Banda Repolho: Trinta anos de história e uma decepção

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Por Claiton Marcio*

“Eu moro na cidade, a cidade é Chapecó
No centro e nos bairro são tudo uns bocó
De dia não tem nada de noite também não
E nos fim de semana todos lá no calçadão
E todos se encontram lá no calçadão
E ficam todos se olhando com umas cara de bundão
Nada acontece não tem nada prá fazê
Você olha prá mim e eu olho prá você
Assim é a cidade a cidade é Chapecó
Do jeito que está vai de mal a pior
É Chapecó, Chapecó, Chapecó, Chapecó”

“Eu moro na cidade, a cidade é Chapecó”. E em 1996, a galera do Repolho arrumou a jibeira, pegou a Unesul e foi para Porto Alegre gravar o primeiro Compact Disc da banda – o que os antigos chamavam de “CD”. Esse foi um evento tão esperado pela galera da cidade e do interior que só faltou faixa de “voltem logo”, torneio de truco e do tradicional “48”. A expectativa da piazada era ouvir as músicas gravadas anteriormente em três demo-tapes – o que os antigos chamavam de “fita demo” – no então novo formato digital. As canções eternizadas em gravações toscas como “Chapô a Galeria” (1993), “Repolho e a horta da alegria” (1994) e “Campo e Lavôra” (1995), cantadas em prosa e verso nos shows da banda e decoradas por um público fiel, mereciam uma gravação condizente com os novos tempos. Mas quando o Demétrio, o Roberto, o Girino e o Passarinho voltaram de Porto Alegre, trouxeram na bagagem uma releitura de seus maiores sucessos pouco conhecidos; e isso provocou a ira de muita gente!

Desde o início acompanhei a trajetória da banda – embora eu não tenha ido ao show inaugural no colégio Pedro Maciel, em 1991, em que o Demétrio se escondeu para não tocar. Aquele lance ficou conhecido como o marco inaugural da banda, que em 2021 completa 30 anos. Na real, a primeira vez em que vi a banda foi em 1992; passei na casa do Paulo Girino numa bela tarde ensolarada de dezembro, e fomos caminhando do Passo dos Fortes até o calçadão, no centro de Chapecó. Lá tinha (ou latinha?) um restaurante chamado Martikayas, um desses botecos com nome genérico que você encontra em qualquer estado da federação. Como o Demétrio tinha se associado ao restaurante, ali se criou um palco – no sentido figurado, porque não existia palco no bar – e alguns shows foram organizados naquele restaurante. O Martikayas ficava no calçadão – entre a rua Nereu Ramos e a avenida Getúlio Vargas – , e esse calçadão era o espaço frequentado pelos jovens; ali tinha (latinha?), entre o final da década de 1980 e início dos anos 1990, uma boate chamada Whiskadão, que depois virou Bahamas e mais tarde Kalesh. Na esquina, latinha um barzinho chamado Txai, em que rolava umas bandas de Porto Alegre; vez ou outra a prefeitura também organizava algum show no calçadão ou na praça Coronel Bertaso. Nos anos seguintes, outros botecos surgiram naquela parte do centro da cidade: o Jamaica, de fronte ao Martikayas, e o Lero’s e Bolero’s, onde hoje é o edifício Liverpool (!). No entanto, essa geografia sonora de Chapecó não resistiu à 1995, 1996, porque essa é uma cidade de trabalho e, portanto, não é lugar para vadiagem. Melhor pegar uma enxada e capinar um lote do que virar cabeludo! Parênteses: (E a burguesia local precisa dormir cedo para acordar abraçada com as galinhas; e fazem isso desde que beijaram as botas de ditadores para promover o ‘pogresso’ nesses sertões – na real, gostam de mandar os outros trabalhar pra eles, encaminhar suas firmas para a falência e passar a perna no direito dos trabalhadores sem direitos. Isso ainda acontece “na cidade, a cidade é Chapecó”, mas também acontecia na década de 1990, quando o Repolho apareceu na horta da colonada).

Da direita para a esquerda: Júpiter Maça, Thomas Dreher, Demétrio e Roberto Panarotto, durante as gravações do disco Repolho Vol. 3 (2004, Estúdios Dreher, Porto Alegre-RS) // Arquivo da banda.

Arquivo da banda “E todos se encontram lá no calçadão”! Coincidência ou não, no antigo moinho onde funcionada o Whiskadão e o Txai, pertinho do Marikayas, serviu como prisão em 1950, quando do incêndio da Igreja matriz e o linchamento de quatro forasteiros suspeitos do ato; a memória local ainda ecoa, vez ou outra, as torturas impregnadas feito miasma nas paredes daquele lugar Lovecraftiano. E ao redor dessa geografia histórica de medo e dor, a gurizada ficava ouvindo um som e zoando os playboys, geralmente até o k-suquinho aparecer pra botar ordem e descer a borracha nas costas da galera.

