos e constelações estéticas, se o laharsismo configura mascaramentos de todo tipo de saber, da geologia à genealogia, não o faz apenas com intuito de parodicamente impressionar o leitor. Logo, quem o acha “impressionante” não percebe o estado de indistinção entre isto e aquilo, crê que se trata apenas de uma nova e ingênua vanguarda, logo, não terá paciência de ler um livro seu do início ao fim, por estar a buscar sentidos atrás de sentidos. Penso que o laharsismo aparece-nos com o escopo de solapar as tendências harmônicas da memória. É uma consciência que deve cair como um raio no leitor. Abalar as tendências microfísicas e invisíveis que instituem, nos sujeitos, uma pretensa sensação de confiança como reprodutores de sentidos e que faz com que as pessoas tangenciem a razão como robôs totalitários, desaguando em escamoteamentos considerados deploráveis há tempos por inúmeros pensadores canônicos, Da Vinci, Valéry, Nietzsche, Artaud, Pessoa, Dali, Beckett, Deleuze, Foucault ou Nancy.

Serguilha, por sua vez, na ojeriza a planos submersos e holofotes àquilo mesmo que diz, expressa sua repugnância à metodologia de criação lenta, à metodologia do pensamento hierárquico, adulto, masculino, passo a passo, ao construtivismo do raciocínio, à engenharia fake, à ruína da espontaneidade infantil, seja poética ou simplesmente dialética, postulando o seu absoluto contrário: a obrigação da inventividade atabalhoada, feita à pressa, incidental e sem competitividade ou segmentação. Criatividade relâmpago. Grito lactante: um chamamento de desatenção, comunicação primitiva. Uma estética munchiana do Grito uterino: “(…) Ela desabrocha-se nas danças sacrais e incandesce a pulsação onomatopaica da anterioridade: uma disseminação náutica que bate nas primeiras energias do ESTAR-no-mundo (…)” (Kalahari, p.134).

É como se apenas uma nova mirada expressionista aquém-e-além, ou seja, estereoscópica, tridimensiva, em várias dimensões simultâneas, pudesse ir contra a anestetização contemporânea, acolá dos parâmetros convencionais da linguagem. Nisso, reivindica-se gritantemente uma urgente transvaloração de valores, ou seja, o que se deve valorar é a metamorfose das divagações lactantes, estéticas, incessantes, nômadas, imprevisíveis, sonolentas, infantis, aventurais, desmontáveis, itinerantes, naufragantes e cavalgantes, ou seja, combater pacífica e contraviolentamente tudo aquilo que, em seu paradeiro, de algum modo, limite o espírito pueril e teatral do mundo. A função da poesia é, portanto, em certa medida, política, ou melhor, etopoiética. A poesia possível está concatenada no papel de atentar para os primórdios da própria linguagem, um papel de apagamento do ser autor e do ser leitor. Ademais, ao misturar línguas perdidas, mortas, com a exploração perturbadora de metáforas científicas modernas e operacionais do século XVIII ao XXI, Serguilha irá levantar, penso, a questão da biopolítica, ou da transformação dos discursos e dos poderes a partir do liberalismo, a partir do iluminismo. Sua poesia irá atentar, conscientemente ou não, para a dissolução do que chamamos “saber” e, assim, do que compreendemos por “poder”. Irá atentar, também, para o que Foucault chamou de evolução de biopoderes, das regências sociais da vida, em que, de uma antiga força anátomo-política do empirismo poderoso sobre as pessoas, passamos repentinamente, no curso de alguns séculos, a uma força investida em governamentalidade pós-disciplinar ou ultra-disciplinar. Uma poesia, assim, que é (a)política não apenas com relação à disciplinarização do sujeito individual, bem como crítica contra a lógica do discurso especializado justaposto às verdades homogeneizadoras da massa. À medida que a massa se tornou o corpo modelável pelos poderes, e não mais o sujeito individual, a poética de Serguilha não se investe ironicamente contra o indivíduo capitalista ou contra a massa harmonizada, mas, diretamente contra essa força a qual Foucault nomeou biopolítica, força geneticamente atualizada no próprio discurso moderno como tecnologia de desassujeitamento. Em outro sentido, a utopia jamais é possível, pois a poesia ressignificando o próprio caos, omnis, não pode nada mais a frente de si mesma. O corpo do poeta é, agora, “corpo cavalo-surfista-poeta, um corpo-flutuador de abismos (…)” (Koa´e, p.101). A poesia, tanto em Kalahari quanto em Koa´e, não pode ter papel político, a priori, posto que, em todo seu ruído lahar, busque o silêncio. “Aqui o poema procura a voz do silêncio (…)” (Koa´e, p. 121) ou “inabordáveis desfiladeiros de silêncio (…)” (Kalahari, p.319)

Esta postura paradoxal, ao mesmo tempo pretensamente “revolucionária” e “nada política”, tem criado certo deus-nos-acuda na restrita fortuna crítica do poeta. Para alguns críticos como E. M. de Melo e Castro, o encanto poético de Serguilha se trata, justamente, de uma procura trans-semântica, ou uma “(…) língua poética diferente da língua pragmática da comunicação quotidiana, mas sim, talvez a forma de comunicação que remonta às origens da humanidade (…)” (MELO E CASTRO, E. M.). Para outros, como o poeta crítico Cândido Rolim, Serguilha está mais próximo ao dramatismo de Neruda[8], por exemplo, e não nos reenviaria, exatamente, a uma língua originária, mas sim designaria um “mundo a parte”, na fronteira entre metáfora e imagem:

Na obra de Luís Serguilha parece não haver brecha para humour ou cadenciamentos líricos; trata-se de uma racionalidade mais derruída que em derrisão. Também não creio ser pertinente afirmar que nessa poesia predomine a oralidade ou que há uma estratégia de retorno redentor aos primórdios da voz, como quer o crítico e poeta E. M. de Melo e Castro. Na escrita volúvel de Serguilha pressente-se uma zona fronteiriça entre metáfora e imagem. A construção poética como um flagelo apofântico, pantográfico, flagoroso tateio nominativo, inaugurados: sôfrega instauração de um mundo à parte. Escreita que se impõe em re-composição holográfica e que se entreabre em luxúria fanopeica. (ROLIM, Cândido, Escrita em Volutas[9])

Todo modo, o que aqui proponho vem em outra ordem de debate – independentemente de assegurar que seu estilo possa reenviar ou não o leitor aos chamados “primórdios da voz”, o que acho um tanto mais cobiçoso à filosofia da linguagem – proponho que Serguilha produz uma impossibilidade de levar o leitor a qualquer lugar que não seja a sua própria desatenção e invisibilidade. O leitor anônimo se vê em ondas de perigo, estando igualmente em “alto-mar”. Talvez sim um perigo infantil, primordial, e aí sim eu concordaria com Melo e Castro (texto “Luís Serguilha, um transgressor do sentido e dos sentidos”[10]). Quando digo, renitentemente, que estando em alto-mar o surfista-poeta não quer impressionar o leitor e não precisa dele, afinal não pode ser parasitado por ele, é porque sequer o leitor individual poderia se condicionar como tal, a não ser como cavalo-surfista, igualmente.

