.Entrevista com Marcelino Freire

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Entrevista realizada por Aristides Oliveira, Demetrios Galvão e Thiago E


Sertânia. Pernambuco. Marcelino tem pouca recordação de onde nasceu, em 67. Nasceu não. Escapou. De 10 crianças que nasciam, 6 sobreviviam. A mãe teve 14 gestações. 9 vingaram. Nasceu de 7 meses. Vingou. Saiu de lá com 3 anos. Ele lembra mais de Paulo Afonso, na Bahia. Família de 9 filhos. É o caçula. Na cabeça, tem mais a água da cachoeira de Paulo Afonso do que a seca de Sertânia. Marcelino e sua mãe vão passear para sempre naquelas pontes de mundaréu d’água. Sua cidade é a voz de sua mãe na memória. Você nasceu em Sertânia. Não se esqueça de Sertânia. Foi pro Recife aos 8 anos. A família toda. As coisas não estavam boas em Paulo Afonso. Neste mesmo ano, se deparou com o poema O Bicho, de Manuel Bandeira, na gramática do irmão. Imediatamente, quis ser o Manuel Bandeira. Descobriu que ele era pernambucano. Que ele era doente. Também quis ser doente. Gostou daquela vida pouco saudável. Da preguiça. Da doença. Gostou de querer morrer. Mais tarde, fez teatro. Grupo de poesia. Trabalhou em banco. Iniciou o curso de Letras. Não concluiu. Mudou-se para São Paulo em 91.

Participou de muitas antologias no Brasil e no exterior. Entre os livros que escreveu, estão eraOdito (aforismos, 2002), Angu de Sangue (contos – Ateliê Editorial, 2000). Ganhou o Prêmio Jabuti 2006 com Contos Negreiros (Editora Record). Idealizou e organizou a antologia de microcontos Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê, 2004). Alguns de seus contos foram adaptados para teatro. Criou a Balada Literária, um evento fantástico que, desde 2006, reúne escritores, nacionais e internacionais, pelo bairro paulistano da Vila Madalena. Integra o coletivo EDITH, pelo qual lançou o livro de contos Amar É Crime (2011). Publicou seu primeiro romance, Nossos Ossos (Record, 2013) e ganhou o Prêmio Machado de Assis 2014 de Melhor Romance pela Biblioteca Nacional.

Golpes curtos. Profundo. É como Marcelino escreve. A arte de escrever com uma pá. Desenterrando cidades que precisamos descobrir. Marcelino passou 5 dias em Teresina, em setembro de 2014. Para ministrar uma Oficina Literária pelo projeto QUEBRAS. Você vai conhecer a origem da aperreação desse escritor-produtor. Sua angústia para conseguir patrocínio cultural às vésperas da realização da Balada Literária. Seu amor-humor extraordinário! Ensolarado! E suas reverberações. Era o fim da tarde do domingo, quando a revista Acrobata passou horas conversando com o andarilho, e voarilho, Marcelino Freire.

Imagens de Marcelino durante a infância e a adolescência, quando fazia teatro. (arquivo pessoal)

Acrobata – Tu começa a escrever com que idade?

Marcelino Freire – 10, 11 anos. Com Manuel Bandeira, a partir dos poemas dele co-mecei a fazer uns poemas iguaizinhos. Poema de doença herdei dele, pouco progresso.

Era fácil encontrar literatura?

No Recife, era muito difícil. Como é que você ia procurar livro numa casa que não tem livro? Eu fui fazer teatro muito novo também. De 9 para 10 anos de idade eu fui fazer teatro na escola. Aí fui me deparando com textos para teatro. Perguntava pro professor: “Olha, eu descobri um poeta chamado Manuel Bandeira”. A professora de português dizia: “Nossa, esse menino…” Aí começava também a me apresentar outros poetas. Esses artistas todos, na literatura, na música, em algum momento, eles nos ajudam a compreender a vida, a suportar.

E, por um acaso, o primeiro que tu encontrou é um poeta pernambucano. Coincidência?

Coincidência. E um poeta que falava de ruas que minha mãe dizia: “Eu vou ali na Rua da União”, “O Rio Capibaribe encheu hoje, vamos ter problema que vai encher a rua”. Essas coisas aí, na época que tinha muita enchente no Recife. Então eu pensava, eu posso ser esse poeta e falar de coisas que eu conhecia, coisas que eu ouvia falar. “Ele é pernambucano, eu também sou, eu posso ser alguma coisa na vida, eu não sou jogador. Educação Física é uma bosta. Eu não consigo correr. Não consigo correr”. Aí com o Bandeira eu consegui ficar parado, quieto. Eu me lembro. Minha mãe batia na porta e dizia: “Meu filho, você tá vivo?”. Uma pessoa lendo não é saudável. Todo mundo bate na porta do quarto pra saber o que a pessoa tá fazendo. “O que tá fazendo esse menino no quarto?”. E eu lá, lendo Bandeira…

Quando tu sente que a escrita se torna, de algum modo, o teu ofício e não vai parar mais?

Eu acho que o primeiro reconhecimento público que eu tive (“Nossa! Foi você que escreveu isso?”) foi com o teatro. Comecei escrevendo para teatro. Aos 14 anos, eu já tinha peça montada, se chamava “O Reino dos Palhaços”, a primeira peça de teatro que fiz. “Olha, ele que escreveu!” Saía no jornal. Eu dizia: “Nossa, isso tá bom!” Aí escrevi também algumas poesias. Grupo de poesia eu só vim participar quando tinha 16 anos. Fiz um grupo de poesia chamado “Poetas Humanos”, no Recife. Fiz jornais, zines. Eu descobri que era ali que residia minha fortaleza, meu esconderijo, minha maneira de expressão. Era ali, na literatura, não era na Mecânica. A gente pode não saber o que quer, mas o que não quer a gente sabe. Mecânica? Sai pra lá que eu não quero! Tem carro? Também detesto! Tem futebol? Zero à esquerda! Futebol só entendo de vestiário. Então, o que é que sobrou? Literatura. Ela vinha com muita força, a literatura e seus desdobramentos. Eu trabalhava com revisão de texto. Aí eu fui estudar Letras. Não completei o curso de Letras. Tudo no Recife. Fui participar do grupo de teatro, de poesia. Trabalhava em um banco como revisor de textos. No banco, comecei como office boy, escriturário e depois revisor.

Faz um percurso de Recife até tu ir para São Paulo.

