.A Última Sessão – um Conto de Marcelino Freire

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Marcelino Freire (PE) nasceu em 1967, em Sertânia, PE.Viveu no Recife e, desde 1991,reside em São Paulo. É autor, entre outros, dos livros “Angu de Sangue”(Ateliê Editorial) e “Contos Negreiros”(Editora Record – Prêmio Jabui 2006). Em 2004, idealizou e organizou a antologia “Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século” (Ateliê). Criou a Balada Literária, evento que, desde 2006, acontece no bairro paulistano da Vila Madalena. É um dos integrantes do coleivo EDITH, pelo qual lançou,em 2011, o livro de contos “AmarÉ Crime”. Prepara para este ano o lançamento de seu primeiro romance “Só o Pó”, a ser publicado pela Editora Record.


Cadê Zélia Suave?

O Velho não sabe, mas a igreja comprou o cinema pornô.

E ele nem nota que entrou na casa errada.

Onde anda minha poltrona?

Está esclerosado, debilitado. Nem vê a iluminação da sala. Atirando luz

celeste em todo mundo. O Velho acostumado que estava à penumbra.

O travesti Zélia Suave.

O meninote do mercado.

Os fungos fungando.

Passou mais de um ano hospitalizado. Depois da queda, quase morre não morre. O senhor tem família?

Minha irmã Quitéria.

Nem sabe que a Quitéria é falecida. Até sabe. Mas não aceita. Esquece,

fundo, nos esconderijos do peito. Tem medo da verdade.

Pergunta: aqui não é o Cine Palácio?

O jovem crente abre os dentes: expulsamos o pecado.

Insiste: e Zélia Suave?

Quem?

A sua melhor amiga. Um dia, Zélia convidou o Velho para um almoço caprichado. Frango, quiabo, café.

E contou tanta desgraça.

Sabe, rapaz, sinto saudade.

Dos filhos?

Não, que não teve. Nem mulher, nem sobrinhos. Sozinhos na vida, apenas ele e Quitéria.

Juntavam moedas.

A merda de aposentadoria não deu para luxos. E olha que economizaram: não saíam, não esbanjavam chocolates. Não conheceram a Praia Grande.

De vez em quando, iam ao centro da cidade.

Eram tão irmãos.

Quitéria foi ficando uma nuvem. Perdendo o juízo pequeno. O Velho procurou para ela tratamento. Soube que havia no bairro uma casa de repouso. Limpinha. Para deixar limpinha a irmã de coração.

Querida, o dinheiro não dá para internar nós dois.

Soprou na orelha da irmã, pela manhã: irá você sozinha, pelo menos. Morrer dignamente.

Meu amor, você merece esse presente, em paz.

Lágrima.

Lágrima em rosto de velho é chuva. Sai enchendo rios secos. Profundos deslizamentos.

E o senhor, onde foi morar?

Vendemos a casinha. Quitéria, sempre cheirosa, esperava minha visita aos domingos.

Eu procurei uma pensão.

Tão vagabunda.

Tentei dividir um quarto com um amigo aposentado. Era um aposentado mesquinho. E o Velho não gostava de gente que segura os ossos só para si.

Foi quando veio a ideia.

Estapafúrdia.

Morar dentro de três cinemas.

Saía revezando: Cine Palácio, Apolo, Cine Alvorada. Os três abertos 24 horas. Lá o Velho dormia, bocejava. Molhava-se. Não ligava se o mundo à sua volta queimava, se se incendiava: melhor assim. Esse escuro mágico.

Foi onde conheceu Zélia Suave.

E demais telespectadores.

Dizer que ninguém notava: notava. O Velho já dava bom-dia ao bilheteiro. Trazia balas ao faxineiro. Ajudava a recolher camisinhas furadas.

Quando cansava a retina, andava à praça. Ia comer churrasquinho. Abusava das gorduras.

Por isso o ataque: as gorduras engordaram as coronárias. Caiu à rua, foi socorrido, parou no posto público de saúde.

Perdeu quilos. Amanheceu caduco. Lento e febril. Deram-lhe alta. Para onde o senhor vai? Primeiro, visitarei minha irmã. Pegou o ônibus e se perdeu. Procurou o número do telefone. Um oco. Era o bolso um calabouço.

Sabemos, pois, que a irmã Quitéria morreu por aqueles dias. Ela que esperou vários domingos o irmão chegar. E sentiu: ele deve ter morrido. É isto. É. Bateu depressão, queda de pressão, vômitos na velha mulher. E Deus chamou. E Deus fez esse favor.

O Velho perambulou.

Suou.

Foi e não foi. Perdido, sem saber a direção. Conseguiu, finalmente, por um milagre, chegar ao cinema.

Cadê Zélia Suave?

Zélia Suave?

O jovem crente não entendeu nada. Quis chamar o pastor. Esse senhor precisa de cuidados. O casaco marrom fedia a casaco marrom. O Velho fedia a velho demais. Tudo nele a carpete mijado. O Velho está no fim. Um buraco.

Hã?

O travesti fez suco para mim.

Zélia não tinha pai. E viu no Velho uma família. Igual a que não teve. Nordestina. Recorda-se quando chegou perto do Velho, ali, na última fila do cinema. Um olho do Velho dormia, o outro acordava. Não assediou. Nem atacou o velho morador. Devagar, puxou conversa. Entre um programa e outro, era trocando algumas palavras sinceras com o Velho que Zélia descansava.

Ambos, entre eles, descansavam.

Só, na tela, é que os músculos não cessavam sua jornada. Repetidas vezes as mesmas cenas. Chupadas xoxotas. Grossas varas. Murmúrios, até, inocentes. Aqueles, de tanta gente que ia ao cinema. Na surdina, para fugir do mundo. Cada vez mais veloz. O mundo, o mundo. 

Por que gritam tanto por aqui?

Perguntou o Velho ao jovem da igreja. Lotada. Os fiéis aos berros. Cara a cara. Pedindo perdão. Alcançando graças. Escancaradas louvações.

Eu vou é embora.

Mas não ia.

Não tinha mais forças para se erguer dali. Se pudesse, correria. Aquele não era o seu lugar.

O senhor quer uma água?

Não tenho sede. Deixe estar, deixe estar.

O Velho foi fechando os olhos para morrer.

Tinha fé.

Com a ajuda de Deus, pode crer, outro filme logo logo iria começar.

1 comentário em “.A Última Sessão – um Conto de Marcelino Freire”

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