“Aquele Bilhete” e “Mar e Sol” – 2 Contos de Noé Filho

| |

Noé Filho é um piauiense nascido no Piauí (Teresina, 20 de dezembro de 1990). Passou a infância em Socorro do Piauí, Manoel Emídio e Canto do Buriti. É formado em Administração e é o idealizador e Coordenador do projeto cultural Geleia Total, projeto que desde 2014 atua na valorização da cultura e da arte do Piauí, produzindo shows, eventos, espetáculos, exposições, bate-papos, oficinas, entre outras atividades. Lançou, em 2019, o livro “Cores sob nossas peles”, uma reunião de 12 contos com protagonistas LGBTQIA+, além ter participado de três antologias: “Antologia Líquida” (2018), “Você não está sozinho” (2020) e “Pele” (2020). Carrega em seu peito inúmeras realizações, frustrações e sonhos pelos quais jamais receberá certificado algum.

Ilustrações: Carlos César


Aquele Bilhete

Não era uma simples segunda-feira. Acordar escutando “Black is the color of my true love’s hair”, da Nina Simone, era um indício de ser a comemoração de mais um ano junto com Jorge. Sofia sabia que seus cabelos negros transformavam aquela canção dela, para ela. Jorge escutava pensando nela e só nela. Não deu tempo pensar muito, Jorge já lhe deu um beijo e mais um bilhete. Papel verde, cheirando a amor, escrito de próprio punho, como sempre.

O som do piano de Nina que Jorge tanto gosta, suave e sensível, diz muito sobre ele. Sofia, muito tempo depois, descobriu isso. Aquele homem alto, forte e de poucas palavras passa uma impressão de brutalidade, de falta de sensibilidade. Mas quem o conhece com mais profundidade se surpreende com o olhar atencioso de um homem que sabe o que quer e entende como ninguém as nuances da vida.

O bilhete era uma tradição. Jorge dava alguns presentes mais caros, porém, eram os bilhetes que Sofia esperava ansiosamente por receber. Eles não vinham apenas em datas comemorativas. Fazia parte, a surpresa. Preenchiam a vida de Sofia, as doces palavras. Poeminhas, textos, versos singelos, alguns poemas bem bregas, mas ninguém poderia imaginar que Jorge era capaz de tanta sensibilidade.

Sofia não sabia que a insegurança de Jorge o balançava, o fazia tremer ao tentar balbuciar palavras de amor, que, mesmo simples, não cabiam o que sentia por ela. O jeito era escrever, então. À sua maneira. Há quem não sabe apreciar um gesto tão simples e carinhoso. Sofia sabia, e como sabia.

Depois do beijo, de ler com toda a atenção que podia e de olhar com carinho nos olhos de Jorge, Sofia saiu saltitando para guardar o papel na caixa, junto com os demais bilhetes. Cada um representava um dia único, um momento marcante, um sentimento. Os bilhetes tornaram-se os bens mais preciosos da vida de Sofia.

Sofia nasceu Jorge. Também Jorge. Pelo menos, foi esse o nome que seus pais a deram, sem saber que naquele corpo masculino havia uma mulher forte. Jamais imaginou a sorte de encontrar um homem como Jorge, que a pudesse amar sem rodeios, por isso, era muito grata a ele. Nunca fez cirurgia, ou ainda não fez a cirurgia de readequação de sexo, e mesmo isso não foi suficiente para atrapalhar Jorge.

Há três anos, quando se conheceram, Jorge sofreu bastante para lidar com seu amor. Sentiu muita raiva de si mesmo por ser capaz de amar alguém como Sofia. O que os amigos iriam falar? Como encarar seus pais, seus colegas de trabalho? Sofia o ensinou que a vida pode ser uma sonata de Chopin. Lentamente, carinhosamente, o ensinou a viver o amor e a empurrar do penhasco, sem medo, suas amarras.

Após guardar com carinho o bilhete, Sofia foi aos braços de Jorge. E ficaram abraçados, na cama, por horas a fio. Abraçados. Entrelaçados. Unidos. Lembraram-se quase que em sincronia, sem precisar falar nada, de todas as dificuldades e momentos lindos que viveram. Era de se comemorar e de se orgulhar.