Aos 19 anos, eu já havia produzido algumas peças infantis lá no Recife. Quando vocês acompanham meu trabalho como agitador, fazendo a Balada Literária, eu já fazia aos 19 anos com peças de teatro. Eu nunca podia, nunca tive condições de fazer as coisas, mas eu acreditava que podia fazer e acabava fazendo. Por exemplo, eu escrevi uma peça de teatro chamada “A Menina que queria dançar”. Era uma peça que escrevi para uma atriz desconhecida à época, chamada Patrícia França. Hoje ela é conhecida. Fez novela na Globo, na Record, etc. Ela fez teatro na mesma escola que eu. Só que, quando eu estava com 19 anos, ela estava com 14. Eu montei a peça e foi a primeira peça que Patrícia fez e com a qual ela ganhou o prêmio de atriz revelação. E eu produzi essa peça com 19 anos. Eu disse: “Onde é que eu vou apresentar essa peça, eu com apenas 19 anos? Eu disse, eu vou apresentar no principal teatro dessa cidade, o teatro de Santa Isabel”. Meus amigos diziam: “Você é maluco? Onde é que o teatro Santa Isabel vai te dar uma pauta?” Eu digo: “Eu não perguntei pra eles. Vocês estão colocando um ‘não’ na boca do teatro.” Resultado: de repente, eu já estava no teatro Santa Isabel produzindo peça aos 19 anos. Nunca diga não pra mim. Você pode até dizer não. Eu não digo não pra mim. Nunca diga que uma pessoa vai dizer não. Quer dizer que eu já saio com um não sem perguntar? Sem tentar? É muito fácil. Vá lá falar com o Caetano Veloso. Imagina! O Caetano Veloso vai pra Balada Literária sem receber porra nenhuma? Perguntei por acaso pra ele isso? (risos)

Como tu encara a literatura na tua vida? Teu ciclo de amizade é de escritores, artistas? Como tu vive essas experiências?

Eu acho que a gente tem que dar um peso à literatura como em qualquer atividade que a gente queira. Quando a gente fizer a seguinte pergunta: “Se tirar isso da sua vida, o que é que sobra?” Se você fizer essa pergunta, e sobrar muita coisa, vá pra essa “muita coisa”, pelo amor de Deus. O que você vai fazer com literatura? Sobrou isso, mas eu tenho isso, isso, isso, tenho um gato pra cuidar, um bicho pra levar pra passear, uma sogra pra almoçar, o marido pra cuidar, a bezerra pra mamar. Se você tem muita coisa pra fazer, por que você vai escrever? Vá fazer outras coisas, se essas coisas têm mais importância que a literatura. Agora, tirou a literatura da minha vida e virou uma merda sem fim? Não sobra nada? Ah, então vá pra literatura. Custe o que custar. Vai dar pra viver de literatura quando você fizer essa escolha? Claro que não. Mas vá fundo naquilo que você quer. Uma hora você consegue. A duras batalhas, sim, mas o que não pode é ficar naquela coisinha ali, sem dar algo de si…

Na Oficina Literária do projeto QUEBRAS, tu falou que escreve para se vingar. Explica isso.

Eu sou um bundão. Eu sou um covarde. A verdade é essa. Covarde de marca maior. Tenho medo de dor, de ferimento, de pancada. Eu não consigo pegar em arma. Eu sou fraco. A única coisa que eu faço é escrever. Aí, quando eu escrevo, eu pego em arma. Eu mato, eu me vingo, eu degolo presidentes. Eu mando todo mundo pra puta que pariu! Escrever é minha arma! Porque eu sou muito covarde. Na literatura, eu sou movido por essa vingança, por esse desejo de enfrentamento constante, e não falta motivo pra me vingar. Me vingar de um governo que não vai bem, de uma injustiça. Eu escrevo movido por isso. Quando eu faço um evento, como a Balada Literária, é uma contribuição que eu dou, a partir da minha vingança, em um sentido mais prático, digamos assim. Quando eu faço uma Balada Literária, eu me sinto menos covarde. Porque não sou só aquele escritor que escreve em casa e acha que já tá resolvendo tudo, que na literatura está tudo lindo: “Olha, eu estou escrevendo um livro ‘premiado’ e agora eu posso descansar em paz.” Quando você nota, sente que muita coisa pode ser feita pela literatura, no Brasil. Por exemplo, eu me sinto mais político quando estou fazendo a Balada Literária do que quando estou escrevendo. Político no sentido de uma ação mais efetiva para as pessoas, pra São Paulo, que me deu tanta coisa. Com a Balada, eu quero retribuir um pouco o que recebi de São Paulo.

Sobre teu último livro Nossos Ossos, conta como foi o processo de criação.