Ler seria, pois, não escrever de novo o livro, mas fazer com que o livro se escreva ou seja escrito – desta vez sem a intermediação do escritor, sem ninguém que o escreva. O leitor não se acrescenta ao livro mas tende, em primeiro lugar, a aliviá-lo de todo e qualquer autor, e o que ele tem de tão imediato em sua abordagem, essa sombra vã que passa sobre as páginas e as deixa intatas, tudo o que dá à leitura a aparência de algo supérfluo, e mesmo a pouca atenção, o pouco peso de interesse, toda a infinita ligeireza do leitor afirma a nova ligeireza do livro, convertido em livro sem autor, sem a seriedade (…) (BLANCHOT, 1987, p.193. Grifo nosso.)

O leitor não pode vê-lo lá em “alto-mar”, ao poeta retirante (em anakhóresis). Aliás, este conceito de “alto-mar” me parece muito conveniente porque é o lugar no oceano que não se submete a nenhuma jurisdição estatal, é a zona marítima longe da costa, longe da segurança, dos portos, da competência das leis, um mar não territorial, ameaçador. Destarte, a inspiração que faz o poeta surfar em “alto-mar” é a da liberdade total, ausência de nomos, uma inspiração escamoteada do próprio testemunhar que poderia ser portanto chamada de solitária, de auto sabotadora, ou seja, um devir-poeta que está “por um fio” de si mesmo (qual Edmond Jabès: “Eu me curvo sobre a palavra de finas escamas. No mar a palavra atordoa. Ela foge por entre os dedos do curioso. Ela vigia o anzol. O pescador é o intruso o monstro. Levanto meus olhos para a palavra de belas plumas. No espaço ela está por um fio por um espanto (…)” (JABÈS, Edmond[11]). Pensemos: quando o leitor não carece de ver o poeta para ser leitor, o que é ele? E quando o poeta não carece do leitor para ter o estatuto de poeta, será ainda um poeta? Serguilha, trovador solitário[12], menestrel sem leis (e o leitor também deverá segui-lo para fora-de-si), expedindo ou não o polo testemunhável (o leitor) a qualquer atopos possível. Nessa espécie de apoteose mística, na dualidade apolínia-dionisíaca de seu desencastelado artifício, Serguilha intensificará, em exuberantes símbolos poiéticos, a imortalidade imanente do retorno. Compartilhará a imprescindível lei do eterno retorno, conduzindo nos declives do surfista-ele-mesmo este fardo imenso que abismou a Nietzsche. E, neste surfista deveras talentoso, porém perdido em alto mar, haverá certa inclinação nietzschiana (como pianista frustrado) ao romantismo no fascínio pelo auto martírio anárquico (refiro-me à dimensão masoquista de Nietzsche muito bem ressaltada em sua biografia por Dorian Astor). Se Serguilha torna-se um imoralista solitário contra qualquer discurso de seu tempo, partindo versus qualquer coisa que não seja sua própria paixão poética abismal e sua arrogância dada pelo deslize, por outro lado, fará ainda um aceno ético “(a)político”, na medida em que jamais deixa de ser um encorajador do pensamento como resistência a qualquer encouraçamento. Já que o encouraçamento num constructo discursivo, ou qualquer crença artificiosa no subterrâneo da voz, seria acreditar no resgate daquele que estaria a ouví-lo, o outro cantante, seria acreditar em uma responsabilidade estética que na verdade é apenas eco, ressonância, dissonância. Havendo uma ética da desatenção no laharsismo, ela jaz(z) no total apagamento agonístico-egoístico. Como muito bem diria o performer e professor de mandarim (e seu amigo) Chiu Yi Chih, no ensaio “Escritura e Filosofia na poética de Luís Serguilha”[13], adviria na estética do surf lahar uma impermanência subterrânea…

(…) numa radiografia incessante das invisibilidades, numa indeterminação ao mesmo tempo precária e efervescente, uma vez que ‘a caminhada do poema-simulacro-surfista é violenta –crepuscular-contornadora-autónoma e destrói as significabilidades, as interpretações’. Por isso mesmo, ela se corporifica e se faz gesto conceitual, órgão ressoante, ação política, porque nunca se enrijece nas formas encouraçadas, sempre mantendo-se singular e universal. (CHIH, Chiu Yi, p.4)

IV

MIRA-MAR-GENS DO DESERTO

“Não existe sentimento que transporte para exuberância com mais força que o sentimento do nada.”