Naquela mesma tarde de dezembro de 1992, chegamos no Martikayas a tempo de assistir o Cícero e o Zubaid fazer um som para pouco menos de uma dúzia de ouvintes. Logo depois, o Repolho se apresentou; e daquela semana de ensaios e apresentações descolaram a primeira fita da galera, intitulada “chapô a galeria”, um trocadilho com “chapar”, entorpecer – nesse caso através da música, talvez – e “galeria = galera”, ou seja, o pessoal, o público. Algo como “entretemos de forma suficiente o público presente”, mas na linguagem do colonês. Se não for isso, estou enganado há trinta anos, praticamente. Mas de certa forma, latinha a ironia, o deboche e a crítica social e cultural sobre o modus operandi da sociedade local: as músicas da banda retratavam os playboys interessados em atrair as garotas através do status de seus carrões – ou melhor, de seus pais – do abuso de entorpecentes, ou da falta de investimento público em lazer: “nada acontece, não tem nada prá fazê”, como retratado na música “Chapecó”.

Tive a oportunidade de conhecer essa música antes do show de 1992, e claro que gostei porque o som retratou a ansiedade da galeria em ter acesso à shows, eventos, ou algo que afugentasse o marasmo de uma sociedade voltada para a valorização do trabalho pesado – algo muito presente hoje no presente atual. Quando o Roberto estudou no Colégio Zélia Scharff, começou a rolar uma gravação caseira da música; o Pingo, meu irmão, trouxe uma fita para a gente ouvir; também, a Rádio Oeste Capital rodou a gravação, acho que ainda em 1989. E no show e na demo, a temática e o sotaque colonês ficavam evidentes, acaboclando a linguagem e misturando plural e singular em uma única sentença.

Finalmente, naquele show de dezembro de 1992, lembro que uma voz no microfone perguntou: “alguém tem uma tesoura aí?”; ninguém escapava da linguagem literalmente afiada. E isso é muito dezembro de 1992.

Registro de 1996, Estúdio Dreher, Porto Alegre-RS, durante as gravações do REPOLHO VOL 1 // Arquivo da banda.

Dois anos mais tarde, em 1994, já existia uma certa consolidação da cena local, underground, quando o Repolho gravou sua segunda fita demo, “Repolho e a horta da alegria”. Com uma poupança feita pelos guris, conseguiram alugar o equipamento do Jack Som – que baita trocadilho para uma empresa de sonorização! – e ensaiaram ao vivo na casa da vó do Roberto e do Demétrio. E no ano seguinte, depois de lançar “Campo e Lavôra”, consultaram seu mestre Jedi e se sentiram prontos para ir pra capital gravar. Por essa época, entre 1994 e 1995, acho que a banda conseguiu reunir em torno de si um grupo que frequentava todos os shows, ensaios e qualquer tipo de happening que acontecesse. Ou seja, o Repolho já era mais que uma banda, era um movimento: em 1994 teve, ainda, um show antológico, junto com a Graforréia Xilarmônica (de Porto Alegre) no Marrom Glacê. Fiquei impressionado com a alegria da galera em uma noite de inverno, pulando tanto que só dava para sentir o cheiro de cigarro, Kaiser e sovaco. No inverno de 1995, no Leros e Boleros, a banda tocou um mix de suas duas demos mais recentes – com todo mundo cantando a plenos pulmões: “Porcona! Relaxada!”, o verdadeiro hino sucessor de “Chapecó”, assim como “Fusca Azul Calcinha”. Como em quase nenhum desses lugares existia palco, a banda tocava literalmente na frente da galera, olhos nos olhos – com isso, sempre tinha um bêbado invadindo o palco imaginário e acreditando que faria um grande ‘backing vocal’. Por outro lado, isso facilitava a interação entre banda e público – que sempre tinha uma saída genial para cada evento específico. No final do show do Leros, cada membro da banda foi chamando alguém da plateia para substituí-los aos poucos no palco imaginado, enquanto tocavam “Índio Condá”. Lembro que o baterista da banda Diletantes assumiu as baquetas, o Tefê (também da Diletantes) ficou no baixo, eu na guitarra, e mais alguém no vocal. Enquanto isso, a banda sumiu no meio do público – exceto o Passarinho, que tava puto de ciúmes da bateria dele.