Eu já vinha tentando fazer um romance há muito tempo. Porque eu escrevo contos. Movido por esse meu desejo de vingança. Quero gritar logo, dizer onde tá doendo e ir embora. Nos contos, eu fazia isso, me vingava, dava vexame e ia embora. No romance, eu não podia ficar gritando. Já pensou? Cento e poucas páginas gritando no juízo do leitor? Um inferno na Terra, né? Aí eu precisava encontrar o tempo desse romance. Perdi muito romance porque eu entrava nele com esse desejo de urgência, de vingança, de grito. Não conseguia o tom, me cansava, estava muito ‘ruidoso’. Também, eu chegava muito ao romance cegamente, como eu chegava aos meus contos. Nos meus contos, a maioria eu escrevo sem saber como vai terminar, ou que história eu tô contando. E no romance, toda vez eu o perdia porque, toda vez que eu chegava na página 70… 70… 70… Não saía da 70. Emperrava sempre. Aí eu fiz um esboço da história e fiquei dizendo: “Ó, a história é essa e vou fazer esse capítulo aqui, depois o segundo, o terceiro capítulo…” Tinha que encontrar o tom do livro. E o tom do livro estava no silêncio. Era um grito um pouco mais estendido. Os meus contos se aproximam muito da fala da minha mãe. Ela era uma pessoa muito “pra fora”. Então, todos os meus personagens, eu sei que estou escrevendo esses personagens, os dos contos, como minha mãe falava: escrevendo ‘para fora’. No romance, eu me aproximei do silêncio do meu pai, tanto que é o primeiro livro dedicado a ele. E olha que coisa: quando ganhei o Prêmio Machado de Assis, era o dia do centenário de meu pai, se ele estivesse vivo. Olha que coisa curiosa! Ele agradeceu em algum lugar: “Oh, meu filho…” (risos). Pra quem dava moeda pra mim… Meu pai me dava moeda quando eu estava desempregado, quando eu abandonei o banco no Recife pra fazer oficina de literatura e pra conhecer os escritores. Aí meu pai, quando já tinha acabado o meu dinheiro, ele juntava um dinheirinho assim e me dava umas moedas para eu ir ao cinema. Eu ia assistir no Teatro do Parque a umas sessões do Pasolini. Eu disse: “Meu Deus, se o papai soubesse os filmes que eu tô assistindo, com as moedas que ele tá me dando!” (risos). Eu acho que ele agradeceu em algum momento: “Oh, meu filho, muito obrigado”. O processo foi esse. Pra não perder a história, eu me cerquei muito de cinema. Tinha que me cercar de coisas que pudessem garantir que eu não perderia esse romance. Eu me cerquei de teatro também, porque o romance é sobre um dramaturgo. Fui ler história policial porque a trama é muito trama, suspense… E, no romance, eu também aproveitei para fazer uma confusão com minha biografia. Também me cerquei sem nenhum pudor da minha biografia, de alguns aspectos da minha vida. Eu sei que quando o Heleno está chegando em São Paulo, sou eu quem está chegando com ele. Aquele olhar dele na rodoviária, aquilo eu sei. Sei bem o que foi aquilo. Ah! Eu brincava com ossos quando eu era pequeno igualzinho ao Heleno. Brincava com ossinhos, coisinha boba. Mas aí eu exagero! Coloco, no livro, os meninos brincando com ossos, vestindo armadura de osso, cavando ossos humanos. Não era assim, mas a gente exagera pra chamar a atenção. (risos)


AS RAÍZES – [ CAPÍTULO DO ROMANCE “NOSSOS OSSOS”, DE MARCELINO FREIRE, EDITORA RECORD, 2013 ]

O que você quer ser quando crescer, era o que a gente queria saber, pequenos, enquanto separávamos os achados do dia, unhas de tatus, preás, pescoços guaranis, secas nadadeiras franjadas de rosa, patas babilônicas, vai, fala, eu mesmo quero ser um astronauta, ou um fabricante de foguetes, dizia
o meu irmão do meio, com os lábios supersônicos fazia um barulho, extrater- restre, e voava, aéreo, sobre nossas cabeças, com um sabugo na mão, desenhava galáxias longe daquele sertão.

Em círculo, conversávamos numa língua de gente maior, superior, porque o sol deixava tudo do mesmo tamanho, deus, enguia, cotovia, formiga, moço, coruja, velho, estátuas de arquiteto, arames, andaimes, e você, Heleno, que ainda não falou nadinha, quando crescer e ficar assim, da altura de nosso pai, vai morrer aqui, é, será que não tem salvação, fala, desembucha, meu irmão, o que você fará no futuro, sei lá, pensa bem, um doutor, um cantor, sanfoneiro, acho que você leva jeito para ser artista, um palhaço, um mágico, um malabarista, e cada um, dos nove meninos, que equilibrasse um osso sobre o outro, de urubus, camelos, pré-históricas girafas, exércitos inteiros, dissecados.

Eu terei um carro de corrida, falou, empolgado, meu irmão mais velho, a bacia maior foi ele quem cavou, havia uma semana que lutava pela carcaça, gigante, nela costurou alavancas e freios, buzinas fabricadas do enorme joelho, arrancado, sem jeito, mandava a gente sair da frente que lá vinha a grande máquina, serei campeão do mundo, vocês vão ver, também pilotarei avião de guerra, pá, pá, pá, comigo será matar ou morrer.

Pedi ainda um tempo para pensar, eu sempre fui devagar na preparação dos instrumentos, naquele solo de rachar, eu gostava, repito, de costurar vestimentas, criar um texto qualquer, inventar uma história para ver a tarde cair, meus irmãos ficarem curiosos, presos às aventuras que eu arquitetava ali, na hora, o destino eu tinha em minhas mãos, conta mais, Heleno, conta mais, quando crescer eu quero ser várias pessoas, ir fundo, escrever para me sentir, assim, o dono do mundo, o rei dos animais.


Quando começou a escrever o romance?

Eu acho que passei uns dois anos e meio escrevendo. Terminei uma primeira versão do romance, em que o personagem principal era um poeta, e não um dramaturgo. Quando fui ler o romance, eu detestei. O romance não me deu uma coceirinha. Olha, quando um romance, poema ou conto, não der uma coceirinha em algum lugar de vocês, voltem a ler esse poema, porque algo está errado, está acontecendo alguma coisa. Não tá prestando. Coceirinha em que sentido? Uma coceirinha ali no cantinho mais escondido no nosso ser. Agora, quando você termina e diz: “Nossa, deu uma coceirinha aqui na minha alma”, é aí onde o poema tá bom. Alguma coisa te emocionou no poema. Se não te emocionou, não é você que tá escrevendo, é o sistema literário que tá escrevendo por você. Essa primeira versão do “Nossos Ossos” não me emocionou. Não deu coceirinha em lugar nenhum. “Por que eu fiz isso?”, eu me perguntava, sofrendo…

O que tu sente recebendo o prêmio? Dá outra coceirinha?

Dá um coceirão! (risos) O prêmio é uma consequência. Eu gostei foi do dinheiro. Gasto dinheiro pra caralho! Pra porra! Gasto dinheiro com tudo! No mínino, o dinheiro vai me ajudar. Eu gostei do dinheiro. E sabe o que eu gostei também? O Prêmio “Machado de Assis”. Eu adoro Machado de Assis. O tanto que eu falo em Machado de Assis! Muito obrigado! Pelo amor de Deus! Falo tanto dele nas oficinas. Eu merecia, só por isso, ganhar um “Prêmio Machado de Assis”. E eles darem o prêmio para o Nossos Ossos! Não é um livro fácil. Eu não fiz concessão nenhuma pra fazer um livro desses. A editora Record não queria essa capa com as caveiras. “Vai ter a porra dessas caveiras!” (risos). Eles terem dado pra essa história erótica, homoafetiva, agoniada, do jeito que é… Eu acho bom. Se vierem mais caveiras por aí, mais coisas agoniadas pra eles premiarem… Dar R$ 30 mil pra outro povo, de outro tipo de literatura, ficar contente, tá ótimo!