Georges Bataille


Kalahari trabalha na densidade da exuberância do poético. Uma densidade onde o poético, como alucinação, como mar, como margem, como mirada, já não é o que parece ser em seu lugar, é trans-poético. Kalahari, como em outras obras do autor, tem consigo a necessidade das desatenções prismáticas, da desatenção linguística constante e do pacto do leitor como um pacto do deslize. Pacto do leitor-surfista em ondas de ressonâncias perigosas e insondáveis, (geo)gráficas  e (geo)lógicas (cósmicas-primitivas), como um infinito regirar teatral, poesia de giradas cênicas que não acabam nem começam, apenas plenitude viciosa de espetacularidades inéditas que dispensa a função-leitor como a daquele “velho filho”, o leitor profundo. Ao contrário, o leitor passa a ser o olhar vivaz que desliza em superfície, está em estado de “miragem”, como quem contempla uma paisagem totalmente inabsorvível, exuberante, espuma devoradora. Como dirá em Koa´e:

A poesia como potência linfática e como metamorfose devoradora de simulacros sacraliza o insondado, constitui as ressonâncias demiúrgicas, transforma-se num escorpião de ambivalências, liga-se ao cavalo-sonâmbulo-poeta-surfista como uma recriação das geografias cósmicas-primitivas a provocar rodopios cênicos (…) (Koa´e: 101)

Serguilha, sendo o autor que porta a elocução de todos os saberes, de todas as ciências, de todos os espaços de saber, é por isto mesmo o autor vencido, o auctor, o pater, o pai vencido pela modernidade. Onde estará? No deserto da linguagem, lá onde tudo está. Ele, o poeta invencível e ao mesmo tempo o pai vencido, é nada mais que a revelação do seu próprio poder-saber, da morada murada, é pura exuberância. Essa revelação se dá pela tomada de seu próprio nome próprio, de sua torre, de sua exceção e excitação. A tragédia do poder é uma tragédia do excesso. (Deleuze e Foucault nos ensinaram isso a partir de Sófocles). Lembremos que Édipo, por saber demais nada sabia, na peça trágica. Assim também em Babel, Deus por saber demais de nada sabia. O pai de Foucault era um sábio, mas não sabia que o filho ansiava ser filósofo e não médico. O pai de Kafka sabia de tudo, porém não sabia que o filho escrevia-lhe cartas de horror. O poderoso Urano, tudo sabendo, não sabia que Cronos recebera de Gaia a harpe para castra-lo. Se o pai que nos ensina, se o pai que nos educa e nos nomea, é o incapaz, onde está a lógica? Onisciência paradoxal, uma vez que quando Deus vem a tomar consciência do perigo da torre de Babel ela está quase arquitetada, prestes a violação do seu Nome Próprio; Thèos. Derrida nos informou este paradoxo. Às vezes parece que os homens são mais rápidos que os mitos. Este só revela os nomes e os castigos quando a culpa transborda, o pecado da transgressão se impõe. Eis também a imagem clássico-moral do Pai.  E o pai (o autor) é aquele que nos dá um anel, um nome próprio, ponto central do sujeito, e mais que isso, aquele cujo sobrenome é o dele, o puro excesso, a pluma, o peso, a pedra do anel, o pacto.

Há, na obra de Luís Serguilha, sobretudo em Kalahari, como dito, uma exuberância debelando toda a tradição do desejo da transcendência e assim, o seu texto perde a paternidade (a auctoria), perde a possibilidade de transgressão, a pretensa transcendência à bestialidade. Sendo pura exuberância profana de sentido e não-sentido, não se põe nem profana nem sagrada, quer seja, sendo pura exuberância vertiginosa de sentido e não-sentido,  não se assenta nem vertiginosa nem ordeira, ela é uma bomba-relógio atômico-atemporal que implode a zona de conforto da linguagem: a paz utilitarista de qualquer discurso especializado que se ponha como saber. A própria poesia é, agora, autossacrifício da dicção moderna e pós-moderna, do saber estereotipado que simula o que, estruturalisticamente, se chamaria de “campos discursivos”.

O leitor de Serguilha necessita aceitar o pacto da herança da hibridez. O pacto da exuberância, ao preço da impotência de um vínculo fácil à própria tradição. Se a poesia passa a ser vibração da dicção, mescla incondicional e deliberada de todas as segmentações possíveis, este enfeixamento exigirá um leitor alucinado, um leitor exuberante, leitor-que-nada-procure, leitor perdido. O eu-lírico que vaga por omnis é extra-vagante, está em alucinose futurista, herdeiro do espírito sensacionista pessoano, porém, de igual modo, transgressivo com relação a ele, porque se propõe como arquétipo da fragmentação pós-utópica de todos os discursos, não podendo o laharsismo se vincular a praticamente nada a não ser a um exercício de verborragia. Interessante esta sede carnavalesca que sobrevive à era de Cesário Verde e ao zoneamento social que o poeta não mais absorve, na negativa baudelairiana da modernidade. Agora, temos o poeta vencido, o pai vencido, que acata a modernidade como fogo-vegetal, instituidor primeiro que venera, acaricia, reverencia o caos (a desordem), acata a artificialidade extrema, impulsiona plasticidades de “energias encantatórias-transmutadoras” (Koa´e: 101), desandando o fazer poesia em um pastiche pós-utópico, reestampando a velha teatralidade lusitana, a elegância dândi sá-carneirana por exemplo, e também a loucura do flâneur cesariano, (nisso, solaridade e sombra) em um mesmo método de produção estética onde as anamorfoses fractais da palavra estereoscópica transforma-se em “fogueira-dos-exílios” que lembra Herberto Helder.

Estética-avalanche (LAHARSISMO), onde se cria sua própria transmitologia, sua bio-sistemática sem ecossistema, sua anamorfose lírica. Em um mundo de orfandade e delírio pós-sentimental, o que sobra é: a sacralização insensível do próprio mecanismo da junção palavra por palavra, pedra por pedra, para (de)composição poética de uma torre sob um dilúvio desestabilizador que se propõe como uma espécie de novo ensaio surrealista, talvez, como se sua experiência automatizada e evaporizadora da linguagem pudesse ter proporcionado a germinação desses “anfiteatros-sacerdotais”:

A germinação dos anfiteatros-sacerdotais reverencia as alavancas perdidas do húmus-dos-uivos: minúsculos vulcões-sensoriais são lembrados na cumplicidade dos poros diluvianos (danças da orfandade e das assombrações do deserto): as magnólias translúcidas dos olhos descobrem a ressaca das constelações nas gotas perseguidoras dos pássaros reconvertidos em sonâmbulas nervuras da contemplação, um fio enlameado de cores-simétricas a reconhecer as invasões genéticas, quilhas a baterem nos peixes vendados até aos espectros das preces solares (irreconhecíveis armaduras da memória-futurível) (Kalahari: 351)

