A Velha e Escura Arca – Um Conto de Pedro Pimenta

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Pedro Pimenta nasceu a 20 de Julho de 1994. Desde que se conhece, sente que a sua curiosidade sempre o transportou para a análise do passado histórico e do comportamento humano. É Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Colabora irregularmente escrevendo crónicas para periódicos de dimensão regional e nacional. É sócio efectivo nº5771 da Sociedade Histórica da Independência de Portugal. Fez algumas exposições fotográficas. Publicou, em 2017, e em conjunto com outros fotógrafos, o livro institucional Meio do Caminho. Actualmente vive em Lisboa, mas reconhece que é o ambiente campestre e florestal que mais o fascina.


Francisco, o neto mais novo do Sr. Duarte e o que fazia mais tropelias, encontrava-se dentro do sótão da casa de férias do seu avô preparando-se para pregar mais uma das suas partidas. Desta vez, o alvo era o seu irmão mais velho, Afonso. A travessura que engendrava era uma resposta ao que este tinha feito. Ao que parece, tinha contado à sua mãe a realização de uma festa que se tinha passado no fim de semana anterior. De entre muitos acontecimentos, Francisco tinha partido uma jarra. Uma jarra valiosíssima porque tinha sido uma prenda de casamento. E, por isso, a mãe coloco-o de castigo. Durante o resto do verão não podia sair de casa.

            A vingança era uma realidade. O plano já estava delineado; havia uma janela nessa divisão que oferecia uma perspectiva privilegiada sobre quem entrava e saía de casa. Era nesse espaço que o jovem pensava em atirar um balão de azeite misturado com cebola e alhos podres.

            No momento em que se preparava para fazer asneira da grossa, houve um objecto que o distraiu. Era uma arca. Não tinha visto uma tão bela como a que se encontrava escondida por detrás das cortinas de uma das janelas do sótão.

            A arca era escura, de madeira quase negra e trabalhada de forma sublime. Haviam baixos relevos esculpidos e parecia ter pelo menos dois séculos de antiguidade. Francisco não sabia quem eram os personagens que figuravam esculpidos na mesma. A única coisa que sabia é que eram belos. E que, muito possivelmente, tinham um significado escondido. O Sr. Duarte era assim; gostava que – como tudo na sua longa vida – os objectos guardassem algo que encerrassem alguma lição ou alguma mensagem subliminar.

            Francisco, após deter-se alguns minutos a apreciar a bela arca, decide abri-la. O que salta à primeira vista são um monte de papeis. Estes eram, quase na sua totalidade, cartas. Estas epístolas eram muito velhas e tinham, muitas delas, quase cinquenta anos. Foram essas que o jovem rapaz leu primeiro.

            A grande maioria eram dedicadas a uma mulher chamada Leonor. Muitos desses textos eram pequenas anotações que descreviam os sítios por onde o Sr. Duarte tinha viajado. Anotações que vinham acompanhadas com um postal do lugar. Outros textos eram declarações sentimentais.

            Francisco não conhecia ninguém que fosse próximo à sua família e se chamasse Leonor. Foi nesse momento que percebeu que poderia estar diante das memórias do primeiro amor do seu avô.

            Sem perder mais tempo, o jovem retira uma das cartas e fecha a arca colocando-a exactamente na posição em que estava. Com calma, desce as escadas que ligam o sótão à sala. Era nesta última divisão que se encontrava o seu avô sentado numa cadeira e enrolado com uma grande manta negra que o cobria dos ombros às pernas. Parecia estar a contemplar o movimento das árvores provocado pelo vento suave. Também se ouvia uma mescla de sons: o chilrear dos pássaros e, ao longe, o rebanho das ovelhas que se deslocavam de um lugar para o outro na propriedade vizinha.

            Era com este ambiente campestre e pacífico que Francisco se aproximava.

            – Que estás a fazer avô? – perguntava Francisco com o objectivo de criar um momento oportuno para falar da carta que tinha encontrado.

            – Estou a olhar para o mundo. O pouco que tenho neste momento. Ao olha-lo penso na vida que vivi e que hoje se encontra no passado. Sabes, rapaz… tenho saudades do que era. Tenho saudades do que fui. – respondia o avô em tom melancólico.

            Francisco ficou em silêncio durante uns breves segundos. Ele não queria incomodar o avô, muito menos quando estava tão distante e não entendia o que ele queria dizer. Mas a curiosidade de saber o destinatário das cartas era maior que a sua reverência ao momento.

            – Avô, lamento o incómodo, não quero que te chateies comigo… mas quero contar-te uma coisa. Hoje estive no sótão e encontrei uma arca… – apreensivo pela linguagem corporal do avô, gaguejava um pouco. Porém, continuava – dentro da mesma, encontrei muitos papeis. A maior parte  eram cartas e eu estive a ler algumas… não quero que te aborreças, mas trouxe uma comigo… tenho-a aqui e gostaria que me pudesses explicar quem era esta senhora chamada Leonor.

            Por um breve momento, o Sr. Duarte fixou com o seu olhar uma árvore que estava no seu jardim. Esta teria sido plantada pela então jovem Leonor. Era por isso que o avô de Francisco acordava todas as manhãs muito cedo. Acordava para tratar desses vestígios que tinham ficado. Era também esse o motivo pelo qual ficava muitas vezes até às cinco horas da tarde sentado a contempla-la. Não estava apenas a ver o movimento dos aldeões e a execução das suas actividades diárias. Estava viver o passado e o presente ao mesmo tempo.

            – Sabes, Francisco… a memória é a maior das cicatrizes. Essas cartas que encontraste pertencem ao tempo. Pertencem a uma vida que deixou de existir. Uma vida que era resultado de duas. – e concluía – hoje sou o fumo dessa clareira.

            Francisco não tinha percebido bem aquelas palavras enigmáticas. Porém, entendeu que essa mulher tinha sido alguém que transformara por completo a vida do seu avô. Disso ele não tinha dúvidas. Aquele momento foi decisivo para perceber quem era de facto Leonor. Ele nunca tinha falado com tanta ternura e mistério, nem mesmo dos seus pais.

            É possível que essa mulher tenha sido o regaço que lhe faltou toda a sua vida. Regaço esse que não encontrou em mais lado algum. Hoje o Sr. Duarte era visivelmente mais velho, mas aquela conversa curta e serena comprovaram que ainda condensava em si um pouco da inocência que todas as crianças possuem. Era possível ver, naquele instante, que nunca a tinha perdido.

            Leonor já não existia na vida do Sr. Duarte. Possivelmente por um erro cometido por este último. Ele não falava mais do que aquilo e via-se que não acrescentaria mais nada. Por maior que tenha sido a sua falha, era visível que ele não a tinha esquecido.

            Foi aqui que Francisco começou a entender um pouco sobre a vida. Por mais que o tempo corra – pensava – irão existir marcas que nunca as deixarão de ser. Marcas que são pistas que nos podem ajudar a encontrar o nosso caminho. O amor é uma dessas marcas: o início é insondável, não sabemos para onde nos leva, mas é no desenrolar dessa viagem que compreendemos se a meta nos tornará pessoas melhores.

            Naquela tarde não se disse mais nenhuma palavra. Não se trocaram mais gestos. Estavam em paz. O avô de Francisco tinha voltado para um lugar onde sempre foi seguro. O jovem apreciava o silêncio dele e isso era suficiente.

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