Toques de Valsa – Um Conto de Adriano B. Espíndola Santos

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Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.


Se eu detalhar esse dia, você não vai acreditar; meus filhos já me chamam de lunático, coisas do tipo. Era uma quarta-feira pandêmica, até então, como todas as outras. Marcavam dezessete horas. Estava exausto de passar horas a fio olhando para o teto; buscando algum prazer nesse apartamento sombrio, no qual foi colocado, por insistência de Melissa, minha filha mais velha, “para cumprir o isolamento direitinho”. Ou seja, como uma criancinha manobrável, pelos dizeres de Melissa. Fábio, o do meio, tem a mania de ser “imparcial” – isso quer dizer que Fábio, com o caráter que puxou da mãe, não tem o menor interesse de defender o que acredita; prefere fugir de confusão. Restava-me Laura, a derradeira, extemporânea, com a potência de meus ossos febris; mesmo com nove anos de diferença para a Melissa, saberia colocar tudo nos seus devidos lugares. No entanto, Laura foi morar em Sidney, e isso faz cinco anos. Não a impedi, apesar do temor e da saudade. Filhos, como dizia minha mãe, a gente cria para o mundo.

O apartamento, esqueci de explicar, é meu de direito; um tal de usufruto vitalício que os três me passaram. Mais por insistência de Melissa, como disse, vim parar aqui; porque o sítio é perigoso; porque, “papai, não quero mais vir nesse lugar, impregnado das flores e objetos de mamãe”; porque é muito longe da capital; porque, se eu passar mal, não teria ninguém para me ajudar. Caí nesse último ponto, não tive como argumentar. Contando com setenta e oito anos, apesar de firme – assim me julgo –, tenho umas tonturas aqui e ali, e já aconteceu, uma única vez – que eles não saibam –, de ficar desacordado, estatelado no banheiro.

Não sou de birra – em algo meu, Fábio tem o que puxar. Resignei-me à condição de ser ajudado, sendo muito penoso para mim, um sujeito completamente independente. Mas falam que há algo de bom no recomeço; como se surgisse, inesperada, uma bênção. Faz tempo que perdi a fé; porém, sem mais nem menos, apareceu-me Maria, simplesmente Maria.

Maria havia trabalhado comigo na repartição; dividíamos praticamente a mesma sala – não digo a mesma porque colocaram uma divisória de gesso e, por isso, pareciam compartimentos únicos.

Nesse tempo, juro que não surgiu, de minha parte, qualquer interesse. Era casado, muito bem casado, mas Maria, divorciada – logo que a lei permitiu, despachou o antigo marido, beberrão, machista e mulherengo. Dos olhos de Maria, dava para notar, nenhum remorso se via; nem lacrimejar, lacrimejava. De fato, um alívio. Sendo seu amigo, podia dedicar-me a consolá-la, com as vênias e os respeitos devidos.

Daí, parece que por gratidão, Maria me procurava para tomar um café, para papear; até para almoçar, quando tínhamos de fazer serão. Denise, minha esposa, não dava a mínima se tivesse de me atrasar; entendia ou estava descansada – nossos últimos anos, os quinze últimos, digamos que não foram dos mais agradáveis; sem brigas ou confusões, somente ausência absoluta de aconchego. Ainda assim, não a traí, como muitos ajuizavam.

Sou homem de brios. Até me desvencilhei de algumas chamadas de Maria, como ir ao supermercado, ao cinema, ao parque; não cabia. Assim, decerto se sentindo rejeitada, Maria não me procurou mais. Os contatos passaram a ser esporádicos, na hora do cafezinho, no intervalo; ou em reuniões. De toda forma, tratava-a com a maior cortesia quando vinha tirar uma dúvida; avaliar um processo administrativo, etc.

Voltando ao esplêndido recomeço, era setembro de 2019, perto de meu aniversário, quando a reencontrei; exatamente na fila de um supermercado. Acho que não me percebeu, ou fingiu não ter percebido; toquei-a no ombro, e, de pronto, abriu-se um sorriso largo: “Fernando?!”. Uma admiração sem par. Senti-me perdoado, reconciliado, ali. O abraço durou cinco minutos, que mais pareciam horas. É tanto, que seu coração quase saltava pela boca – dava para perceber no toque de pele, peito com peito; alma com alma.

Nos dias que se seguiram, trocamos inúmeras mensagens, e no dia de meu aniversário, em vinte e dois de setembro, saímos finalmente para o cinema. Escolhemos um filme qualquer, bobo, de que até esqueci o nome; o objetivo era refazer o caminho perdido.

Aí veio a maldita pandemia. Fomos guardados em nossas respectivas clausuras, para o nosso bem; imagine, no ápice do amor. Pretendíamos viagens, encontros noturnos; morarmos juntos. A crise nos separou, mais uma vez.

Forças ocultadas queriam nos colocar de ponta: projeto irrealizável. Nem mesmo Melissa, com o seu pavônico amor-proteção, conseguiria nos apartar – por isso, levou boas broncas, como se faz com menina levada, para se aprumar. Enfim, falo ao universo, Maria e eu estamos ligados irremediavelmente.

O abajur, com a velha lâmpada, permitiu à sombra derramar o seu véu no lugar. Abri o melhor espumante que possuía; peguei a taça empoeirada na cristaleira, servi-me e parei a me deslumbrar em frente ao espelho vazio. Liguei a vitrola e pus o disco que guardei de minha mocidade, talvez a última relíquia de áureos tempos: Hier Encore, de Charles Aznavour. Nem Maria poderia supor, mesmo amparada às nossas novas intimidades. Lembrava-me constantemente do afastamento forçado, em março, na flor de nosso desabrochar. Ainda assim, fui rejuvenescido por seu olhar – sou um garoto alado quando penso em tocar o seu corpo.

Hoje, alheio ao amanhã, flutuo em sutis toques de valsa sobre o salão existencial de minha vida. Oxalá, definitivamente, serei o seu lar.

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