Whisner Fraga é mineiro de Ituiutaba, autor dos livros “As espirais de outubro”, romance, Nankin, 2007, “Abismo poente”, romance, Ficções, 2009, “Lúcifer e outros subprodutos do medo”, contos, Penalux, 2017, “O privilégio dos mortos”, romance, Patuá, 2019, entre outros. Participou das antologias “Os cem menores contos brasileiros do século”, organizada por Marcelino Freire e “Geração zero zero”, organizada por Nelson de Oliveira. Foi traduzido para o inglês, alemão e árabe.
“O que devíamos ter feito” é sua décima-primeira obra publicada.
um filete de melancolia sangra um sol que nasce cansado,
um sol filtrado por olhos saturados, uns olhos aturdidos por aquela enganosa promessa de conforto,
agora não podemos mais duvidar da eloquência dessa paralisia, helena: pequenos seixos miram nossas testas e deduzíamos que somente as arestas seriam capazes de nos ferir, mas erramos: a força, a trajetória e a pontaria são mais perigosas,
sim, é o escárnio desse silêncio que me permite o discurso, embora não seja mais tempo desses rompantes nem das paixões encasuladas que desabrocham em nossa melancolia, helena,
a mesma angústia que me ferroa desde o início do isolamento: primeiro quarentena, depois isolamento,
confinamento: retiro,
primeiro as plantas: pelo menos essa foi nossa percepção dos acontecimentos,
e aqui me atormenta a necessidade de dar uma ordem aos fatos, de acordo com nosso despertar:
as folhas empalideceram, tomaram um tom ferruginoso e intuímos que fosse algum tipo de fungo,
tínhamos, estocados, diversos pesticidas: manipulo os produtos conforme orientam os manuais, bem como me atento para as proporções das misturas, aplico conforme indica a bula, de forma que me convenço do sucesso: em breve tudo estaria de novo sadio,
duas semanas depois e os caules secos, as raízes podres, davam por encerradas algumas vidas e uma devastação soprou o verde para longe,
cerca de trinta vasos, lado a lado, na sacada, cheios de terra: nenhum tronco, nenhum galho, nenhum fruto, habitava mais tanto chão desperdiçado,
pequenos nódulos brancos se aninharam nas superfícies outrora quase roxas,
e tudo se tornou poeira e morte,
não desconfiamos dessa degradação se infiltrando na casa: estávamos concentrados em uma nova rotina e foi fácil culpar nossa distração,
as gatas esparramam o tédio pelos assoalhos vazios e ruminam o despeito que nossa presença incessante lhes causa,
e naquele mesmo dia percebemos que as torneiras expeliam um líquido asqueroso, de cor e cheiro anormais:
o dono do armazém vizinho não se incomodou de passar no prédio, ao final da tarde, e deixar garrafas de água na portaria, após uma eficaz negociação por telefone,
uma degeneração empapava o ar, deixando nosso convívio no apartamento ainda mais atribulado,
fomos obrigados a usar máscaras, mesmo dentro de casa:
em pouco tempo, nossos rostos, já desgastados pelo tempo, foram cedendo à força do pano e do elástico e se deformaram, ou, se moldaram,
as gatas, desesperadas com a tirania fétida dessa novidade, vomitavam sem descanso e se arrastavam a esmo,
tentamos diversas técnicas, mas o desânimo se debruçou sobre os estilhaços de sorrisos que disfarçavam uma angústia desmedida,
não limpávamos mais a casa, já que a podridão se instalara de forma decisiva,
um dia me recordei que a gata amarela tinha o hábito de morder os dedos de meus pés todas as manhãs e que havia algum tempo que isso não ocorria:
reviramos a casa em busca de nina,
agora uma solidão rarefeita, imprecisa, escavava a evidente apatia de nossas desavenças e isso era bom,
ao menos era uma tarefa, embora estivéssemos tristes com a possibilidade de perdermos nina,
ao menos tínhamos um objetivo, uma cólera entremeada em nossa convivência, algo finalmente pulsante,
mesmo a decepção de encontrar o pequeno corpo em meio a camisas, ela que gostava de mergulhar em minhas roupas, certamente apegada ao algodão eriçado de maciez, mesmo esse desgosto era melhor do que o vazio,
como não nos atinamos, helena?:
enterramos o bicho, como se plantássemos uma semente, como se depositássemos essa ruptura catastrófica nos baús de uma esperança incerta,
estávamos errados,
aquele ritual desencadeou uma tragédia ainda maior: o desprezo,
esquecíamos de alimentar a outra gata, que nem reclamava da ingratidão, helena, e talvez preferíssemos o mal àquela apatia irremediável,
não podíamos sair, helena,
oito meses em casa e a praga não arrefecia, o vírus, lá fora, derrubava cada vez mais, inclemente,
todos comentavam que poderíamos ficar anos isolados, pelo menos era a opinião corrente antes de desistirmos das notícias do mundo,
e pode ser que essa decisão tenha nos tragado para uma nova ordem moral, de tal forma que nem nos importamos quando achamos a outra gata morta, debruçada sobre o pote de comida, num desespero silencioso, mas também irremissível,
houve a vez dos alimentos que o mercado deixava à porta três vezes por semana: notamos as embalagens murcharem antes que as tocássemos,
um farelo de plástico se espalha pelo piso e as compras, mal empilhadas, desabam vergonhosamente,
a cebola, mal pousa no soalho, e se colore de cinza, expira um bafo podre e se transfigura em algo difuso, impreciso,
o papelão se transforma em uma película que a brisa enxota sem esforço,
o isopor e o alumínio não resistem à atmosfera e são tragados por uma dismorfia apavorante, de forma que bastam dois ou três minutos dentro do apartamento para se deteriorarem,
aquele pó, aquele vício, aqueles miasmas que sequer expulsávamos do chão, se tornaram nossa comida, helena, e afora o ranço e a aparência, eram capazes de nos nutrir adequadamente,
em pouco tempo nos adaptamos a esta dieta, a nos poupar inclusive o trabalho do preparo, e isso era útil, tendo em vista nosso crescente cansaço,
as taças, as xícaras, os pratos se desintegraram primeiro, acuados por essa ruína que nos alertava para uma outra sinergia,
depois foi a vez da cristaleira,
o sofá, a cama, a escrivaninha, os criados, a televisão, o toca-discos, os livros, esses objetos que classificávamos como “nossos”, foram desocupando a materialidade para serem devolvidos a esse vórtice que aniquilava tudo,
dormíamos no chão, um próximo ao outro, como se assim pudéssemos compartilhar nosso medo, como se algum grau de proteção ainda fosse viável, como se essa proximidade nos permitisse o calor perdido, helena, a cura,
a terra,
a terra se submetia também, helena, era sugada por essa falência e não nos atinamos: nem o pó restaria?,
e por que somos poupados?, refletia, quando você me exibe o indicador, helena, e uma nervura roxa se propaga por sua unha e depressa alcança a pele e continua a trilha de destruição e você pestaneja a certeza de que só resistimos um pouco mais, talvez para testemunharmos a perda, o desencanto, a falência,
essa truculência rapinava as paredes, que começaram a se desfazer, substituídas por um vazio, por um nada repleto de consciência e dignidade,
tudo desaparecia e estávamos prestes a flutuar em uma perplexidade de ausências, em um medo asfixiante que comporia um horror maior, desconhecido,
precisamos fugir, helena, mas não sabemos para onde.