Depois da premiação, a editora disse o quê? “Que lindas caveiras, Marcelino!” (risos)

Eles gostaram muito do desenho do Lourenço Mutarelli, mas queriam que a caveira fosse menorzinha, sem tanta caveira assim. Queriam uma coisa no canto. E eu: “De jeito nenhum!” Eu pedi pra colocar caveira na contracapa. “Marcelino, é muita caveira, não vai vender!”. “Não. Mas já não vai vender! Ninguém vai comprar Nossos Ossos, com caveirinha ou caveirão, já não vai vender”. Angu de Sangue, que é um livro meu de contos, quem é que vai dar de presente de Natal um livro desses? (risos) Amar é Crime. Alguém vai chegar: “Oh, minha mãe, hoje é Dia das Mães! Tome, minha mãe. Amar é Crime.” A velha não dorme à noite em casa. “Meu filho vai me matar hoje! Amar é Crime?!” (risos) Então, já não vende por natureza. Não estou escrevendo pra vender, mas pra dizer o que eu tenho pra dizer. Entender os absurdos à nossa volta. Eu não abria mão. Não. “Nossos Ossos é essa coisa”. Depois eles aprovaram, “É isso aí mesmo, tá certo”. E agora eles estão muito contentes também, inclusive com isso: “Nossa, Marcelino, surpreendeu o prêmio ter saído com seu livro”. Eles estão acostumados a ver outros livros vencerem esse prêmio.

Sendo um prêmio da Biblioteca Nacional, tu acha que isso indica alguma mudança na percepção dessas instituições com relação à literatura? Eles estão começando a se abrir um pouco mais?

Olha, eu já fui curador do Prêmio Portugal Telecom, fui jurado de Petrobras, do Prêmio São Paulo de Literatura, jurado do Jabuti algumas vezes. A luta não é fácil. É um briga danada, desigual. Difícil chegar a um consenso. E sair da mesmice também é difícil. Há autores nesses prêmios, e eu não vou citar quais, que já chegam com 5 votos de cara. O que você vai fazer contra 5 votos? Parece que “peidou, já é bom”. Você não imagina a confusão que é. Tem hora de a gente ter de bater na mesa: “É um absurdo um negócio desse aqui! Eu não vou mais votar!” Aí as pessoas: “Calma, calma…” Não é fácil. Por isso que eu digo: alguém brigou por esse meu livro aí no Machado de Assis, porque meu livro nunca será um consenso. Consenso é assim, creio: chegou um livro de Bernardo Carvalho. Já tá tudo lindo! Loteado em tudo que é canto. Parece um loteamento, caralho! Negócio frígido da porra! Frígido. Não é nada contra Bernardo Carvalho. É contra o tipo de literatura consensual que ele faz. E não é culpa dele. A culpa é da preguiça dos jurados. Isso acontece também com os livros do querido Chico Buarque. Entra de cara em qualquer lista. Aí você briga, bate o pé na mesa. Sempre tem que ter um doido aperreado nesses júris, pra poder desarranjar um pouco. Posso falar de bastidores: sinto, com o tempo, que os prêmios estão querendo desencaretar. Eles querem renovar. Você vê que tem uma briga muito sutil entre os prêmios. Se você olhar a história, o Portugal Telecom é um prêmio que chegou na cena e deu um prêmio, por exemplo, para o Amilcar Bettega Barbosa que, até então, não era conhecido. Ou mesmo ao Nuno Ramos, ou mesmo indicou a Angélica Freitas, que já esteve entre as finalistas. É um prêmio que dá uma respirada. Se você observar, o prêmio São Paulo também está indo por esse caminho, quando premia, merecidamente, uma autora como a Paula Fábrio, de uma pequena editora, a Patuá.

Que diferença existe entre o Marcelino escritor do primeiro livro e o Marcelino do Nossos Ossos?

Eu acho que eu estou mais calmo. Não poderia começar calmo. Não é calmo, no sentido “entregue”, não. Eu tô mais calmo para compreender novas possibilidades do meu pensamento, das minhas inquietações. Percebi que eu posso gritar, continuar gritando, mas não tenho mais forças, inclusive físicas, para gritar do jeito que eu gritava. Nem meu oxigênio é tão grande, pra ficar gritando como eu gritava nos meus primeiros livros. Percebo que Nossos Ossos é um livro contundente. É um grito sim, mas não é a Totonha, a Muribeca, o povo todo que veio gritando antes de Nossos Ossos, lá em meus contos. Eu tô mais calmo pra gritar.

Outro livro interessante é Rasif. Você falou da capa do Nossos Ossos, feita pelo Lourenço Mutarelli, e a disputa da editora em torno da imagem. E no Rasif a gente percebe um livro-diálogo que você tem com as gravuras do Manu Maltez. Isso acaba criando uma outra paisagem que dialoga com o texto, a palavra. Fala como foi o processo de criação desse livro e esse jogo imagem-texto.

Eu gosto muito de escrever sozinho. Não pode tocar música nenhuma, não pode ter gato em casa, criança chorando, cachorro latindo. Eu escrevo sozinho. Eu e a palavra ali me fazendo companhia. Quando eu vou fazer o livro, eu gosto de abrir as possibilidades desse livro. Meu primeiro livro por uma editora foi o Angu de Sangue, pela Ateliê Editorial. Eu convidei um amigo artista plástico, Jobalo, para fazer umas interferências no livro. Eu me junto a Jobalo para compor algo em parceria. No segundo livro, o BaléRalé, eu já não queria essa interferência, que era pra exatamente não ficar como se fosse uma marca constante em meus livros, sempre pedindo interferência de outro artista. Aí veio o Contos Negreiros, que também não teve interferência nenhuma. No Rasif, eu senti falta de pegar esse outro parceiro aí. Quando eu lancei Contos Negreiros, em 2005, eu conheci o Manu Maltez, que é compositor e músico. Ele me mostrou uns desenhos dele que ele estava fazendo para a capa do CD. Quando olhei os desenhos eu disse: “Olha Manu, eu acabei de publicar um livro, Contos Negreiros. Eu nem sei qual é o livro que eu vou fazer depois, mas que seus desenhos estarão lá, estarão”. Aí eu fiz o convite. Quando fui encontrando os contos do livro, e tinha um bom número de contos reunidos, eu mandei pro Manu. Nesse tempo de 2005 para 2008, quando o livro estava sendo preparado, Manu já fazia outro tipo de desenho, que eram gravuras em metal e ficaram belíssimas. Ele veio com essa interferência para o Rasif. Eu não disse o que ele tinha de fazer. Ele leu os contos e me entregou as gravuras. Acompanho muito de perto a produção dos meus livros.