Os pintores mais exuberantes (delirantes? alucinados? sob efeitos de narcóticos?) lembram Serguilha. Lembremos, no quadro da “noite estrelada”, Van Gogh desenhava um moinho nos céus. Van Gogh mostrava que o céu simplesmente existe, ele não está preocupado em pensá-lo ou delineá-lo. Van Gogh, em plena loucura, no asilo de Saint-Rémy-de-Provence, abate com a tradição do Impressionismo, figurando as estrelas vivas e a lua sem contornos como vários sóis circulando silenciosamente sob um efeito de eternidade que ali protege os telhados da cidade. O pintor holandês situa este céu angelical sob a Provence destituindo-a de qualquer procedência. Talvez leiamos um estreitamento ao surreal e à descontinuidade pictórica já aí em Van Gogh, em 1889, no modo como ele silencia o espaço e o torna uma espiral noturna. Serguilha, por sua vez, pinta a própria linguagem em delírio (e como Jackson Pollock, lança a tela/texto no chão e trabalha por espirros casuais, potencializando em empastamentos uma ação dinâmica do acaso) torna possível a impossibilidade da descrição do real como real, da interpretação do artista como artista criador, paterno, primordial, autoral, instituidor, fecundador (e sim como agenciador da ação artística autônoma, exuberante, nascida em partenogênese, como os dragões-de-komodo) coisa que uma vez mais sucede na arte desde ainda antes as experiências dadaístas.  Artaud já apontava este absoluto indescritível no caso Van Gogh, mostrando que seus quadros (pós-impressionistas), sendo paisagens teatrais de cores sonoras esmagadoras, acabam extravasando a possibilidade do pintor para possibilidades outras de interpretação do próprio gesto estético.

Esta poesia, a de Luís Serguilha, liga-se no plano visual a essas formulações, entrelaçando-se a tal ponto a visualidade e a verbalidade que se torna difícil vê-las separadas; ele explora e extrapola as possibilidades da verdade convencional na virtualidade artística da página, fazendo-nos recordar o desenho ou mesmo a pintura como elementos de comunicação. Como dizia Soares, “aquele mito modernista, estruturalista, pós-estruturalista, contemporâneo e globalizado, aquele que nos fala da desmultiplicação de sentidos do poema, realiza-se aqui”. Isto é, como se lê em Castro, “um texto que comporta intermitências, descontinuidades e saltos, assim só se enriquecendo em termos de fruição e de significados recorrentes (…). Ou seja, um texto que está indo na direção do chamado hipertexto embora construído em suporte informático interactivo”. OU também, como se lê em António, “quanto ao processo criativo, é possível estabelecer relações e afirmar que Serguilha transforma o action painting de Jackson Pollock em action writing, que explora as técnicas do poema automático mecânico dadaísta e a escritura automática dos surrealistas (Da poesia e dos diálogos interartes: 3)

Se visualidade e verbalidade se miscigenam, o poeta não é poeta, o pintor não é mais apenas pintor. Van Gogh é, para Artaud, um escritor formidável e um músico que não precisava de palavras ou instrumentos musicais, escritor que ao pintar recusou contar histórias, e esta recusa é o mais importante (recusa da História, do logos, renúncia dionisíaco-nietzschiana, igualmente). E, porque não poderíamos dizer, ela também acontece na poesia-tela de Serguilha. Se em Van Gogh, lido por Artaud, não temos propriamente um louco que não sabe pintar e sim um pintor que não consegue ser louco, ser ele mesmo (porque a sociedade que o suicida é, sim, “louca”, “alucinada”), em Serguilha, temos, de igual modo, não exatamente o louco que não sabe escrever, mas o escritor que não consegue ser o louco que gostariam que fosse, o insano-genial capaz de ordenar uma narrativa poética (porque todo ensejo de dicção é loucura para o laharsismo), assim, ele, o poeta, se aproximará da visualidade.

É a estratégia (uma delas) que Serguilha encontra, ele transporta o mesmo teor convulsivo da pintura exuberante abstrata, demudando em tintas exploradoras às palavras, criando sóis liquidantes e inesgotáveis, devassando uma dimensão agonística pelo exercício da arte. Ademais, aproxima-se do experimentalismo das artes plásticas e visuais criadoras de expansão de horizontes imaginários em panoramas, obras que visam desestabilizar o leitor, explorá-lo em inéditas fenomenologias perceptivas. Obras que, a todo custo, repudiam referências culturais ou narrativas (tal como as de Lygia Clark ou Waltercio Caldas, para citar exemplos de reconhecidos artistas brasileiros) fazem do laharsismo, provavelmente, um lugar próximo. Aquelas obras de Waltercio Caldas dos anos 90, feitas em carimbo sobre algodão, onde vemos nomes próprios de mitos canônicos da pintura (os “pais” da pintura) se esfacelando em uma caixa fechada, impossível de ser preservada, assim me parece o efeito que Serguilha quer como estampa de seu próprio nome em Kalahari e outras obras. Apagar a genialidade possível de qualquer livro ou ciência ou autoria, sacralizar o impossível para torna-la perecível. Uma poesia onde o nome próprio do poeta, sua assinatura (foucaultianamente como dado estilístico, como agrupamento enunciativo de certo modo de fazer diferencial) é reduzido a chumaço de algodão, material perecível ao extremo. A busca incessante de tornar perecível o seu próprio nome na história é uma caça contraditória e pungente. E podemos aproximar Serguilha, e seu estilo desfragmentador, desmultiplicador, (trans)itório, de uma obra de Waltercio Caldas, tal como poderíamos aproximar o estilo perfurante e excessivo de outro contemporâneo, Jorge Melícias, da pontiagudez das obras de Waltércio dos anos 70, “Centro de Razão Primitiva” ou de “As 7 estrelas do silêncio”. Pensando em termos de estética luso-poética pós-moderna, poderíamos aproximar Luís Serguilha de algumas técnicas de delírio sublime de Isabel Mendes Ferreira ou da bestialidade obscura de José Emílio-Nelson. São aproximações possíveis e, claro, impossíveis. Pois que o laharsismo é uma voz sublime que sempre se afasta, em expansão de avalanche.

Todo modo, “Serguilha escreve como quem desliza na intensidade do estilo” (OLIVEIRA, 2011: 1). A poesia de Serguilha é transpoética porque ultrapassa o que poderíamos deter como poesia. Kalahari é um livro atravessador de paisagens, livro que não se lê, livro que decreta a desatenção e o desafeto do leitor. Um livro que nos exige tanto a cumplicidade do não-acesso, que para realmente lê-lo é preciso surfar na impossibilidade da imanência interpretativa. Isso é surfar no apagamento hermenêutico. Nome do leitor carimbado, igualmente, no extinguível algodão. Tudo o que sabemos ou sabíamos não tem mais importância ante Kalahari, a memória é embaralhada e torna-se sonâmbula.

