Sanatório – um Conto de Daniel Ferreira

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Daniel Ferreira (PI) é contista. Autor de Sob a Sombra da Noite (2005). Gosta de cerveja e Radiohead.


Ontem Jonas perdeu seu acento circunflexo. Ri muito quando ele me disse isso. Ele não gostou da minha reação.

“Rindo de um idoso? Imagine o que vai ser sem o meu circunflexo.”

Jonas é um dos pacientes mais tranqüilos do Sanatório Santa Maria, e não é idoso coisa nenhuma. Deve ter pouco mais que 40 anos de idade. Era professor de português. Teve um colapso nervoso e nunca mais foi o mesmo. Ainda buscam-se as razões de sua doença. A família tentou ajudá-lo, mas o professor não aceitou as “prolixidades formais que seu novo estado impunha à convivência familiar”. Fosse apenas isso não teria que ser internado, mas a doença veio com uma fixação por fogos de artifício que punha em risco sua esposa e filhos. Disseram-me que ele tem filhos, mas apenas a esposa vem visitá-lo.

“Seu Jonas, por que essa idéia com os fogos?”

“As letras coloridas. Quer que eu te mostre?”

Faz apenas dois meses que o professor está internado por aqui. Muitas vezes as pessoas que o vêem não entendem por que o Dr. Pessoa não lhe dá alta.

“Não posso fazer isso, ele ainda é um risco para ele e para as pessoas próximas.”

“Mas se ele é um risco, por que o senhor deixa ele circular pelo hospital como se fosse uma pessoa normal?”

“Porque o isolamento só iria fazer crescer idéias ruins. Acredito que ele vá superar logo esse estado.”

Custo a acreditar nas palavras do Dr. Pessoa, Jonas é uma pessoa inofensiva. Até mesmo a questão dos fogos de artifícios é coisa de menos importância. Penso assim porque é algo que se pode evitar. Afinal, ninguém tem o costume de manter fogos de artifício guardados em casa.

“Seu Jonas, o que significa prolixidade?”

“Muitos porquês em um único dia e olhos te perseguindo o dia inteiro.”

Além dos fogos de artifício, Jonas tem outra mania que causa estranheza.

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“Martina, o batom vermelho cai muito bem em mim. Não acha?”

Martina é a esposa de Jonas.

“Não, Jonas. Eu não acho.”

Discordo de Matina. Em minha opinião de mulher, há algo de encantador nos lábios pintados do professor. Também gosto como ele olha para mim, ressaltando algum carinho paterno e algum interesse masculino. Ele também diz que eu tenho “olhos de ressaca”. A propósito, meu nome é Rita.

Hoje pela manhã, Jonas apareceu novamente perguntando pelo seu acento circunflexo. Pareceu muito preocupado.

“Rita, será que alguém pegou o meu acento? Fico meio perdido sem ele. Percebi outro dia que o Dr. Pessoa não aprova meu acento circunflexo. Suspeito que seja inveja. Que tenho um desvio moral, isso eu aceito, mas o que ele tem a ver com o meu acento?”

“Professor, por acaso o senhor perdeu o seu chapéu?”

“Que chapéu? Eu não tenho chapéu.”

“Tudo bem. E o que é então esse circunflexo que o senhor tanto procura?”

Não me respondeu. Apenas saiu resmungando alguma coisa que não entendi. Voltou logo.

“Quando eu vou poder ver o Dr. Pessoa?”

“Que bom que o senhor perguntou, professor. Porque hoje mesmo o senhor tem consulta com o Dr. Pessoa.”

Novamente saiu resmungando sem me dizer palavra.

Rita tem 24 anos de idade. Mulher bonita. Não parece em nada com Capitu. Pois, que engano. Meu, é claro, porque cada um tem a sua Capitu.

Enigma não exposto e válido, reconheça-se, era Jonas. Quem o via não via nada. Ou, antes, via qualquer face possível e plausível ao próprio espírito. Porque é assim que teimamos em fazer: medir o outro ao que bem nos cabe.

Eu mesmo não consigo identificar o que se passa nas entranhas de Jonas. Sei bem que o que ele julga ter perdido (seu circunflexo) não é coisa que se ponha à vista ou se tenha ao tato.

Esse circunflexo de Jonas, quem o identificou melhor foi o Dr. Pessoa. O percuciente médico soube procurar no lugar certo. Ao procurar nas esferas da alma, ele achou algo relacionado à natureza do nosso querido professor. Chamou de “insanidade moral”, mesmo sabendo que esse é um estado que se difere da doença mental propriamente dita.