Por qual livro tu tem um carinho especial?

Nossos Ossos. Como é o mais recente, saiu em novembro de 2013, ele ainda está tão pequenininho. Eu tenho que levar ele pra tomar banho (risos). É um bebezinho, os outros já estão na estrada. Eu olho assim pra ele: “Eita que amor, que carinho” (risos). Eu não consigo publicar livro todo ano. O que você tem a dizer todo ano? Pelo amor de Deus! Todo ano você tem alguma coisa pra dizer? Você, por acaso, é o Roberto Carlos num especial de fim de ano? Toda hora tem que dizer um negócio! Ivete Sangalo? Tem pessoas que escrevem livro todo ano e eu respeito. Tem gente que é compulsivo, tem uma produção extraordinária. Mas o que eu tenho pra dizer todo ano? Eu ainda tô, nesse momento, compreendendo o danadinho dos ossinhos. Tô agarrado nele, aí vem outro livro agora?! No meio do negócio, agora?! Menino! Um osso aqui, outro ali! (risos) Até o final de 2014, por exemplo, e durante o ano todo de 2015, eu vou estar ainda agarrado nesses Ossos. O próximo livro deve sair em 2016. Eu percebo que esse meu período de ruminação é de 3 anos. De um livro para o outro, 3 anos, 2 anos e meio. Que é quando o Nossos Ossos começa a correr pra um canto e eu começo a pensar umas coisas. A saber que inquietações eu tenho, que desejos de vingança eu quero executar.

E as discussões em torno da literatura com questões de gênero, ou raciais, ou de margem, como por exemplo literatura “de preto”, “gay”, “regional”, “feminista”? Existem essas segmentações?

Eu escrevi um livro chamado Contos Negreiros. Muita gente achava que eu era negro. Inclusive, o meu livro foi parar numa biblioteca de autores negros da Bahia. De autores afrobrasileiros, numa biblioteca em um quilombo. Eu recebi uma mensagem na época dizendo: “Seu livro ‘Contos Negreiros’ tá na biblioteca”. Vixe, mas eu não sou negro. Uma época, eu fui lançar o livro no Rio Grande do Sul e dei uma entrevista na rádio, convidando as pessoas para irem ao lançamento. Um senhor tava na fila me olhando muito desconfiado. Chegou pra mim e disse: “Adorei sua entrevista na rádio, mas eu pensei que você fosse negro”. Então, como que fica a questão de gênero? O meu livro Contos Negreiros é um livro, por incrível que pareça, sobre preconceito, sobre dor, exclusão. Eu, naquele livro, tanto sou opressor, como oprimido. Acho horrível quando dizem pra mim assim: “Você é um escritor que dá voz aos que não têm voz”. Que conversa é essa?! Eles têm voz! Muita voz! “Se quer ver, escuta”, com bem diz Francisco Alvim, poeta mineiro. Outra, sempre dizem: “Marcelino escreve contos homoeróticos”. Sim, eu escrevo vários contos homoeróticos. Todos os meus livros têm. O livro que tem mais predominância da temática homossexual é o BaléRalé. Mas BaléRalé é um livro sobre arte, sobre escolhas, um livro também sobre preconceito. Eu acho uma injustiça falar que o João Silvério Trevisan é um escritor de temática homossexual. Ele é um escritor! E aquela temática vai estar presente porque está presente na vida dele. É um escritor do destino humano.

Por ter nascido no Nordeste, e dialogar com o eixo Rio-São Paulo, como tu enxerga o conceito de “literatura regional”?

Outra coisa chata também. Umas das coisas que ficaram muito rotuladas. Mesmo o desejo de Ariano Suassuna, de se construir algo “legítimo”, em busca de uma “cultura” muito identificada com a “arte genuína”, brasileira, pernambucana. Tudo bem. Mas aí vem Chico Science, e ele chega atravessando tudo isso com uma coisa maravilhosa, pegando todas essas referências e transformando e ruminando e jogando uma outra coisa, uma nova arte na discussão. Eu acho extraordinário! Graciliano Ramos, você pode dizer que é regional? Você pegar também Guimarães Rosa. Você pode dizer que um Dostoiévski é regional? Eu nasci em Sertânia, fui morar em Paulo Afonso, no Recife, em São Paulo.O meu corpo mudou de lugar, saiu desses lugares todos. Mas a minha alma é pernambucana. O meu corpo sofre as interferências desses lugares por onde passei, todos. Eu sei que só escrevi o que escrevo hoje porque eu fui morar em São Paulo. O meu corpo sofreu marcas desses lugares. Tanto de Sertânia, de onde eu trouxe uma pedra no calçado, em Paulo Afonso outra pedrinha e um espinho, no Recife eu trouxe um cisco aqui, outro acolá, da geografia do Recife, do chão do Recife, e de São Paulo também. Essas coisas foram marcando meu corpo, mas minha alma, na origem, é pernambucana. Quando eu escrevo, é com o corpo. Sei que os meus textos se tornaram mais poluídos por causa de São Paulo. Os meus contos ficaram cheios de semáforos. Isso foi muito de São Paulo. Uma velocidade qualquer eu ganhei lá. Mas o sotaque é pernambucano. O acento é pernambucano. Agora dizer assim: “Eu sou genuinamente pernambucano. Eu vou fazer isso, que é genuinamente pernambucano”, isso é uma chatice! Você é ‘genuinamente’ você, com suas dores, sua percepção de vida, com sua visão de mundo, com as músicas que você ouve.

Na Balada Literária de 2013, escritoras e escritores homenagem a Laerte. A bela caracterização foi feita pela Letícia de Carvalho. E as fotos foram feitas especialmente por J. R. Duran. Aqui tem algumas. Na outra página, Reinaldo Moraes Índigo Andréa Del Fuego.
Nesta, Laerte Paulo Lins Marcelino Freire.

Voltando ao Contos Negreiros, tu diz que é opressor e oprimido. Em que medida isso se dá?

