Sintoma – Um Conto de Paulo Geovane

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Paulo Geovane e Silva nasceu em 1985, na cidade de Manhuaçu (Minas Gerais). É escritor, editor, crítico literário e professor. Licenciou-se em Letras pela PUC Minas (2010), onde também lecionou. É mestre (2012) e doutorando em literaturas africanas de língua portuguesa pela Universidade de Coimbra. Em 2018 estreou na poesia com caída (2018, Editora Letramento) e escreve esporadicamente para o Le Monde Diplomatique Brasil. Radicou-se em Madrid e, atualmente, edita a Revista Ponte – https://www.revistaponte.org/ .


Sintoma

É noite. Paro em frente ao espelho. Olho-me e o que vejo me dá pena. Flagro o desmoronar de um rosto decepcionado. Viro-me. De pé, abro um pouco as pernas, faço uma leve contração pélvica e observo o líquido que me abandona; na descarga, sob uma espuma muito amarela, deixo-o ir. O ruído da água nova e limpa traz-me um pouco de presença. Enquanto desfruto esse murmúrio aquático, vejo-me novamente, sem vontade – mas com uma atração persistente. O espelho é inevitável. Miro-me aos olhos, há algo que quero dizer e não consigo. Não me sai… talvez seja simplesmente o medo de parecer estúpido diante de mim mesmo – às vezes um cachimbo é apenas um cachimbo.

Entretanto: onde há uma boca em silêncio há mistério e desejo.

Tento entender essa momentânea fixação direcionando o olhar para a minha boca tensa, maciça, entreaberta, esta janela verbal de onde saíram voando tantas palavras de amor e mundo. Em seguida volto à globalidade do meu rosto obtuso, o meu todo-cansaço.

A brecha que o espelho cria entre mim e a minha imagem me dá tédio, mas não quero sair daqui. Ou não consigo. Algo ainda me retém diante do meu retrato vivo: a dúvida me paralisou. Apoio-me com as duas mãos no bojo da pia, elevo um pouco os ombros e deixo o meu corpo levemente pendido para frente, ainda a ver a imagem da cara que o sustenta, agora com mais proximidadeque há pouco. O espelho é tão pequeno que agora insinua na parede a minha foto 3 x 4 ou um deus preso na ficção de si mesmo ou um Cristo arrependido, sem corpo e cruz visíveis.

O meu rosto na parede, o meu imitador pessoal. A cabeça: essa potente peça de carne, osso e cavidades, cerebral por dentro, diferencial por fora, efêmera de ambos os lados. De perto posso entrar em contato com as muitas falhas de tez, a ineficiência da indústria de cosméticos frente à gargalhada do tempo, que abriu em minha pele facial canais de palavras mortas. Uma barba me ajudaria agora, mas não a tenho. Cristo, sim.

A palavra ainda não sai. Começo a olhar bem os meus olhos, onde encontro algumas rajadas de mel em minha íris borrada (o olhar também se cansa de estar no mesmo lugar e por isso, com o passar dos anos, se mistura por dentro).

A recarga do vaso sanitário termina o seu trabalho e um duro silêncio irrompe no ar. “Solidão”. Uma solidão espessa e grudenta toma conta de tudo; a sua substância é tão espaçosa e monolítica que ela quase conseguiu me expulsar do banheiro. E fico a sós, diante do espelho, a experimentar esta paradoxal ausência em que vou acompanhado de mim mesmo, esta dupla cara projetada, esta dupla incógnita, este duplo exílio, o olhar do olhado. Eu nunca gostei do silêncio e vim parar exatamente nele, o seu epicentro.

Depois de alguns minutos nesse contato-contato, percebo que a minha cara no espelho é uma espécie de comparecimento. O rosto não me deixa só e vê-lo supõe uma atitude a-solitária, ainda que nele tudo desmorone lentamente, a esmo, e ainda que, enquanto o vejo, ele morre.

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Na cama, já deitado, indago ao nada: aonde vai a minha imagem quando saio da frente do espelho?

3 comentários em “Sintoma – Um Conto de Paulo Geovane”

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