Olha-se e surfa-se o livro como um quadro microfísico e hipertextual. Ela é uma poética que exige, antes de qualquer coisa, cumplicidade onírica, transcendência, transversalidade, assim sendo, exige o dom-aquém da própria poesia. Um momento em que o poético ainda não faz sentido como poético, mas já é outras coisas. Para Blanchot, ouvir música ou apreciar uma pintura faz daquele que sente prazer em ouvi-la ou contemplá-la, um músico ou um pintor. Muitos ouvem uma melodia ao mesmo tempo, muitos observam um quadro no museu dividindo o mesmo olhar, o mesmo gesto de ver, e repartem imagens, fantasias coletivas. Mas, é preciso ser dotado de um “dom” para real cumplicidade de ouvir e ver, um prazer clandestino, diria Blanchot. No entanto, não é apenas o autor que é “dotato”, é, em essencial, o leitor, o expectador, que cultivam o dom. Breton, Kafka ou João Cabral negaram o dom da música, mesmo assim há uma dada música em seus escritos independente deles. A questão é: o quadro que não se vê é ainda um quadro, a música que não se escuta, igual modo. Mas, e o livro que não se lê, o que é? Para Blanchot o livro que não se lê é algo que ainda não foi escrito. O livro em biblioteca, livro-morto, objeto ouvinte que aguarda o comando, o Lázaro, veni foras. Em outras palavras, o leitor dotado do dom de ler é aquele que alivia o livro do peso de seu autor. A leitura é leitura quando faz do livro algo distinto daquilo que o autor ouvia como sua música, este é o dom. Não se entra em um poema, se é o poema, em leitura; pois toda obra chega à primeira vez à presença mesmo na releitura. O que aparece na música é a música que aparece na leitura, pois tudo é inacessível. Poesia exuberante, como experiência do deserto, do mar deserto. Kalahari.


Notas:

[1] “(…) A filosofia de Georges Bataille procede, assim, de uma obnubilação esclarecida face à origem do mundo, de uma perseverança quase vital que tateia suas constâncias ontológicas traduzidas em angústia, em um estado de derrelição do homem, abandonado às suas impotências. Uma origem pela qual — ou contra a qual — nós tentamos erigir um saber: um saber de combate e de ignorância. Mas este saber não chega a clarear as respostas. No limite, quanto ao saber absoluto, só podemos esperar um não-saber, aquele que “não suprime os conhecimentos particulares, mas seus sentidos” (Bataille, 1986, p. 67), aquele pelo qual “a consciência cessa de ser consciência de  alguma coisa” (Bataille, 1967 [1949], p. 224). Assim, segundo G. Bataille, é rejeitando o desejo aprisionado de uma razão que salvaguarda sem explorar, tentando libertá-la, sufocando seu desejo de transcendência e de supremacia paranóica na distinção guerreira entre o sujeito e o objeto, é que o homem pode aproximar este sentimento de continuidade, de soberania, de comunicação suprema da qual ele se dissociou com sua nascença e seus aprendizados da moralidade: “A comunicação é o contrário da coisa, que se define pelo isolamento do que é possível fazer” (Bataille, 1967 [1949], p. 301). Tal é a proposição angustiante e soberana de uma intimidade perdida (Joron, 2006a, pp. 122-134) que só a experiência do extremo pode ainda recordar através da consumação erótica, estática, poética, comunicacional: encontrar-se pela indistinção e a fusão, o esquecimento e o não-sentido; encontrar sua perda na aceitação da parte maldita; comungar, enfim, com os outros na irresponsabilidade e na inocência culpável. No silêncio que as palavras inauguram por sua presença laboriosa, Georges Bataille penetra, depois de Friedrich Nietzsche, na hipocrisia de um mundo que se esconde e se evita. A crítica elaborada por Bataille porta, essencialmente, a indulgência, a indulgência exagerada que evoca a sociedade burguesa diante de suas próprias fraquezas, de suas conformidades não menos desenvoltas, sob o manto de um moralismo restritivo: um moralismo que, além de suas funções puramente utilitárias e, certamente, necessárias, ao lado da eligibilidade contratual e ética de sua propensão à ordem, estimula a transgressão (ultrapassando os limites), a negação pura ou mediana de práticas comumente admitidas. (…)” (JORON, 2008: 22)

[2] Gostaria de explanar um pouco sobre um tópico que eu chamaria de “sobreartificialidade” n(d)esta face do autor. A face pó de arroz de Serguilha dá-se precisamente por ordem de não estar ele a imitar a natureza ou a cultura, não mimetizar nenhuma linguagem, estilo, referência, beleza, que se fascine com qualquer ordem prévia. Pois não se embeleza a feiura, a feitura, com pó de arroz. Como dizia Baudelaire, referência máxima de Cesário Verde, o artifício da maquiagem não pode suplantar a natureza. O que o pó de arroz faz, modernamente, é artificializar o natural. Já Serguilha, em tempos pós-modernos, tecendo a artificialidade, com poesia escandalizadora, luxúria poética sobre a própria artificialidade do pensamento, produz uma sobrenaturalidade que não deixa de ser ao mesmo tempo uma “sobreartificialidade”. É que ele artificializa o já artificial, para mim. Ao invés de buscar uma poesia econômica ou o próprio silêncio, o autor resolve implodir uma torre de pó de arroz, resolve sentir-se nietzschianamente superior pela arrogância da palavra sobre a palavra. Eleva-se, portanto, acima da própria artificialidade linguística que fazia desaparecer o real, o natural. Cria, sozinho, egoísta, uma torre de pó de arroz que muitos críticos poderiam destruir com um simples sopro… A coragem transgressiva em produzir uma sobreartificialidade que pode ser desmontada pela simples afirmativa “isto não é belo, é uma arrogância”. O rosto maquiado é divino, superior, ocupa o lugar de Deus porque se aproxima da arrogância da estátua (diria Baudelaire). Logo, empastar de pó de arroz – de imagens pulverulentas – o próprio rosto já sublimemente mascarado de maquiagem, significa sobredivinizar a linguagem em direção ao Fora da estética, da pele, da imagem poética. Plumagens majestosas arrogantes que podem ser dessacralizadas pela crítica, pelo leitor comum, ou, ao menos, não receber nenhuma atenção. Ou um ou outro. A fragilidade imperfeita da natureza é, então, realçada por outro lado na distancia noturna, posto que seu empastamento de iluminações alucinantes fazem o rosto-estátua (rosto maquiado) não ter mais nenhum rosto. Assim, não temos mais nenhum autor e nenhum leitor em Kalahari. A palavra ultramaquiada torna-se uma sobrenaturalidade sobreartificial. Poesia como indumentária selvagem, empastamento do pó de arroz. A busca da sedução é exagerada pela LOBA/Serguilha.