Tem um conto lá, por exemplo, chamado Trabalhadores do Brasil. Olha, eu tinha medo de fazer um livro chamado Contos Negreiros e que ele fosse adotado por uma ONG. Um inferno na Terra! Se ele fosse adotado por uma ONG, viraria um discurso “em defesa de”. Em defesa de nada! Nenhum escritor vai estar num pedestal apontando o dedo dizendo: “Vocês estão errados! Olha o que estão fazendo com os pobres! Olha o que estão fazendo com a família! Olha o que estão fazendo com o mundo!” Você não está fazendo também? Você está fazendo! Você está no mesmo barco! A caminho do mesmo inferno. Você é opressor também. No conto Trabalhadores do Brasil, eu imagino o que estariam fazendo as entidades africanas… O que elas estariam fazendo hoje? Os orixás, o que eles fariam hoje? Observe. [recitando]

“Enquanto Zumbi trabalha cortando cana na Zona da Mata Pernambucana Olorô-Quê vende carne de segunda a segunda ninguém vive aqui com a bunda preta pra cima tá me ouvindo bem?
Enquanto a gente dança no bico da garrafinha Odé trabalha de segurança pega ladrão que não respeita quem ganha pão que o Tição amassou honestamente enquanto Obatalá faz serviço pra muita gente que não levanta um saco de cimento tá me ouvindo bem?
Enquanto Olorum trabalha como cobrador de ônibus naquele transe infernal de trânsito Ossonhe sonha com um novo amor pra ganhar 1 passe ou 2 na praça turbulenta do Pelô fazer sexo oral anal seja lá com quem for tá me ouvindo bem?
Enquanto Rainha Quelé limpa fossa de banheiro Sambongo bungo na lama e isso parece que dá grana porque o povo se junta e aplaude Sambongo na merda pulando de cima da ponte tá me ouvindo bem?
Hein seu branco safado?
Ninguém aqui é escravo de ninguém.”

Vamos desmembrar essa frase do conto? “Ninguém aqui é escravo de ninguém”. Ninguém, que não é ninguém, escraviza também quem não é ninguém. “Ninguém aqui é escravo de ninguém!” Entendido? Nenhuma frase minha está só em um lugar, como eu não estive nunca em um só lugar durante minha trajetória inteira. Eu achava que ia ficar em Sertânia, fui pra Paulo Afonso, São Paulo, Recife, São Paulo, Recife. Esses deslocamentos estão também nos meus textos. Os deslocamentos das palavras também. Não pense que as coisas estão afirmando conceitos únicos, ou pensamentos únicos, ou objetivos únicos. As coisas estão se misturando. E nessa mistura estamos todos juntos. Outra coisa: o livro é dedicado para Chocottone. Quem é Chocottone? É alguém que eu escravizo em casa? Quem é? Eu levanto essas questões exatamente porque eu não queria fazer um livro em que eu me colocasse como ‘entendedor’, ou alguém que estivesse ali para resolver, solucionar algo, ou para explanar sobre. Eu sou só alguém que sofre e que faz sofrer.

Vamos para outras atividades. E a Balada Literária? Como surgiu a ideia de fazer o evento? Como a Balada se mantém a cada nova edição?

Tô lascado. A Balada Literária vai para a 9ª edição nesse ano de 2014. Se agora, no dia 15 de setembro, se eu não tiver uma resposta positiva de um único patrocínio possível pra que o evento se realize, ele não será realizado. Juro. Porque, desde o começo do ano, a gente tem a Lei Rouanet, e não conseguiu captar nada. E esse ano de Copa do Mundo… Virou o álibi de todo mundo, a Copa. A única captação que tá correndo ainda, com 95% de possibilidade de sair, é a do Itaú, que vai dar o quê? 100 mil reais, creio. A captação total é de 380 mil. Ano passado, eles deram uma cota de 100 mil e devem dar uma cota de 100 mil agora. Eu sempre fiz a Balada com os parceiros, Biblioteca Alceu Amoroso Lima, Centro Cultural b_arco, SESC Pinheiros, Livraria da Vila… Qual é o meu trabalho? Eu vou costurando essas parceiras. Vocês acompanharam. Eu costuro parcerias até com os taxistas do meu bairro. Eu peço para eles levarem os autores pra cima e pra baixo e depois eu pago em suaves prestações. O que eu puder pagar com o dinheiro dos parceiros, eu pago. O ano passado foi o único ano em que a gente conseguiu a Lei Rouanet, pela primeira vez, e conseguiu captar dois apoios: a FTD, que eu fui lá pedir desesperado; e o Itaú. A Balada é feita por pessoas. Eu não falo com instituições. Eu sei que o Itaú foi via Claudiney Ferreira, que é do Itaú Cultural, que ficou lá nos recomendando junto ao banco. Eu sei que o Francis é o SESC Pinheiros. Eu sei que a Rosa é a Biblioteca. Eu sei que outra Rosa é FTD. Eu conheço todos eles. Nunca consegui apoio em lugares que eu chego e digo: “Vou homenagear Raduan Nassar.” E a pessoa diz: “Quem é?”. Aí eu fico puto com isso. (risos) Depois eu começo a dizer quem é. Me perguntou? Eu vou responder. Raduan Nassar é fulano… “Oxente, e não dá pra homenagear fulano?”. Eu digo: “Não dá não. Quer me dar o dinheiro ou não quer dar o dinheiro?”. Em 2014 a Balada Literária vai homenagear dois escritores mortos. Primeira vez que fazemos isso. Plínio Marcos e Carolina Maria de Jesus. Carolina, favelada, negra, pobre, que escreveu diretamente da favela a história da sua família. Foi considerada, na época, “vira-lata” da literatura brasileira. Olha a alcunha que deram pra Carolina Maria de Jesus! Fez o maior sucesso. Se viva, faria 100 anos. Escreveu um livro chamado “Quarto de Despejo”. Plínio Marcos: marginalizado, morreu vendendo livro dele nas ruas de São Paulo. Teatrólogo sem concessão absolutamente nenhuma em toda a sua obra. A Balada vai começar no Teatro Oficina. Uma historinha curiosa: eu chego lá no Teatro Oficina, “Marcelo [Drummond] (diretor de “O Assassinato do Anão do Caralho Grande”, peça de Plínio Marcos): vamos fazer!”. Todos nós nos articulamos.

