Alma de Subúrbio – Trecho do Romance Inédito de Sérgio Fantini

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Sérgio Fantini, Belo Horizonte/MG, publicou poesia e prosa, tem textos em dezenas de antologias e periódicos. Em 2019 lançou Quarenta (Pulo), registrando, contra o fascsimo, quatro décadas de publicações literárias.


A rua ainda estava vazia. Eu também, mas me sentia bem. Fui descendo devagar. As janelas do Gualberto, fechadas. No jardim da sessenta e sete, uma bela bunda jovem se me apresentava sob um short branco. Antes de anunciar minha sorrateira e safada presença, desfrutei da beleza daquela flor. Era a mais bela daquele jardim, da rua, de todos os jardins de Tormenta — eu apostei. Poderia colher seu néctar com a ponta…

— Bom dia, cidadão.

Ela se levantou e se virou tão rápido que fui pego de surpresa ainda molhando o bico da imaginação. Apaguei a lousa lúbrica, abri meu portão e me encostei no murinho entre as casas.

— Bom dia, senhorita, bom dia pra cuidar das plantas.

Não era em plantas que eu pensava.

— Tem razão, aproveitei a terra úmida para tirar o mato da roseira.

Rosa rosa rosae!

— Ah, ficarão lindos esses botões.

Como a jardineira. Ela abaixou os olhos como as dondocas tímidas do passado. Falsa. Bandida. Como se fosse possível ter sacado meu trocadilho em fome.

— A senhorita me ajudaria a cultivar meu jardim, quando tiver tempo sobrando?

Não era em jardim que eu pensava.

— Certamente. O cidadão se mudou hoje, né?

— Isso, essa madrugada. O barulho a incomodou?

Lembrei de fingir uma preocupação que nem de longe tinha me passado pela cabeça. Falso. Bandido.

— Nem pensar. Tenho o sono profundo, quando durmo são no mínimo oito horas nos braços de Morfeu. Minha tia é que acorda mais fácil, dorme muito mal. Ah, claro, posso te ajudar no jardim, sua casa ficou fechada muito tempo, a terra está ressecada, vai dar trabalho, mas vai ser um prazer…

Estava difícil acompanhar o assunto, seus peitos juvenis subiam e desciam sublinhando as mãos escondidas nas luvas enlameadas, que dançavam ao ritmo das palavras que saltavam dos seus lindos lábios como pétalas de flores suicidas. Ela vestia camiseta suja de terra com publicidade da Revolução, cabelos pretos presos, a envolvente bermuda curta e galochas vermelhas. A pele branca, viçosa, não escondia a adolescência recém perdida — devia ser uns cinco anos mais nova que eu. Bonita, gostosa, mas meio chata. Enquanto me afastava daquela falação sem fim, encaixei a chave na porta. Ela falava e seus olhos me seguiam. Quando deu um tempo, me despedi:

— Então, senhorita, depois combinamos o lance do jardim e tudo o mais.

Ela não se importou com minha grosseria.

— Senhorita, não, Dolcênia, parceira Dolcênia. E o cidadão?

— Muito prazer, Dolcênia. Meu nome é Silas, parceiro Silas, ao seu dispor.

Abri o vê dos dedos em sua direção e ela retribuiu com o punho fechado, sorrindo promessas de uma profícua relação entre bons vizinhos.

***

Acendi um cigarro e me sentei para anotar as tarefas mais urgentes. Levei um bom tempo refletindo sobre a situação, minhas perspectivas, Dolcênia e seu delicioso corpo rosáceo. Não havia nada mais importante que arrumar a casa, me instalar e começar a trabalhar. Foi o que fiz.

Abrir caixas acaba sendo outra viagem, surgem objetos embarcados clandestinos, esquecidos há tempos, desconhecidos… anotações nas margens dos livros, bilhetes entre as páginas, ingressos para concertos e peças… rótulos de vinho e de cerveja, às vezes autografados por pessoas que ficaram, ou deveriam ter ficado em estações antigas… do fundo das caixas, objetos insignificantes nos lançam olhares cheios de significados; mensagens codificadas escorrem humildes de dentro de envelopes comerciais reutilizados… a melancolia sussurra e a gente às vezes tem vontade de fechá-las e voltar.

Mas este seria um privilégio de outro Silas. Aquele, aquela manhã, precisava se organizar para começar um trabalho, realizar uma tarefa, cumprir metas, seguir um rumo, atender a um cronograma e dar um jeito. Enfim, botar para quebrar.

Acomodei os apetrechos da cozinha, copo, caneca, ebulidor, pano de prato, talheres etc. sobre o fundo de uma caixa emborcada num canto da cozinha; as cinco panelas, sob a pia. Na sala, abri duas listas, compras e tarefas: café, biscoito, pão, amendoim, cerveja, arroz, lataria, geladeira, fogão, armário, etc.; ligar a água, luz (lâmpadas), procurar biblioteca etc. Minhas listas são famosas pelos etcs.

No meu quarto, debrucei o colchonete na janela da frente para pegar sol, a rosa de Dolcênia solitária em seu jardim, separei meias, cuecas, calças etc. no roupeiro embutido, lençol, travesseiro, cobertor etc.

O escritório, no quarto de fundo, daria mais trabalho, por isso acendi um cigarro postergante e comecei outra lista: cabide, cama, sabonete, balde, sabão em pó, detergente, bucha, fósforo etc. Tirando Dolcênia da cabeça, continuei a lida: instalei o três-em-um perto da tomada, claro, vinis e fitas ao lado; cadernos, blocos, tintas, canetas etc. no roupeiro, onde também ficariam os livros.