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Por outro lado, intrigava o Dr. Pessoa o fato de Jonas nunca ter externado nenhum comportamento que confirmasse o que o médico identificava no paciente. Melhor assim, é claro. E era por isso que Jonas era mantido no sanatório e submetido a um tratamento que, para desagrado do paciente, visava justamente eliminar o tal acento.

Ora, só nos dói e faz falta a perda daquilo que de alguma forma nos agrada. Um burro não reclama quando lhe tiram a carga das costas. Nenhum doente lamenta quando o câncer lhe é extraído do corpo. Jonas lamentava.

“Na primeira oportunidade, enfio uma caneta no olho daquele médico invejoso (grandessíssimofilhodaputa).” Era esse o plano de Jonas para recuperar seu circunflexo.

Chegada a hora da consulta, Jonas foi conduzido por Rita até o consultório. Ele tinha nos lábios um sorriso calmo pintado pelo vermelho claro do seu batom habitual. Era como parecia aos olhos de Rita, um homem dócil com algo de fascinante.

“Que bom que o senhor está tranqüilo, professor. Não parece chateado como hoje pela manhã.”

“Pois sim. Tudo bem comigo. O doutor não pode reclamar. Agora só uso reticências.” Rita pôs-se a rir segurando a mão do professor. Desta vez o professor também riu e encostou junto ao ouvido da moça, sussurrando algo que ele não me deixa ouvir nem perceber, mesmo na minha condição de narrador onisciente.

“Quem é Simão, professor?” Perguntou Rita, deixando entrever certa confusão.

“Simão? Vou te contar”.

Como já estavam à porta do consultório e o Dr. Pessoa aguardava o paciente, Rita conteve a curiosidade e interrompeu a conversa, pedindo que a secretária avisasse ao médico que Jonas estava pronto para ser atendido. De imediato, Jonas foi introduzido no consultório.

“Boa tarde, Jonas. Sente-se. Muito bem, vou ser breve com o senhor. Já faz dois meses que o senhor está aqui e, tenho que dizer, parece que tem se empenhado muito em se recuperar… Quero dizer, para sair deste seu estado. Estou muito satisfeito. O senhor está pronto para ir para casa?”

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Isso certamente surpreendeu Jonas.

“Doutor, eu já lhe contei a história do meu primo Simão?”

“Não, Jonas. Você nunca me falou desse seu primo. Quer me contar a história?”

“Quero sim. É que hoje de manhã eu dei Simão para vocês.”

“Seja mais claro. Eu não entendo o que você quer me dizer.”

“Meu primo Simão tinha esse problema na cabeça. Ele tinha esse problema de querer destruir as coisas. Outro dia, isso foi engraçado, ele ateou fogo aos móveis da casa onde morava com minha tia Anastácia. É claro que a casa inteira se consumiu no fogo”.

“Essa é uma história triste. Só não entendo o que tem a ver com a nossa conversa.”

“É que a história ainda não é essa. A história é da água com veneno de rato. Simão fez isso. Ele colocou veneno de rato em todas as garrafas de água da geladeira da casa dele. Por sorte minha tia percebeu antes que alguém bebesse da água. Ela era esperta e vivia alerta, com medo que ele aprontasse alguma coisa. Simão riu muito”.

“Por um acaso você está pensado em fazer algo parecido?”

“Com a água? Não. Eu coloquei no arroz, hoje pela manhã. Mas eu não faço mais isso. Agora só uso reticências.”

“No arroz de quem você fez isso?”

“No de todo mundo. O senhor me autorizou a circular pelo hospital. Então ninguém reclama de mim. Fui à cozinha e coloquei veneno de rato no panelão de arroz. Todo mundo comeu. O veneno encontrei na despensa. O senhor acha que é certo guardar o veneno junto com a comida?”

Dr. Pessoa sentiu-se derrotado. Supunha ter controlado os impulsos destrutivos que vira em Jonas. Mas esse desfecho também confirmava que estava certo em seu diagnóstico: insanidade moral.

O médico não almoçava no sanatório. Certamente não estava envenenado. Rita certamente almoçou bem naquele dia. Ela e os demais funcionários e pacientes do Sanatório.

O veneno para rato não manifesta efeitos imediatos, ele age em cerca de três dias. O resultado é morte com sangramentos por todos os orifícios corporais. Ainda não foi dessa vez que o professor voltou para casa. Agora usa reticências, mas o circunflexo ainda está lá, nunca foi perdido.

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