Um mês se passou. Embebecido de vazio e dúvidas. Horas cortantes. Momentos de dor, agonia, choro. O que aconteceu? Nem eles sabiam. Ou achavam que não sabiam. Jorge disse até logo. Sofia disse adeus. Jorge agradeceu por Sofia ter permitido ser amada por ele. Ela, que sempre acreditou ser privilegiada por ter Jorge em sua vida, mal sabia que era Jorge quem era dependente dela. Tudo só foi possível porque Sofia, a despeito de tudo, se amava. E como se amava! E porque se amava foi capaz de permitir que Jorge a amasse.


Jorge foi embora. O silêncio se abateu. Onde foi parar aquela felicidade? Poderia ser para sempre, mas não foi. Meses voaram. Sofia continuava sendo Sofia. Os novos amantes não a preenchiam, mas isso não significava que era necessário voltar para Jorge. De repente, bateu uma vontade de pegar aquela caixa. Sim, Sofia guardou e sempre irá guardar com todo o afeto do mundo aqueles bilhetes. Decidiu ler o último bilhete, o do aniversário de 3 anos de namoro.

“Estava errado, meu amor
cada beijo, riso e abraço
palavras, fotografias e lembranças
ficarão para sempre
eternizados em nossas mentes
você é para sempre
nós somos luz sem fim
brilhando incessantemente
por quanto tempo mais terei você para sempre?

Do seu Jorge.”

Não durou para sempre, mas aqueles versos doces, sem nenhuma erudição, conseguiram trazer novamente às memórias de Sofia o gosto que elas deveriam nunca ter perdido. O gosto bom de momentos bem vividos que carregará consigo para sempre. Enquanto o para sempre for capaz de durar. Jorge foi feliz por ter tido a capacidade de amar uma pessoa que sabia apreciar o seu amor.


Mar e Sol

O grande dia chegou. A inauguração da primeira grande exposição da minha vida, no Museu de Arte de São Paulo, na cidade em que não nasci, mas que me presenteou com lindas memórias, amigos e cheiros. Tinha tudo para ser uma exposição como qualquer outra, a não ser o fato de “descobrirem” que estou namorando atualmente outra mulher, uma linda arquiteta, também conhecida pelo seu trabalho e sua arte. Renata jamais imaginaria entrar nesse furacão midiático por estar namorando uma mulher, mais uma dentre tantas namoradas que já teve.

Como fui casada por muito tempo, com um homem, o grande público nunca teve a chance de saber que eu sou bissexual. Ao longo desses anos, por causa de minha arte, felizmente, fui ficando conhecida e apreciada pela crítica. As cores das minhas telas são sonhos registrados e costumam emocionar as pessoas. Exercito minha arte como vivo minha vida, com verdade e intensidade. Fico muito feliz em ver pessoas das mais diferentes áreas, regiões, emocionando-se como eu me emociono ao pintar minhas telas.

Infelizmente, minha vida pessoal tirou o holofote da minha arte. As telas tão apreciadas viraram alvo de uma análise moralista cruel, virei a “pintora lésbica imoral”, “a sapatão dos quadros de sexo”. Quando dei entrevistas tentando explicar que era bissexual, virei “a pervertida”, “artista que fica com qualquer um”. Mas não importa, minha arte me representa por inteira, acho o tema da sexualidade fascinante e busco representá-la por meio do que sei fazer.

Fiz questão de chegar à inauguração de mãos dados com meu amor, Renata. Deparamo-nos com uma manifestação de cerca de 50 pessoas, claramente ligadas a agremiações religiosas, nos insultando e defendendo que a exposição deveria ser cancelada, principalmente por ser na principal casa da arte brasileira. Resisti. Entrei. Quando me vi sozinha, desabei. É complicado ser humilhada por tanta gente, ser acusada de tanta perversidade, simplesmente por ousar admitir ser quem sou, e ainda trazendo minha mulher para tanta confusão.