[3] Divago aqui, lembrando de “O moinho” de Eça – conto que prefigura “O Primo Basílio” – em certa cena, Adrião beija arrogantemente Maria da Piedade, achando-a rústica, considerando absurdo o fato de poder tocar os seus lábios numa face onde não havia pó de arroz. É como se não houvesse rosto, é uma decepção. O pó de arroz é, em muitos momentos da literatura portuguesa, um elemento sublimado do moderno, assim como a artificialidade é o requerimento do belo. Nesta passagem, interpreto apenas um exemplo do absurdo baudelairiano que seria estabelecer o sentimento ocidental sem a simbologia da maquilagem. Pois a maquilagem não exatamente mascara o rosto, o real, o natural, o mundo, quero vê-la no momento em que ela dá lugar ao sentimento que proporciona o rosto, o semblante. Toda natureza é efeito sublime da artificialidade linguística, isto é o que leio em Kalahari. Agora, em uma sociedade transestética, de virtualização extrema, o sentimento ocidental aparece e desaparece neste Serguilha beijando e divinizando o pó de arroz que ainda reside na artificialidade do belo, impressionando a pós-modernidade tal como antes impressionara a modernidade.

[4] Tradução de Edmond Jabès coordenada por Prof. Dr. Eclair Antonio Almeida Filho.