Por essa época, a banda Repolho se tornou, portanto, um patrimônio imaterial da galeria de Chapecó. Nos domingos à tardinha, quando o sol baixava, o Roberto descia a avenida Getúlio Vargas cercado de gente interessada em ‘trocar uma ideia’; era quase uma gangue; sempre que o Girino tocava nos barzinhos, acompanhado pelo Zuba em 1996, a gente se reunia pra comer uma batata frita e prestigiar esse baita músico e amigo. Ao mesmo tempo, surgiram outras bandas cantando em colonês raíz, como os Quentes Y Calientes ou a Red Tomatoes. Quando o Girino trouxe um gravador de quatro canais do Paraguai (legalmente) e montou um estúdio, muito da galeria encontrou um local para gravar sua demo-tapes – e mais tarde, organizaram a Yellow House, uma casa alugada para servir de estúdio coletivo. Outros exemplos seriam possíveis, mas isso marca que a banda também fomentou um certo tipo de produção cultural underground na região Oeste – mas também no estado de Santa Catarina, quando começaram a participar dos melhores festivais da década. E por isso, quando a galera voltou de Porto Alegre com uma releitura de seus clássicos, muitos ficaram desapontados.

A galera esperava uma reprodução fiel em Compact Disc – aquilo que os antigos chamavam de “CD”, como já falei – dos clássicos da banda. Por exemplo, uma das partes mais esperadas dos concertos do Repolho era quando o Girino, nosso ídolo particular e representante do Passo dos Fortes, cantava um trecho de “Lasanha”. Nem isso, nem outros elementos por nós aguardado estavam no CD. E por isso, certa vez, nos achamos relevantes a ponto de reclamar com a banda sobre o assunto. E claro, levamos um sermão do Roberto, dizendo que a proposta era justamente essa: gravar as músicas de forma diferente, explorar os recursos de estúdio, as parcerias, aproveitar a viagem, etc. Até aquele momento, eu nunca tinha tomado um sabão por causa de música. Mas me convenci disso.

Então, já me encaminhando para as palavras finais, me obrigo a falar da decepção. Sobre o CD? Não! O CD é legal, até tenho uma cópia pra te vender, bem baratinho! A decepção, definitivamente, não foi a gravação diferente das músicas do Repolho em CD. A gente entendeu a proposta. A decepção é outra: com o tempo, todo mundo cresceu, arrumou um emprego, cortou o cabelo no cabelelelo, deixou de comer pão com banha e comprou um auto. Alguns, compraram também uma camisa da CBF, posam por aí com ‘arminha’, vociferam contra os direitos dos sem direito, lambem coturnos e exibem seus autos na avenida – porque o calçadão já não é mais o point da galeria nem o Martikayas existe mais. Chapecó, portanto, segue um padrão semelhante, não exatamente no sentido da música underground; mas, parte da galera que levou borrachada nas costas e fugia dos k-suquinhos defensores das vitrines – parênteses: (em Chapecó… descer a lenha em pobre? Pode! Mas não ouse danificar vitrine de loja, seu vândalo!) – hoje exerce essa mesma violência física e simbólica. Alguns enriqueceram às custas de tirar os direitos dos trabalhadores sem direitos, outros não enriqueceram mas pensam de acordo com a lógica de seus endinheirados patrões, posando em cerimônias de iniciação em organizações de exploração da vida alheia. Por isso é bom deixar bem claro nossa diferença com essa galera; pois em Chapecó, desde o linchamento de 1950, a elite mata! Quando não mata, manda matar! E quando não mata e nem manda matar, esconde os vestígios. “Assim é a cidade, a cidade é Chapecó”. E essa é a música do Repolho, que sempre nos ajudou a zombar dessa jaguarada.


Claiton Marcio da Silva nasceu no Velho Oeste catarinense; cresceu no rurbano Passo dos Fortes de Chapecó (o que lhe faz ter os calcanhares rachados), brincou no pomar e jogou taco na rua. Tem diploma de datilografia na UCRE, fez um Lattes e hoje é professor na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).

10 comentários em “Banda Repolho: Trinta anos de história e uma decepção”

  1. Que maravilha! Simboliza muito bem sobre o anseio da juventude da região, que tinha em Chapecó a referência.
    Estabelecimentos citados que deixaram de existir, e uns que foram substituídos pelos “modernos” fast foods, modelos importados. Um cidade que produz comida, tem como símbolo o modo de consumir que não lhe é próprio da sua cultura.
    Isso representa o fracasso de parte daquela geração, especialmente a parte que comprou camisa amarela e fazem gesto de arminha.

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  2. Baita texto. Nem fazia ideia que os clássicos da banda foram gravados em versão diferente a que o pessoal estava acostumado a ouvir. Bateu curiosidade de escutar estas fitas demos hahahah

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    • Caro Jhonatan, eu particularmente acho que as demos mais legais em certos aspectos, mas não posso falar isso em público senão vou tomar outro sermão… Mas vale muito ouvir…

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