De modo inconsciente, não proposital, minha arte deu cores à invisibilidade que nós, bissexuais, vivemos. Enquanto os homossexuais sofrem por não serem respeitados por serem quem são, os bissexuais sofrem por não acreditarem que existem, sendo alvos de ofensas, inclusive, por quem é homossexual. Acreditem: não há nada que incomode mais a sociedade do que ousar tirar da invisibilidade quem é excluído sumariamente por ela.

Renata me acalmou. Minha família chegou, meus filhos, meu ex-marido, que também me deram muito suporte. Refleti por uma hora, em silêncio, sem saber o que fazer ou como reagir diante daquela situação. Até que decidi fazer o que estava ao meu alcance. Pedi que ninguém me acompanhasse. Fui sozinha ao vão do MASP. Entre insultos e gritos, consegui convencer uma das líderes, uma senhora de mais de 50 anos, a visitar a exposição apenas comigo. Implorei a chance de tentar mostrar o que eu via nas telas, o que eu senti ao pintá-las, e por que elas eram importantes para mim. Ela, com muito desdém, aceitou.

Circulei com ela explicando cada obra. O que me inspirou a registrar aqueles desenhos, o porquê de cada cor. Falei dos homens que amei. Dos homens que apenas transei. Falei das mulheres que experimentei. Das que me apaixonei. Dos meus amores, sofrimentos, felicidades, desilusões. Tentei explicar que quem é bissexual não é mais ou menos pervertido que ninguém. Cada um tem sua personalidade e age de acordo com suas experiências e seu contexto. Existimos!

Finalmente, chegamos no quadro “Mar e Sol”. O meu preferido e mais dolorido. Era um quadro simples, ilustrando uma paisagem de uma praia, com dois corpos nus, mas que não dá para distinguir ao certo se são de homem ou mulher. Contei a Delza que nunca vivi aquela cena. Quer dizer, vivi, apenas dentro da minha alma, dentro de quem sou. A inspiração para aquele quadro surgiu após uma noite linda. Conheci um rapaz chamado Rômulo, quando ainda era jovem. Conversamos horas e horas sobre nossas vidas. E me apaixonei. O olhar dele cheirava a simplicidade e a autenticidade. Ao deixar ele em casa, nos beijamos enquanto tocava no som do carro “Mar e Sol”, interpretada por Gal Costa.

Fiquei impregnada pelo cheiro dele. Senti algo inexplicável, mas verdadeiro, singelo e único. Assim que cheguei em casa, desenhei aquela tela tentando registrar o cheiro dele. Sim, sempre faço isso. Meu maior objetivo ao pintar é tentar traduzir odores em luz. Meu compromisso é com o cheiro. São os odores que comandam minha vida e são eles que conduzem minha arte.

No final das contas, não importava mais quem eram aqueles amantes na praia. O que importava era o sentimento que a tela transmitia. Rômulo cheirava a mar e sol. Poderíamos ter sido mar e sol. Infelizmente, nunca mais o vi, mas esta tela sempre estará comigo para que eu possa lembrar de seu cheiro e daquela noite tão feliz para mim. Delza, até então calada, escutando pacientemente, pôs-se a chorar. Moderadamente, tentando se controlar, tentando controlar seu orgulho.

Confidenciou-me que aquela também tinha sido a música que marcou a vida com seu falecido marido. Tudo o que eu falei para ela, ela disse que também viveu com ele, por décadas. Confessou que ficou emocionada com minha sensibilidade em ter produzido uma arte que traduzia perfeitamente o amor que ela sentia e sente por seu companheiro de anos com uma experiência que durou apenas uma noite, uma música e um beijo.

Abracei-a. E nos despedimos. Ao sair do MASP, ela simplesmente foi embora, deixou seus companheiros lá, que continuaram a manifestação por um bom tempo. Porém, já estava tranquila. Senti que meus anos de carreira artística fizeram todo o sentido. Senti que minha arte conseguiu sensibilizar o coração de alguém. Percebi que é esse o maior objetivo de qualquer criação artística. Quando o artista sente. Quando alguém se emociona.

4 comentários em ““Aquele Bilhete” e “Mar e Sol” – 2 Contos de Noé Filho”

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!