[5] Interessante fixar atenção na palavra “Kalahari” – nome do imenso deserto africano – advindo do termo “Kgalagadi” (a grande sede) e, dentro deste nome próprio notar que, conscientemente ou não seja a escolha deste título para seu livro, está oculta a palavra “lahar”, em: Ka “lahar” i (grifo meu). Imediatamente isto me chama atenção para a estética que Serguilha batizou para si: laharismo. No texto “ESTÉTICA do LAHARISMO”, onde o poeta define o seu “olhar-sismológico” poético, ou melhor, as suas “(…) circulações contrárias que se interseccionam na tentativa de um deserto que acontece prosopoeticamente (as vozes refazem-se sem dizerem-exporem) (…)” (p.14), vemos que para Serguilha: “(…) A tentativa esquizóide da escrita-poética é uma vizinhança CANINA-equestre inclinada na pedosfera a desvendar/dilacerar ecoativamente os chifres das pirâmides, os nódulos geodésicos, as ventas dos voyeurs, os pólipos falciformes da tradição incomensurável, as lavas pulverizadas do porvir, a morfologia da visão ascensional das curvas ilimitadas da transtemporalidade que atinge todas as extravasações de todas as partes pelo avesso gravítico onde o pensamento-repulsivo e em traição-uivante para viver velozmente/deformante sem dependência das gengivas do poder, absorve as carcaças das espias, acende-se com os jugos das espécies climáticas que deflagram nas visões implacáveis do corpo ferroeléctrico e as placas dos vermes com núcleos de condensação dançam no sangue vexante da palavra, acrescentando mitologias anémicas, ácido sulfúrico, dióxido de enxofre e anzóis-despovoados aos ventres metálicos movidos pelas transformações agrilhoadas das vaginas-transitórias da criosfera (esconjuro umbilical desdobra-se entre as súmulas das trepadeiras infusas e as transladações incompletas que co-enunciam as vulvas-em-hélice porque continuam a remover os pénis segadores da musicata-oral e a distribuição geográfica do texto anestesia o leitor-das-escarpas com o cobre dos tumores de todos os olhares apavorados): as bocas desfazem-se ao recuperarem os desastres dos cânticos para trespassarem as ocupações encardidas das mães com tremendas ablações porque rebentaram paralisadas e agarradas às unhas fúnebres dos amantes hidrológicos_________ flechas multiangulares de obsidiana gotejam cruelmente nas monocromias de Rothko______a escrita de guelras-giratórias cravada no dinamite inesgotável dos náufragos-leitores( transposição e reconfiguração do mundo): a ESCRITA nos imanes dos arados abstractos: serão cascos em cavalgada na solidão-da-peste-sob-a-perceptibilidade? As adrelaninas dos pigmentos minerais, os gestos do lançador de discos e os enxofres dos traços da escrita faiscam nas desfocagens dos hipocampos, nas ciências dos requiens imaginários, em tudo que não espera para alcançarem a voz inacabada da sombra das populações das línguas extintas entre os frisos do Partenon e os mosaicos bizantinos que traçam a arte insular das expressões da mecânica celeste( cítricos da resistência a rendilharem os nevoeiros das sanguessugas estéticas: foices opalescentes da palavra hierárquica rolam nos úteros das cantarias incicatrizáveis: precisão do recurso da cognição interestelar): fendas anósmicas a perambularem nos ovos biosonares in-corporais e as cerâmicas laqueadas neutralizam o contágio dos incensários parasitários para embalarem o sangue das serpentes nas varandas ovais: (rupturas dos diques biofísicos sugam os textos-arqueológicos doadores de outras sedimentologias desordenadas sobre a fisiologia do verso e a voz sacralizadora das dubiedades rasura-se na escrita irrefreável-desviante do corpo, torna-se a escuta elíptica da memória nos intervalos da fantasmagoria da cratera Daedalus onde encontramos o Lorde-oito-veados-garra-de-onça embrulhado numa túnica de tecido INCA) ________________contrair acontecimentos prismáticos e versículos hidrópicos REPLETOS de putas-ressequidas perpendiculares ao equinócio do poeta do hemisfério norte e as reduções das sobrenadas, as estrangulações umbilicais do texto de massificações uterinas dominam a mimese aristotélica através dos instrumentistas ilocalizáveis nas seus próprios antípodas que infinitizam e arquitectam os reencadeamentos dos lances das descobertas genéticas: será o prolongamento da viagem impalpável dos complexos informáticos entre as difonias anónimas e as escalas moleculares? Serão as zonas deslizantes das forqueaduras nebulosas a devorarem os cadáveres das invaginações giratórias sob as fronteiras da astrometria que se dissolvem aforisticamente no carvão do poema? (abduções AUTISTAS a deslocarem as metamorfoses da eclíptica nos núcleos míticos da realidade) / As válvulas das acidentalidades da rotação da terra, acumulam-se nas veemências dos hiatos épicos e a constelação ciclópica do corpo fica debruçada nos algoritmos da fala cortadora de fogos para exigir outras encurvas enfeitiçadas e incognoscíveis que perscrutam e pulverizam os sons panegíricos de estarmos perto( os olhos flectem-se na experiência abismal, nas cosmografias e atingem o ilogismo das perspectivas na fantasmagoria absoluta da linguagem____as vidraças ressurgem com a carnavalização dos insectos incuráveis): distanciamentos da visão a cartografarem as quebraturas do absurdo topológico indivisível no ponto de libra do equinócio de outono___sim____o hemisfério norte de estarmos perto recoloca-nos na filosofia do espírito hegeliano: capturas dos pontos vernais, absorvências das longitudes, desbordamentos de diagramas-em-paralaxe, deligações atómicas, reticências da techne, intersecções do espanto, descentram o invisível-indizível das escrituras dos gregos antigos: as escrituras inóspitas autofagiam-se para acontecerem como escrituras da teatralização entre trilhas singularizadas que se exsolvem na renascença das violadoras de abismos extrasolares): o transe está por perto porque a voz-daimon surge doutra voz de velocidades radiais perante a reaparição das mudanças dos remorsos da esfinge-dos-astrolábios: a inscrição deglute-se a si própria dentro das trompas da inseparabilidade espacial e as agulhas do sangue-meteoróide escorrem dessacralizadas para encarnarem na entropia-criativa da palavra que rastreia corpos catastróficos(desaguar nos umbrais e resvalar nos esquifes fantasmagóricos das entradas atmosféricas_________a palavra é em si uma penumbra de vísceras sedutoras que se infinitizam nas rotas lacunares e se tensionam nos dédalos-médiuns: palavra abocada nas esporas das auscultações, nos recolhimentos das queimaduras, nos desassossegos suspensos, nas devastações adoradoras de unicórnios, nos transes preciosíssimos dos vestígios, nos sextantes dos arroubamentos que eclodem nos répteis tresloucados sob paralaxes estelares e os olhos-do-leitor-de-ângulos-heliocêntricos buscam os desvios inacessíveis das fábulas para precisarem as constelações dos anatomistas dos calendários-nakshatras; o corpo do leitor-alexandrino se transforma numa usina-nómada-voyant sobre o texto-ensurdecido e construído pelos jogos das intermitências feiticeiras, pela experiência das vozes nos cruzamentos da lama esférica e das indiscerníveis-fronteiras / ( sedimento fascinante dos gestos alquímicos_______o sangue violento da incerteza inscrita nos círculos da deserção): um cavalo mudo a salvar-se no resgate do ócio historicamente mimético, nas soldagens geológicas que aferrolham alimárias soníferas e ofícios rastejantes das ciências entre plataformas apinhadas de clarabóias e os observatórios de Maragheg: tudo rodopia, balbucia nos avelórios das artes que eclodem no desregramento da heteronímia com espectros eletromagnéticos: os acicates dos insectos desistem dos discos circunstrelares para recidivarem insistentemente nas bainhas barrocas das ondas gravitacionais e os alumínios sonoros dos enforcados na despossessão, marcam as interferências fonemáticas para ilustrarem a consistência vítrea das mitologias re-inventadas entre os instantes inequívocos das sanhas de choque e as translações de forças medidoras de vazantes-textuais_________ as tatuagens dos textos das utopias históricas voluteiam-se nos tubos dos mercúrios axiológicos, nos agulheiros primordiais das radiações infravermelhas e linfaticamente galopam eliminadas nas misturas violentas das cegueiras entre detectores-de-ervas-dedais( fissuras magnéticas prolongam os acenos dos hemistíquios, as fisionomias do poeta com raio-X sugados pela atmosfera terrestre e as veias dos paradoxos possessivos transformam-se nos murmúrios / indecifráveis dos poemas da fluidificação dos fósseis obscuramente vazados pelas esponjas das cobras-quase-mutiladas entre zonas convectivas ): as focinheiras dos mergulhadores de ulcerações a escorarem as fracturas das anamarfoses porque duas arqueiras ressuscitaram nos eixos podres dos golfos das antecedências com vestígios do banquete-de-Platão_____a flecha-Diotima povoa-se no próprio fuzilamento fetichista-uranográfica (as vozes retraçam os predicados das vertigens do posicionamento planetário onde o pensamento derivado das geografias dos céus se desmancha sem alvejar a regeneração topológica da matéria escura e tudo se disseminará até reconfigurarem as interrupções das promessas das transições fotosféricas: regressar à imprecisão da língua sem mapas, à passagem incomensurável doutra língua condenada à imobilização dos cartógrafos e a intercadência articular-se-á às cascas da instabilidade dos campos magnéticos________traço dinâmico a demolir-se sem datas nas falhas dos astrónomos: as sensações carregam os labirintos do estrangeiro aparentemente atingível pelas naturezas das nevroses-estéticas e as cronologias interrompem-se nos despenhadeiros-em-rotação porque a manifestação estrófica-silábica intensifica a região equatorial na evidência do corpo arqueológico ): o levantamento do repouso da mutação expulsa o triângulo incandescente dum mundo intraduzível e os vizinhos das arraiadas polares ficam paralizados-sufocados entre os leques policromáticos do poema e as radiações de Van Allen: eis os desvios das escamações descomunais a reverberarem nos ranhos das hélices-por-descobrir(ou não descobrir, nem disfarçar, mas desmantelar, desorientar as caudas cometárias: as rótulas dos limites deflectem-se até às sub-partículas transportadas pelos átomos ionizados das reações termonucleares do leitor que tenta levar o poema ao risco geomagético dos corvos, à perturbação do deslize das polaridades, ao estilhaço dos mapeamentos, à entrada abismal das segmentações musicais, à errância rítmica, à imanência cinematográfica, à emancipação das conexões periféricas, à não pertença orbícola, ao acolhimento dos sarcasmos espaciais: atentem, as lacunas do animal-poema em movimentos metamórficos-aterradores, tentando transladar os ecos florestais-desérticos-oceânicos sobre o declínio arquitectónico da hodiernidade estética e as óbitas do leitor confunde-se no atraimento do poema reflectido no vazio hermafrodita que é ruptura de esferas radiantes a seduzir os espinhos dos contrastes da simultaneidade onde tudo sucumbe ): uma experiência de carvoeiros sinfónicos a traçar o sublime das várias naturezas alpinistas, das várias escavações límbicas para inaugurar o movimento inconcluso do acidente ástrico que é espelho de ancoradouros galopantes, capturando as guilhotinas ordenhadoras das desescritas (esguelhadas variações de uma aurifícia imperceptível: tudo é arrancado na culminação da solércia inabordável, tudo se fixa nos cavalos dos signos hibernados na indeterminação das visões transversais( hipofaringes a latejarem na coruscação dos oradores de solstícios)(os pássaros regamboleiam nas bagas loucas, condensando as engatadeiras das raianas e as carunhas dos reflexos mais baixos da atmosfera seguem obscuras nas bandarilhas dos fantasmas-FUNGI que desventram o enxofre das trajectórias das cascalheiras________este texto incessante-vibracional que ofusca, flutua na insonolência carnívora, nas esporas capinadoras de vultos com pontos antipodais e o leitor recurvado sobre os batentes dos fósseis cambiantes, está retoricamente insaciado, in-temporalizado, misturando-se nas idades maiores dos cactos colunares dos palimpsestos: uma alegoria de invasões anatómicas mimeografada de sismicidades férreas): no fundo, os pássaros partilham minúsculos golfos infindáveis no espanto da palavra-em-trilha-inacabada e na fogosidade sazonada pelos ourives-leitores em transe rotativo que se entregam aos pulmões-autotróficos dos voos / inconclusos: os voos se entrecruzam, se expandem, se encolhem sonambulamente nos mergulhadores primitivos do pensamento entre as antecedências das morfologias anómalas, catapultando diuturnamente desertos de fluxos reversos, cartografias matriciais, cegueiras em ciranda) (espontaneidade ruderal a circular nas mutações dos corpos dos leitores-infiguráveis-abstractos: eis, os gritos antiquíssimos, lávicos, vulcânicos que convergem concomitantemente para as mensurações dos leitos das crateras: ludicidade a regressar à tontura interrogadora das estrelas mais próximas das cargas poéticas acopladas às erupções das lentes biológicas)________perseguidores dilacerantes de fungos urbanos que narcotizam golpes-trapezistas e menstruações poligonais das des-leituras: as polpas sígnicas recomeçam no calabouço dinâmico dos chacais onde os diluvianos-semas se proliferam mantricamente até às machas da antevisão e as vértebras dos tentadores de textos poéticos são pontilhadas poliedricamente rastejando nas fornalhas minerológicas, morfológicas e petrográficas porque serão sempre remanescências fossilizadas, coprólitos_____sim: fundagens dessecadas na virulência do poema: sobejam, os estendais contagiantes das tubuladuras e das ruínas pré-babélicas dos leitores com doenças carnívoras(cránio-hibernal na mandala das cadeias alimentares da plagiotropia): a ossamenta do texto incandesce-se nos batedouros da desaparição feita de contrastes e de conflitos críticos: coreografias dos encalços das hordas das tradições ou serão as ressonâncias das fissuras do bilinguismo a estrangularem as febres sibilantes dos OLHOS-baleeiros dos leitores? Ou, a ab-rogação da sonoridade submarina na voz humana-animalizante onde a experiência do silêncio, da inexistência, abre-se à ECDISE parasitária do poema( tudo se abandona profanamente, tudo acontece antes de recomeçar: eis a incisura em transfiguração do inacabamento, a força invisível da tentativa da escrita dos helmintos, a sabedoria da precariedade ?) (SERGUILHA, ESTÉTICA  do  LAHARISMO, S/d, p. 3 – Texto concedido diretamente pelo autor)