Eu sei a importância de fazer isso no Teatro Oficina. O patrocinador não vai entender nada, sobretudo porque a peça tem um anão do caralho grande! Pense: “Unimed, eu quero o patrocínio de vocês para a peça que começa com um anão do caralho grande!” (risos) Agora virem me falar que a Balada não vai começar com o anão do caralho grande? Então eu não quero seu dinheiro! Eu prefiro o anão do caralho grande do que seu dinheiro! Só que eu chego lá no Teatro Oficina, faço uma reunião maravilhosa, mas tem custos isso. Digo: “Levante aí, Marcelo, o custo básico.” Tem gente que trabalha no teatro, tem um monte de coisa. “Me diga. Quanto?” “Olha, Marcelino, o teto, o valor, em cima, assim, chorando, dá 20 mil reais.” “Te agradeço!” 20 mil reais. Já saio daqui sabendo que é isso. Ou seja, eu já saí do Teatro Oficina devendo! Onde é que eu tenho esses 20 mil reais? Em lugar nenhum.

Teu prêmio literário só pra pagar a peça! (risos)

Olha, e eu vou lhe dizer: se for necessário, este Prêmio Machado de Assis que recebi vai para o anão do caralho grande, sem dúvida nenhuma! Mas que o anão vai mostrar sua chapuleta (risos) na Balada Literária, isso vai! Aí eu saio de lá sabe como? Eu saio de lá com uma missão. Alguém vai ter que pagar. Ligo pra um, ligo pra outro, conto “Pelo amor de Deus! Vocês vão fazer isso com o Plínio Marcos?” Fica um vexame desgraçado! “Isso é um absurdo! Que o Plínio não tem a obra reunida!” Aí toca o telefone de um, de outro. Resultado: consegui já 15 mil reais! “Marcelo, fechou por 15?”. “Fechou!”. Vai ter O Anão do Caralho Grande! Enfim… Tô esperando até o dia 15, para saber se sai esse patrocínio do Itaú para que eu possa continuar a pensar no evento. A Balada está parada nesse exato instante. Eu tô esperando até dia 15 pra ter essa resposta. Eu me desespero, mas, tendo ou não tendo patrocínio, vai ter! Não teve patrocínio? Vai ter do mesmo jeito! Quando não tem, aí que eu fico puto! E é aí que eu faço. Por quê? Eu tenho que honrar os dois homenageados deste ano, Carolina e Plínio. Os dois nunca se entregaram! Fizeram tudo na maior guerrilha. Aí é que a homenagem vai ficar bonita! Na dificuldade…

Como é a curadoria, a articulação com os autores?

Nessas viagens que eu vou fazendo pelo Brasil. Eu vim aqui em Teresina e conheci vocês. “Como é que as pessoas podem não conhecer esse trabalho belíssimo que está sendo feito aqui por esses meninos?” Quando conheci o poeta Allan Jonnes, em Aracaju… Agora, eu peço a cada convidado. Como eu já pedi pra vocês: “Consegui isso aqui, mas eu não tenho as passagens aéreas”. Aí vocês: “Não, a gente consegue as passagens”. Eu consigo a alimentação, cada um sabe qual é o esquema, e vai indo. Eu sou muito ajudado por todos que participam da Balada Literária também. E tenho uma equipe guerrilheira, que se articula, me socorre sempre…

Qual é o conceito da Balada?

Misturar todo mundo! Tudo ao mesmo tempo agora. Teatro, cinema, artes plásticas, autores consagrados, autores que estão começando, travesti, drag, punk. Em 2013, o homenageado foi o Laerte. Sabe como a Balada é feita, sabe? Eu tô conversando com vocês aqui. Um dia um rapaz falou assim pra mim: “Eu faço parte de uma banda punk-gay”. (risos) “Como é essa banda punk-gay?” Ele foi me explicar dizendo umas letras das músicas da banda. Eles são todos tatuadões, tudo forte, bonitão. Tem um punk que se veste de mulher. “Diz uma letra aí”. [Cantando a música:] “Pau no meu cu que eu gosto, não sei o quê! Vai! Fode meu cu, ai, ai!” (risos). “Vocês vão estar na Balada!”, eu disse logo. O homenageado é o Laerte e ele desconstruiu o gênero! Tudo a ver com o Laerte… Foram e fizeram um show! Aí vieram uns punks, na plateia, que acompanham o som deles, tudo na beira do palco: “Eu dou o cu!” (risos)

Demetrios Galvão – Eles cantaram uma música para o Aristides…

Marcelino Freire – Vocês estavam lá! Claro!

Demetrios – Tinha uma música lá que dizia: “Quem dá o cu anda de bicicleta! Quem anda de bike dá o cu!”

Aristides Oliveira – Eu ando de bike, mas até agora… (risos)

Marcelino – Olha que ele disse: “Eu ando de bike mas ATÉ AGORA…”

Aristides Oliveira – Eu tenho que escutar mais…

Thiago E – O Demetrios saiu de lá dizendo que ia comprar uma bike. (risos)

Demetrios – Morro de medo de transar em cima de bicicleta!

Marcelino – Você sabe que aquele som, pra quem entendia de punk, disse que era um som bom mesmo! E ainda sobre a Balada. Eu tô aqui em Teresina, posso levar todo mundo? Não. Mas eu fiquei com uma coceirinha. O que é aquele Elio Ferreira?! O que é ele, cara?! Nunca vi nada igual! Ele e o microfone: “A cabeça! Comi tua irmã!” Eu olhava pra ele, recitando aqueles poemas de afirmação da negritude, de afirmação da raça. Descomportado, sem cagação de regra. Negro! As pessoas precisam saber desse cara! Eu saio daqui já devendo. O Prêmio Machado de Assis já está entregue. (risos)

Como esse prêmio interfere na tua figura de escritor? Como isso afeta teu trabalho?