Revê-los é refazer a nova velha viagem: de onde vem tanto livro? Quando tive dinheiro para comprar álbuns de arte? Quem são essas pessoas que autografaram para mim? Por que amigos publicaram essas porcarias? e por que tiveram a indelicadeza de enfiá-las na minha estante? Como me desfazer desses clássicos já lidos, relidos e memorizados? Como me desfazer desses livrinhos quase artesanais, ruins, mas editados com tanto esforço e me ofertados com tanto carinho?

Como não folhear muitos desses tesouros fazendo mais viagens pelo tempo — que passou, sub-reptício, até a fome avisar a hora do almoço? Deixei os livros espalhados e mal empilhados pelo chão e fui cuidar da vida, a atual naquele meio-dia de uma sexta-feira de outono.

Fui a pé cuidar da vida. Ainda não era hora de Verina, a bicicleta emburrada, conhecer o Bairro Novo. A rua continuava deserta; no jardim ao lado, só flores vegetais. Não lembrava de ter visto restaurante na Praça da Fortuna Popular, mas seu Ari me indicaria um. Até chegar lá, vi pouca gente. A primeira rua transversal é a dos Violonistas, a segunda, dos Marceneiros, ambas muito parecidas com a minha Engenheiros. A terceira, Operários, é a avenida que dá na Praça.

“Café Frei Veloso”. Como não tinha visto uma placa tão vistosa? Perto da Padaria SandrAri, que só agora compreendi: Sandra e Ari. Sandra ri. Muito bom. Escrito a giz na placa à porta, o cardápio do Café: arroz, feijão, salada e bife de boi, frango ou porco, ou linguiça ou carne cozida; feijoada e caldos. Dois detalhes sedutores me conquistaram: a letra caprichada e o ponto-e-vírgula, cuidados que não se têm mais. Quatro mesas no passeio, balcão de mármore em forma de ferradura, bancos altos, todos ocupados, menos o último, ao fundo. A funcionária, de costas para mim, servindo alguém do outro lado, se virou. Dolcênia.

— Dolcênia!

— Boa tarde, parceiro Silas. Já escolheu?

— Eu…

Estava encantado: ver a garota mais bonita da cidade duas vezes antes do fim do meu primeiro dia no Bairro Novo. A Borboleta da Sorte ronronou ao meu ouvido.

— A feijoada está excelente hoje.

— Sim, isso, manda uma.

Falei com convicção, apesar de não gostar tanto de carne de porco, mas meu cérebro gemia: Yes, baby, assim…

Enquanto ela foi à portinhola da cozinha, meus amigos Tiago e Iago surgiram na cena, saindo, ambos palitando os dentes. Sorri para eles, pensando trocar uma palavrinha, mas eles apenas levantaram à meia altura os punhos fechados e se foram. Relevei, estavam de barriga cheia, decerto café, cigarro e cochilo antes de voltar à luta.

As pessoas falavam; um rádio, da cozinha, vazava música pela portinhola; ruído de talheres nos pratos. Trabalhadores no intervalo do almoço, sem pressa, concentrados na conversa com os vizinhos de balcão.

— Uma pinguinha, Dolcênia?

Ela trouxe, amarela, dourada, sedutora. Pousou-a ao lado da cumbuca de feijoada, entre a farinha, o molho, a couve e o arroz. Uma baita primeira refeição.

— Oferta da casa.

— Obrigado, mas não precisava.

— Tia Lice ganhou de um fã, eu ofereço aos clientes especiais.

Yes, assim, vem…

— Sua tia Alice tem fãs? O que ela faz?

Ela sorriu e a vida melhorou oitenta e nove por cento.

— Não é Alice, é Lice, de Magdalice.

— Ah.

— Ela é cantora.

Amo cantoras que têm sobrinhas Dolcênias.

— Que bacana. Onde ela canta?

— Ela tem muitos fãs. Nós estamos convencendo ela a fazer um show próprio, grande, já temos até patrocínio, mas ela fica falando que não está pronta, bobagem, todo mundo acha ela a melhor cantora da cidade.

— E como eu posso ficar fã também? Como ter a honra de conhecer a grande Magdalice?

— Toda sexta-feira ela se apresenta no Bonelli.

— Hoje é sexta, sorte minha. O que é Bonelli?

— Uma pizzaria.

— Ah.

— Vamos lá? Você topa?

Ela convidou com gosto, não por educação — e nem precisava. Acabei de mastigar o último pedaço de paio, limpei a boca e declarei, retumbante, oferecendo-lhe a mão para selar o trato:

— Combinado!

Ela sorriu e o mundo melhorou os onze por cento restantes e levantou o punho, ainda segurando o pano de prato.

A conversa toda não fluiu assim, organizada, afinal ela estava sozinha no atendimento. Entre trazer e levar coisas e contas, parava alguns segundos comigo. Ficamos de nos encontrar ali mesmo, lá pelas dez horas, depois da sua aula. Paguei meu almoço ao homem do caixa e voltei, sonolento e sonhador, para casa. Deitei planejando dar um cochilo rápido, mas acabei dormindo a tarde toda. Sonhei com ela: estávamos pelados na beira de um lago de águas azuis, deitados na grama, tomando sol, pássaros conversavam, árvores faziam sombras em bruxas, duendes e gnomos sobre grandes cogumelos junto a suas raízes, nuvens se misturavam a neves nos cumes das montanhas, peixes saltitavam felizes, tudo era paz. Até que ouvi uma criança gritar “Mamãe” e mais uma, outra e outra e logo dezenas de crianças se amontoavam sobre nós “Mamãe! Papai!”. Não foi um sonho bom. Misturar pinga com feijoada não é para amadores.

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