[6] “(…) Outro elemento de análise estrutural é o uso das maiúsculas sem que haja qualquer pontuação, a não ser a distribuição espacial do texto onde não parece verificar-se nenhuma regra ou motivo, a não ser um sentido intuitivo do ritmo da leitura e da respiração.Vem isto a propósito do mar de palavras que é a poesia do Luís Serguilha. Mar de palavras, imagens, metáforas, intermináveis e diferentemente sempre iguais, podendo os poemas começar e terminar em qualquer delas, em qualquer lugar ou tempo.(…)” (MELO E CASTRO, 2011, p.1).

[7] “Holomovimento” é uma terminologia que o próprio Seguilha importa da nova física quântica, formulada pelo professor David Joseph Bohm, e que, em síntese, dispõe a teoria de que tudo (o real invisível) está em fluxo constante.

[8] Pablo Neruda, poeta, como sabemos aliás, apaixonado pelo mar.

[9]Disponível em: http://luisserguilha.com.br/2014/10/12/ensaio-de-candido-rolim/ Acesso em: 01/01/2015

[10] Disponível em http://luisserguilha.com.br/2014/10/12/ensaio-de-e-m-de-melo-e-castro/ Acesso em: 01/01/2015.

[11] Tradução de Edmond Jabès por Mário Laranjeira. Disponível em: http://www.culturapara.art.br/opoema/edmondjabes/edmondjabes.html. Acesso em: 02/ 01/ 2015.

[12] Há um pacto de invisibilidade, na camuflagem musical daquilo que se quereria falar. Ou, como diria Marcelo Moraes Caetano, Serguilha é um poeta musical e que, assim sendo, não se deixa vislumbrar por frestas. [1] Disponível em:  http://luisserguilha.com.br/2014/10/12/artigo-da-revista-zunai-2/ Acesso em: 02/01/2015


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