Eu já vi muitos autores falarem assim: “O meu livro está sendo traduzido para a Iugoslávia, o meu livro está sendo traduzido para a Hungria.” Sei lá que porra! Mas não falou nem do seu bairro ainda. Não falou da sua casa, não falou pro seu bairro, para a sua cidade. Tá preocupado em falar pra Iugoslávia! Caralho! Eu olho pra pessoa: Ôxe! Ninguém lê nada de nada dele! Eu ficaria muito incomodado (não estou dizendo que sou lido ao extremo) se eu fosse para o Salão do Livro de Paris, Feira de Frankfurt, etc, ou fosse traduzido para outras línguas, e eu não tivesse primeiro falado, por exemplo, pra Sertânia. Eu sei que já falei, que eu voltei várias vezes lá. Eu sei que já falei para muitos grupos de teatro de Recife. Eu sei que eu já falei, modestamente, para a periferia de São Paulo. As pessoas montam os meus textos. Elas estão sempre em contato. Sei que falei minimamente aqui em Teresina. Quando eu vou a esses lugares, fora do país, eu falo a mesma coisa que eu falo aqui. Tá me ouvindo falar aqui? É igualzinho. No Salão do Livro de Paris. Tem a tradutora? “Traduza, minha querida”. Aí reverbera! Eu reverbero! Quem tá falando lá é Sertânia comigo. É minha mãe. Eu digo: “Olha, eu escrevo porque minha mãe quando estava muito feliz cantava Luiz Gonzaga. Você conhece Luiz Gonzaga? Agora eu vou cantar a música do Luiz Gonzaga: Olê, muié rendera. Olê, muié rendá”. Aí os franceses conheciam a música. (risos) Quando ela cantava Luiz Gonzaga, ela tava feliz com dinheiro. Quando ela não tava com dinheiro, ela batia panela, fazia barulho. Eu escrevo como quem bate panela no juízo do leitor, igual minha mãe, quando tava aperreada. Ou quando tá tudo muito quietinho, quando meus personagens têm um pouquinho de respiro, eles cantam Luiz Gonzaga. É isso o que eu conto lá fora, não é outra coisa não. Então, eu fico feliz por tudo isso. Não ficaria feliz se fosse o contrário. Se eu não fosse ouvido minimamente por um pedacinho de Pernambuco.

Fala um pouco sobre o projeto QUEBRAS. Como surgiu a ideia?

Toda vez em que eu sou convidado para uma Feira, pelo SESC, ou por uma instituição, ou Bienal do Livro, quando eu vou às cidades. Por exemplo, eu vim a Teresina pela primeira vez por causa do SALIPI [Salão do Livro do Piauí]. Quando isso acontece, eu quero conhecer o máximo que eu puder de cada cidade. Eu me lembro que uma vez eu fui para Assunção, no Paraguai. Como eu era um escritor brasileiro indo para Assunção, as pessoas tinham a mania, dependendo de aonde você vai, de levar você só para os lugares distantes de quem tá produzindo, da juventude. Aí levam você pra casa de num sei quem, num jantar de boas vindas da Associação da Casa do Caralho. Você fica nesse jantar de boas vindas do Cônsul… Eu tava com o pé no saco! Gente, eu ficava rodando na Feira do Livro, desesperado, atrás de alguém que desse um pouquinho de respiro àquela formalidade, àquele coquetel. Sabe quem fica em coquetel? Escritor que só quer ser traduzido! Vai pra porra de tudo que é coquetel! Eu saía com o Paulo Lins, feito louco, com o Mutarelli por Paris, ou Guadalajara, quando eu tive com eles, pra beber! Encontrar os botecos, as beiradinhas. Diversos outros autores iam para coquetéis: “Não, estamos fazendo negócio”, diziam eles. Fodam-se. Coquetel, chatice do caralho! (risos) Eu procuro sempre esse tipo de autor que está fora. E no SALIPI foi a mesma coisa. Fui atrás, aí encontrei vocês. Esse desejo de estar interligado. Aproveitar a grana dos outros pra fazer isso. Resposta longa para dizer que o Quebras foi com o objetivo de quê? Eu não vou esperar ser convidado para uma Feira. Eu vou até a cidade! Alguém vai ter que me patrocinar para eu poder ir, fazer uma oficina e fazer esses encontros. Aí inscrevi o projeto no Rumos Itaú Cultural. Foi aprovado. Aí convidei o querido Jorge Filholini (jornalista) para me acompanhar nas aventuras. Sem ele, eu estaria fodido. Ele faz tudo: fotografa, edita, filma, escreve também. Eita! Tive muito cuidado que o projeto não parecesse que eu estava indo para “resolver a situação artística de cada lugar”. Não. É um grande começo de conversa, de troca de ideias, pulsações, parafusos. Quebras é um projeto feito para quebrar um pouco essas distâncias, essas fronteiras.

O que quebrou e reverberou no teu corpo, na noite de ontem, durante o encerramento da Oficina do Quebras em Teresina, quando tu viu aquele recital no Galpão do Dirceu?

O que é o Galpão do Dirceu! Fiquei maravilhado com aquilo ali. Uma casa aberta para as pessoas ocuparem! Eu fujo de lugares que não tenham essa filosofia… Não me venham com: “Olha, lá em Palmas, o Quebras vai ser na Associação Brasileira dos Escritores… Ou, vai ser na União…” Não! O Itaú Cultural tem parceiros singulares em cada cidade, ainda bem. Eles que nos falaram do Galpão do Dirceu: “Fica na periferia”. Eu digo: “É lá que queremos ir”. Eles tinham outros parceiros aqui. Eu disse: “Não, quero o Galpão do Dirceu”. Falaram que era um lugar um pouco distante, algum problema? “Não, não tem problema algum”. E aí a gente se depara com aquela geografia, com aquela coisa diferente, aquela resistência. Por si só o espaço já vem com essa iluminação. E aí vem a parceria com vocês, no sentido de que o Thiago E levou a gente pra cima e pra baixo. Vocês deram o suporte e, coincidentemente, a Acrobata 3 já estava sendo lançada. As pessoas foram lá mostrar seus livros, a oficina foi ótima! De manhã, às 9 horas, num dia de semana, não é fácil em qualquer lugar. E estavam lá vinte pessoas. Olhem, eu e Jorge Filholini sairemos daqui direto pra Belém e entre nós estávamos comentando: “Nossa, já começamos o projeto Quebras em grande estilo! O que vai ser de nós agora?” (risos). Obrigado, Teresina, mais uma vez obrigado, Teresina. Eu e Jorge damos viva, de coração.

Para encerrar. Que mentira tu gostaria que fosse verdade?

Eita pergunta boa! [faz uma pausa] A vida. É uma mentira que eu gostaria que fosse verdade.


2 links pra conhecer trabalhos do Marcelino: Fique por dentro do Projeto Quebrash p://quebras.com.br/

Blog
marcelinofreire.wordpress.com/

Essa entrevista aconteceu em setembro. Em novembro, A Balada Literária acabou recebendo o patrocínio esperado do ITAÚ de 150 mil reais – e com ele foi feita a edição de 2014.

Marcelino ainda teve de tirar 10 mil reais do seu bolso, do Prêmio Machado de Assis. E fez isso sorrindo.

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